Pablo Koel'o. Alhimik (port)
Paulo Coelho. O Alquimista
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Date: 14 Aug 2003
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J importante dizer alguma coisa sobre o fato de O Alquimista ser um
livro simbulico, diferente de O Dibrio de um Mago, que foi um trabalho de
ngo-ficzgo.
Durante onze anos de minha vida estudei Alquimia. A simples idjia de
transformar metais em ouro, ou de descobrir o Elixir da Longa Vida, jb era
fascinante demais para passar despercebida a qualquer iniciante em Magia.
Confesso que o Elixir da Longa Vida me seduzia mais: antes de entender e
sentir a presenza de Deus, a idjia de que tudo ia acabar um dia era
desesperadora. De maneira que, ao saber da possibilidade de conseguir um
lnquido capaz de prolongar por muitos anos minha existkncia, resolvi
dedicar- me de corpo e alma a sua fabricazgo.
Era uma jpoca de grandes transformazhes sociais o comezo dos anos
setenta e ngo havia ainda publicazhes sjrias a respeito de Alquimia.
Comecei, como um dos personagens do livro, a gastar o pouco dinheiro que
tinha na compra de livros importados, e dedicava muitas horas do meu dia ao
estudo da sua simbologia complicada. Procurei duas ou trks pessoas no Rio de
Janeiro que se dedicavam seriamente a Grande Obra, e elas se recusaram a me
receber. Conheci tambjm muitas outras pessoas que se diziam alquimistas,
possunam seus laboraturios, e prometiam me ensinar os segredos da Arte em
troca de verdadeiras fortunas; hoje entendo que elas nada sabiam daquilo que
pretendiam ensinar.
Mesmo com toda a minha dedicazgo, os resultados eram absolutamente
nulos. Ngo acontecia nada do que os manuais de Alquimia afirmavam em sua
complicada linguagem. Era um sem-fim de snmbolos, de draghes, lehes, suis,
luas e mercŪrios, e eu sempre tinha a impressgo de estar no caminho errado,
porque a linguagem simbulica permite uma gigantesca margem de equnvocos. Em
1973, jb desesperado com a auskncia de progresso, cometi uma suprema
irresponsabilidade. Nesta jpoca eu era contratado pela Secretaria de
Educazgo de Mato Grosso para dar aulas de teatro naquele estado, e resolvi
utilizar meus alunos em laboraturios teatrais que tinham como tema a Tbboa
da Esmeralda. Esta atitude, aliada a algumas incurshes minhas nas breas
pantanosas da Magia, fizeram com que no ano seguinte eu pudesse experimentar
na prupria carne a verdade do provjrbio: "Aqui se faz, aqui se paga". Tudo a
minha volta ruiu por completo.
Passei os pruximos seis anos de minha vida numa atitude bastante cjtica
com relazgo a tudo que dissesse respeito a brea mnstica. Neste exnlio
espiritual, aprendi muitas coisas importantes: que su aceitamos uma verdade
quando primeira a negamos do fundo da alma, que ngo devemos fugir de nosso
pruprio destino, e que a mgo de Deus j infinitamente generosa, apesar de Seu
rigor.
Em 1981, conheci RAM e o meu Mestre, que iria conduzir-me de volta ao
caminho que estb trazado para mim. E enquanto ele me treinava em seus
ensinamentos, voltei a estudar Alquimia por minha prupria conta. Certa
noite, enquanto conversbvamos depois de uma exaustiva sessgo de telepatia,
perguntei porque a linguagem dos alquimistas era tgo vaga e tgo complicada.
Existem trks tipos de alquimistas disse meu Mestre. Aqueles que
sgo vagos porque ngo sabem o que estgo falando; aqueles que sgo vagos porque
sabem o que estgo falando, mas sabem tambjm que a linguagem da Alquimia j
uma linguagem dirigida ao corazgo, e ngo a razgo.
E qual o terceiro tipo? perguntei.
Aqueles que jamais ouviram falar em Alquimia, mas que conseguiram,
atravjs de suas vidas, descobrir a Pedra Filosofal.
E com isto, meu Mestre que pertencia ao segundo tipo resolveu me
dar aulas de Alquimia. Descobri que a linguagem simbulica, que tanto me
irritava e me desnorteava, era a Ūnica maneira de se atingir a Alma do
Mundo, ou o que Jung chamou de "inconsciente coletivo". Descobri a Lenda
Pessoal, e os Sinais de Deus, verdades que meu raciocnnio intelectual se
recusava a aceitar por causa de sua simplicidade. Descobri que atingir a
Grande Obra ngo j tarefa de poucos, mas de todos os seres humanos sobre a
face da Terra. J claro que nem sempre a Grande Obra vem sob a forma de um
ovo e de um frasco com lnquido, mas todos nus podemos sem qualquer sombra
de dŪvida mergulhar na Alma do Mundo.
Por isso, "O Alquimista" j tambjm um texto simbulico. No decorrer de
suas pbginas, aljm de transmitir tudo o que aprendi a respeito, procuro
homenagear grandes escritores que conseguiram atingir a Linguagem Universal:
Hemingway, Blake, Borges (que tambjm utilizou a histuria persa para um de
seus contos), Malba Tahan, entre outros.
Para completar este extenso prefbcio, e ilustrar o que meu Mestre
queria dizer com o terceiro tipo de alquimistas, vale a pena recordar uma
histuria que ele mesmo me contou no seu laboraturio.
Nossa Senhora, com o Menino Jesus em seus brazos, resolveu descer a
Terra e visitar um mosteiro. Orgulhosos, todos os padres fizeram uma grande
fila, e cada um chegava diante da Virgem para prestar sua homenagem. Um
declamou belos poemas, outro mostrou suas iluminuras para a Bnblia, um
terceiro disse o nome de todos os santos. E assim por diante, monge apus
monge, homenageou Nossa Senhora e o Menino Jesus.
No Ūltimo lugar da fila, havia um padre, o mais humilde do convento,
que nunca havia aprendido os sbbios textos da jpoca. Seus pais eram pessoas
simples, que trabalhavam num velho circo das redondezas, e tudo que lhe
haviam ensinado era atirar bolas para cima e fazer alguns malabarismos.
Quando chegou sua vez, os outros padres quiseram encerrar as
homenagens, porque o antigo malabarista ngo tinha nada de importante para
dizer, e podia desmoralizar a imagem do convento. Entretanto, no fundo do
seu corazgo, tambjm ele sentia uma imensa necessidade de dar alguma coisa de
si para Jesus e a Virgem.
Envergonhado, sentindo o olhar reprovador de seus irmgos, ele tirou
algumas laranjas do bolso e comezou a jogb-las para cima, fazendo
malabarismos, que era a Ūnica coisa que sabia fazer.
Foi su neste instante que o Menino Jesus sorriu, e comezou a bater
palmas no colo de Nossa Senhora. E foi para ele que a Virgem estendeu os
brazos, deixando que segurasse um pouco o menino.
Para J.
Alquimista que conhece e utiliza os segredos da Grande Obra.
Indo eles pelo caminho, entraram em um certo povoado. E certa mulher,
chamada Marta, hospedou-o na sua casa.
Tinha ela uma irmg, chamada Maria, que sentou-se aos pjs do Senhor, e
ficou ouvindo seus ensinamentos.
Marta agitava-se de um lado para o outro, ocupada em muitos servizos.
Entgo aproximou-se de Jesus e disse: Senhor! Ngo te importas de que
eu fique a servir sozinha? Ordena a minha
irmg que venha ajudar-me!
Respondeu-lhe o Senhor:
Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas.
"Maria, entretanto, escolheu a melhor parte, e esta ngo lhe serb
tirada."
O Alquimista pegou um livro que algujm na caravana havia trazido. O
volume estava sem capa, mas conseguiu identificar seu autor: Oscar Wilde.
Enquanto folheava suas pbginas, encontrou uma histuria sobre Narciso.
O Alquimista conhecia a lenda de Narciso, um belo rapaz que todos os
dias ia contemplar sua prupria beleza num lago. Era tgo fascinado por si
mesmo que certo dia caiu dentro do lago e morreu afogado. No lugar onde
caiu, nasceu uma flor, que chamaram de narciso.
Mas ngo era assim que Oscar Wilde acabava a histuria.
Ele dizia que quando Narciso morreu, vieram as Orjiades deusas do
bosque e viram o lago transformado, de um lago de bgua doce, num cvntaro
de lbgrimas salgadas.
Por que vock chora? perguntaram as Orjiades.
Choro por Narciso disse o lago
Ah, ngo nos espanta que vock chore por Narciso continuaram elas.
Afinal de contas, apesar de todas nus sempre corrermos atrbs dele pelo
bosque, vock era o Ūnico que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua
beleza.
Mas Narciso era belo? perguntou o lago.
Quem mais do que vock poderia saber disso? responderam, surpresas,
as Orjiades.
Afinal de contas, era em suas margens que ele se debruzava todos os
dias.
O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse:
Eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que Narciso era
belo.
"Choro por Narciso porque, todas as vezes que ele se deitava sobre
minhas margens eu podia ver, no fundo dos seus olhos, minha prupria beleza
refletida".
"Que bela histuria", disse o Alquimista.
O rapaz chamava-se Santiago. Estava comezando a escurecer quando chegou
com seu rebanho diante de uma velha igreja abandonada. O teto tinha
despencado hb muito tempo, e um enorme sicfmoro havia crescido no local que
antes abrigava a sacristia.
Resolveu passar a noite ali. Fez com que todas as ovelhas entrassem
pela porta em runnas, e entgo colocou algumas tbbuas de modo que elas ngo
pudessem fugir durante a noite. Ngo haviam lobos naquela regigo, mas certa
vez um animal havia escapado durante a noite, e ele gastara todo o dia
seguinte procurando a ovelha desgarrada.
Forrou o chgo com seu casaco e deitou-se, usando o livro que acabara de
ler como travesseiro. Lembrou-se, antes de dormir, que precisava comezar a
ler livros mais grossos: demoravam mais para acabar e eram travesseiros mais
confortbveis durante a noite.
Ainda estava escuro quando acordou. Olhou para cima, e viu que as
estrelas brilhavam atravjs do teto semidestrundo.
"Queria dormir um pouco mais", pensou ele. Tivera o mesmo sonho da
semana passada, e outra vez acordara antes do final.
Levantou-se e tomou um gole de vinho. Depois pegou o cajado e comezou a
acordar as ovelhas que ainda dormiam. Ele havia reparado que, assim que
acordava, a maior parte dos animais tambjm comezava a despertar. Como se
houvesse alguma misteriosa energia unindo sua vida a vida daquelas ovelhas
que hb dois anos percorriam com ele a terra, em busca de bgua e alimento.
"Elas jb se acostumaram tanto a mim que conhecem meus horbrios", disse em
voz baixa. Refletiu um momento, e pensou que podia ser tambjm o contrbrio:
ele que havia se acostumado ao horbrio das ovelhas.
Haviam certas ovelhas, porjm, que demoravam um pouco mais para
levantar. O rapaz acordou uma a uma com seu cajado, chamando cada qual pelo
seu nome. Sempre acreditara que as ovelhas eram capazes de entender o que
ele falava. Por isso costumava as vezes ler para elas os trechos de livros
que o haviam impressionado, ou falar da solidgo e da alegria de um pastor no
campo, ou comentar sobre as Ūltimas novidades que via nas cidades por onde
costumava passar.
Nos Ūltimos dois dias, porjm, seu assunto tinha sido praticamente um
su: a menina, filha do comerciante, que morava na cidade por onde ia chegar
daqui a quatro dias. Tinha estado apenas uma vez lb, no ano anterior. O
comerciante era dono de uma loja de tecidos, e gostava sempre de ver as
ovelhas tosquiadas na sua frente, para evitar falsificazhes. Um certo amigo
tinha indicado a loja, e o pastor levou lb suas ovelhas.
"Preciso vender alguma lg", disse para o comerciante.
A loja do homem estava cheia, e o comerciante pediu que o pastor
esperasse atj o entardecer. Ele sentou-se na calzada da loja e tirou um
livro do alforje.
Ngo sabia que os pastores sgo capazes de ler livros disse uma voz
feminina ao seu lado.
Era uma moza tnpica da regigo de Andaluzia, com seus cabelos negros
escorridos, e os olhos que lembravam vagamente os antigos conquistadores
mouros.
J porque as ovelhas ensinam mais que os livros respondeu o rapaz.
Ficaram conversando por mais de duas horas. Ela contou que era filha do
comerciante, e falou da vida na aldeia, onde cada dia era igual ao outro. O
pastor contou dos campos de Andaluzia, das Ūltimas novidades que viu nas
cidades onde visitara. Estava contente por ngo precisar conversar sempre com
as ovelhas.
Como aprendeu a ler? perguntou a moza a certa altura.
Como todas as outras pessoas respondeu o rapaz. Na escola.
E, se sabe ler, entgo por que j apenas um pastor?
O rapaz deu uma desculpa qualquer para ngo responder aquela pergunta.
Ele tinha certeza de que a moza jamais entenderia. Continuou a contar suas
histurias de viagem, e os pequenos olhos mouros abriam-se e fechavam-se de
espanto e surpresa. A medida que o tempo foi passando, o rapaz comezou a
desejar que aquele dia ngo acabasse nunca, que o pai da moza ficasse ocupado
por muito tempo e o mandasse esperar por trks dias. Percebeu que estava
sentindo uma coisa que nunca havia sentido antes: vontade de ficar morando
numa mesma cidade para sempre. Com a menina de cabelos negros, os dias nunca
seriam iguais.
Mas o comerciante finalmente chegou e mandou que ele tosquiasse quatro
ovelhas. Depois, pagou-lhe o que era devido, e pediu que voltasse no ano
seguinte.
Agora faltavam apenas quatro dias para chegar de novo a mesma aldeia.
Estava excitado e ao mesmo tempo inseguro: talvez a menina jb tivesse
esquecido. Por ali passavam muitos pastores para vender lg.
Ngo tem importvncia disse o rapaz para as suas ovelhas. Eu tambjm
conhezo outras meninas em outras cidades.
Mas no fundo do seu corazgo, ele sabia que tinha importvncia. E que
tanto os pastores, como os marinheiros, como os caixeiro-viajantes, sempre
conheciam uma cidade onde havia algujm capaz de fazer com que esquecessem a
alegria de viajar solto pelo mundo.
O dia comezou a raiar e o pastor colocou as ovelhas seguindo em direzgo
ao sol. "Elas nunca precisam tomar uma decisgo", pensou ele. "Talvez por
isso fiquem sempre juntos de mim". A Ūnica necessidade que as ovelhas
sentiam era de bgua e de alimento. Enquanto o rapaz conhecesse os melhores
pastos em Andaluzia, elas seriam sempre suas amigas. Mesmo que os dias
fossem todos iguais, com longas horas se arrastando entre o nascer e o
pfr-do-sol; mesmo que elas jamais tivessem lido um su livro em suas curtas
vidas, e ngo conhecessem a lnngua dos homens que contavam as novidades nas
aldeias. Elas estavam contentes com bgua e alimento, e isto bastava. Em
troca, ofereciam generosamente sua lg, sua companhia, e de vez em quando
sua carne.
"Se hoje eu me tornasse um monstro e resolvesse matar uma por uma, elas
su iam perceber depois que quase todo o rebanho tivesse sido exterminado",
pensou o rapaz. "Porque confiam em mim, e se esqueceram de confiar nos seus
pruprios instintos. Su porque as conduzo ao alimento e a comida".
O rapaz comezou a estranhar seus pruprios pensamentos. Talvez a igreja,
com aquele sicfmoro crescendo dentro, fosse mal-assombrada. Tinha feito com
que sonhasse um mesmo sonho pela segunda vez, e estava lhe dando uma
sensazgo de raiva contra suas companheiras, sempre tgo fijis. Bebeu um pouco
de vinho que havia sobrado do jantar na noite anterior, e apertou contra o
corpo o seu casaco. Ele sabia que daqui a algumas horas, com o sol a pino, o
calor seria tgo forte que ngo ia poder
conduzir as ovelhas pelo campo. Era a hora que toda a Espanha dormia no
vergo. O calor durava atj a noite, e durante todo este tempo ele tinha que
ficar carregando o casaco. Entretanto, quando pensava em reclamar do peso,
sempre lembrava que por causa dele ngo havia sentido frio de manhg.
"Temos que estar sempre preparados para as surpresas do tempo", pensava
entgo ele, e sentia-se grato pelo peso do casaco.
O casaco tinha um motivo, e o rapaz tambjm. Em dois anos pelas
planncies de Andaluzia ele jb sabia de cor todas as cidades da regigo, e
esta era a grande razgo de sua vida; viajar. Estava planejando explicar
desta vez a menina porque um simples pastor sabe ler: havia estado atj os
dezesseis anos num seminbrio. Seus pais queriam que ele fosse padre, e
motivo de orgulho para uma simples famnlia camponesa, que trabalhava apenas
para comida e bgua, como suas ovelhas. Estudou latim, espanhol, e teologia.
Mas desde crianza sonhava em conhecer o mundo, e isto era muito mais
importante do que conhecer Deus ou os pecados dos homens. Certa tarde, ao
visitar a famnlia, havia tomado coragem e dito para seu pai que ngo queria
ser padre. Queria viajar.
Homens de todo o mundo jb passaram por esta aldeia, filho disse o
pai. Vkm em busca de coisas novas, mas continuam as mesmas pessoas. Vgo
atj o morro conhecer o castelo e acham que o passado era melhor que o
presente. Tkm cabelos louros ou pele escura, mas sgo iguais aos homens de
nossa aldeia.
Mas ngo conhezo os castelos das terras de onde eles vkm retrucou o
rapaz.
Estes homens, quando conhecem nossos campos e nossas mulheres, dizem
que gostariam de viver para sempre aqui continuou o pai.
Quero conhecer as mulheres e as terras de onde eles vieram disse o
rapaz. Porque eles nunca ficam por aqui.
Os homens trazem a bolsa cheia de dinheiro disse mais uma vez o
pai. Entre nus, su os pastores viajam.
Entgo serei pastor.
O pai ngo disse mais nada. No dia seguinte deu-lhe uma bolsa com trks
antigas moedas de ouro espanholas.
Achei certo dia no campo. Iam ser da Igreja, como seu dote. Compre
seu rebanho e corra o mundo atj aprender que nosso castelo j o mais
importante, e nossas mulheres sgo as mais belas.
E o abenzoou. Nos olhos do pai ele leu tambjm a vontade de correr o
mundo. Uma vontade que ainda vivia, apesar das dezenas de anos que ele a
tentou sepultar com bgua, comida, e o mesmo lugar para dormir toda noite.
O horizonte se tingiu de vermelho, e depois apareceu o sol. O rapaz
lembrou-se da conversa com o pai e sentiu-se alegre; tinha jb conhecido
muitos castelos e muitas mulheres (mas nenhuma igual aquela que o esperava
em dois dias). Tinha um casaco, um livro que podia trocar por outro, e um
rebanho de ovelhas. O mais importante, entretanto, j que todo dia realizava
o grande sonho de sua vida; viajar. Quando cansasse dos campos de Andaluzia,
podia vender suas ovelhas e tornar-se marinheiro. Quando cansasse do mar,
teria conhecido muitas cidades, muitas mulheres, muitas oportunidades de ser
feliz.
"Ngo sei como buscam Deus no seminbrio", pensou, enquanto olhava o sol
que nascia. Sempre que possnvel, buscava um caminho diferente para andar.
Nunca havia estado naquela igreja antes, apesar de haver passado tantas
vezes por ali. O mundo era grande e inesgotbvel, e se ele deixasse que as
ovelhas o guiassem apenas um pouquinho, ia terminar descobrindo mais coisas
interessantes. "O problema j que elas ngo se dgo conta de que estgo fazendo
caminhos novos cada dia. Ngo percebem que os pastos mudaram, que as estazhes
sgo diferentes porque estgo apenas ocupadas com bgua e comida."
"Talvez seja assim com todos nus" pensou o pastor. "Mesmo comigo, que
ngo penso em outras mulheres desde que conheci a filha do comerciante".
Olhou o cju, e pelos seus cblculos estaria antes do almozo em Tarifa. Lb
poderia trocar seu livro por um volume mais grosso, encher a garrafa de
vinho, e fazer a barba e o cabelo; tinha que estar pronto para encontrar a
menina, e ngo queria pensar na possibilidade de outro pastor ter chegado
antes dele, com mais ovelhas, para pedir sua mgo.
"J justamente a possibilidade de realizar um sonho que torna a vida
interessante", refletiu enquanto olhava novamente o cju e apressava o passo.
Tinha acabado de se lembrar que em Tarifa morava uma velha capaz de
interpretar sonhos. E ele tinha tido um sonho repetido aquela noite.
A velha conduziu o rapaz atj um quarto no fundo da casa, separado da
sala por uma cortina feita de tiras de plbstico colorido. Lb dentro tinha
uma mesa, uma imagem do Sagrado Corazgo de Jesus, e duas cadeiras.
A velha sentou-se e pediu que ele fizesse o mesmo. Depois segurou as
duas mgos do rapaz e rezou baixo.
Parecia uma reza cigana. O rapaz jb havia encontrado muitos ciganos
pelo caminho; eles viajavam e entretanto ngo cuidavam de ovelhas. As pessoas
diziam que a vida de um cigano era sempre enganar aos outros. Diziam tambjm
que eles tinham pacto com demfnios, e que raptavam crianzas para servirem de
escravas em seus misteriosos acampamentos. Quando era pequeno, o rapaz
sempre tinha morrido de medo de ser raptado pelos ciganos, e este temor
antigo voltou enquanto a velha segurava suas mgos.
"Mas existe a imagem do Sagrado Corazgo de Jesus", pensou ele,
procurando ficar mais calmo. Ngo queria que sua mgo comezasse a tremer e a
velha percebesse seu medo . Rezou um pai-nosso em silkncio.
Que interessante disse a velha, sem tirar os olhos da mgo do rapaz.
E voltou a ficar quieta.
O rapaz estava ficando nervoso. Suas mgos comezaram involuntariamente a
tremer, e a velha percebeu. Ele puxou as mgos rapidamente.
Ngo vim aqui para ler as mgos disse, jb arrependido de ter entrado
naquela casa. Pensou por um momento que era melhor pagar a consulta e ir-se
embora sem saber de nada. Estava dando importvncia demais a um sonho
repetido.
Vock veio saber de sonhos respondeu a velha. E os sonhos sgo a
linguagem de Deus. Quando ele fala a linguagem do mundo, eu posso
interpretar. Mas se ele falar a linguagem de sua alma, su vock pode
entender. E vou cobrar a consulta de qualquer maneira.
Mais um truque, pensou o rapaz. Entretanto, resolveu arriscar. Um
pastor corre sempre o risco dos lobos ou da seca, e isto j que faz a
profissgo de pastor mais excitante.
Tive o mesmo sonho duas vezes seguidas disse. Sonhei que estava
num pasto com minhas ovelhas quando aparecia uma crianza, e comezava a
brincar com os animais. Ngo gosto que mexam nas minhas ovelhas, elas ficam
com medo de estranhos. Mas as crianzas sempre conseguem mexer com os animais
sem que eles se assustem. Ngo sei porquk. Ngo sei como os animais sabem a
idade dos seres humanos.
Volte para seu sonho disse a velha. Tenho uma panela no fogo.
Aljm disso vock tem pouco dinheiro e ngo pode tomar todo o meu tempo.
A crianza continuava a brincar com as ovelhas por algum tempo
continuou o rapaz, um pouco constrangido. E de repente, me pegava pelas
mgos e me levava atj as Pirvmides do Egito.
O rapaz esperou um pouco para ver se a velha sabia o que eram as
Pirvmides do Egito. Mas a velha continuou quieta.
Entgo, nas Pirvmides do Egito, ele falou as trks Ūltimas palavras
lentamente, para que a velha pudesse entender bem a crianza me dizia: "se
vock vier atj aqui, vai encontrar um tesouro escondido". E quando ela foi me
mostrar o local exato, eu acordei. Nas duas vezes.
A velha continuou em silkncio por algum tempo. Depois tornou a pegar as
mgos do rapaz e estudb-las atentamente.
Ngo vou lhe cobrar nada agora disse a velha. Mas quero um djcimo do
tesouro, se vock encontrb-lo.
O rapaz riu. De felicidade. Entgo iria economizar o pouco dinheiro que
tinha, por causa de um sonho que falava em tesouros escondidos! A velha
devia ser mesmo uma cigana os ciganos sgo burros.
Entgo interprete o sonho pediu o rapaz.
Antes jure. Jure que vock vai me dar a djcima parte do seu tesouro em
troca do que eu lhe disser.
O rapaz jurou. A velha pediu para que ele repetisse o juramento olhando
para a imagem do Sagrado Corazgo de Jesus.
J um sonho da Linguagem do Mundo disse ela. Posso interpretb-lo,
e j uma interpretazgo muito difncil. Por isso acho que merezo minha parte no
seu achado.
"E a interpretazgo j esta: vock deve ir atj as Pirvmides do Egito.
Nunca ouvi falar delas, mas se foi uma crianza que lhe mostrou, j porque
existem. Lb vock encontrarb um tesouro que lhe farb rico".
O rapaz ficou surpreso, e depois irritado. Ngo precisava ter procurado
a velha para isto.
Finalmente lembrou-se de que ngo estava pagando nada.
Para isto eu ngo precisava perder meu tempo disse.
Por isso lhe falei que seu sonho era difncil. As coisas simples sgo
as mais extraordinbrias, e su os sbbios conseguem vk-las. Jb que ngo sou uma
sbbia, tenho que conhecer outras artes, como a leitura de mgos.
E como eu vou chegar atj o Egito?
Eu su interpreto sonhos. Ngo sei transformb-los em realidade. Por
isso tenho que viver do que minhas filhas me dgo.
E se eu ngo chegar atj o Egito?
Eu fico sem pagamento. Ngo serb a primeira vez.
E a velha ngo disse mais nada. Pediu para que o rapaz sansse, pois jb
tinha perdido muito tempo com ele.
O rapaz saiu decepcionado e decidido a nunca mais acreditar em sonhos.
Lembrou-se de que tinha vbrias providkncias a tomar: foi ao armazjm arranjar
alguma comida, trocou seu livro por um livro mais grosso, e sentou-se num
banco da praza para saborear o vinho novo que havia comprado. Era um dia
quente, e o vinho, por um destes mistjrios insondbveis, conseguia resfriar
um pouco seu corpo. As ovelhas estavam na entrada da cidade, no estbbulo de
um novo amigo seu. Conhecia muita gente por aquelas bandas e por isso
gostava de viajar. A gente sempre acaba fazendo amigos novos, e ngo precisa
ficar com eles dia apus dia. Quando a gente vk sempre as mesmas pessoas e
isto acontecia no seminbrio terminamos fazendo com que elas passem a fazer
parte de nossas vidas. E como elas fazem parte de nossas vidas, passam
tambjm a querer modificar nossas vidas. Se a gente ngo for como elas esperam
ficar, chateadas. Porque todas as pessoas tem a nozgo exata de como devemos
viver nossa vida.
E nunca tkm nozgo de como devem viver as suas pruprias vidas. Como a
mulher dos sonhos, que ngo sabia transformb-los em realidade.
Resolveu esperar o sol descer um pouco, antes de seguir com suas
ovelhas em direzgo ao campo. Daqui a trks dias iria estar com a filha do
comerciante.
Comezou a ler o livro que tinha conseguido com o padre de Tarifa. Era
um livro grosso, que falava de um enterro logo na primeira pbgina. Aljm
disso, o nome dos personagens eram complicadnssimos. Se algum dia escrevesse
um livro, pensou ele, ia colocar um personagem aparecendo de cada vez, para
que os leitores ngo tivessem que ficar decorando nomes.
Quando conseguiu concentrar-se um pouco na leitura, e era boa, porque
falava de um enterro na neve, o que lhe transmitia uma sensazgo de frio
debaixo daquele imenso sol um velho sentou-se ao seu lado e comezou a
puxar conversa.
O que eles estgo fazendo? perguntou o velho, apontando para as
pessoas da praza.
Trabalhando respondeu o rapaz, secamente, e voltou a fingir que
estava concentrado na leitura. Na verdade, estava pensando em tosquiar as
ovelhas na frente da filha do comerciante, para ela atestar como ele era
capaz de fazer coisas interessantes. Jb havia imaginado esta cena uma porzgo
de vezes; em todas elas, a menina ficava deslumbrada quando ele comezava a
lhe explicar que as ovelhas devem ser tosquiadas de trbs para frente. Tambjm
tentava se lembrar de algumas boas histurias para contar a ela enquanto
tosquiava as ovelhas. A maior parte ele tinha lido nos livros, mas iria
contar como se tivesse vivido pessoalmente. Ela nunca ia saber a diferenza,
porque ngo sabia ler livros.
O velho, entretanto, insistiu. Falou que estava cansado, com sede, e
pediu um gole de vinho ao rapaz. O rapaz ofereceu sua garrafa; talvez o
velho ficasse quieto.
Mas o velho queria conversar de qualquer maneira. Perguntou que livro o
rapaz estava lendo. Ele pensou em ser rude e mudar de banco, mas seu pai
havia lhe ensinado o respeito pelos mais velhos. Entgo estendeu o livro para
o velho, por duas razhes: a primeira j que ngo sabia pronunciar o tntulo. E
a segunda era que, se o velho ngo soubesse ler, ia ele mesmo mudar de banco
para ngo sentir-se humilhado.
Humm... disse o velho, olhando o volume por todos os lados, como se
fosse um objeto estranho. J um livro importante, mas j muito chato.
O rapaz ficou surpreso. O velho tambjm lia, e jb lera aquele livro. E
se o livro era chato como ele dizia, ainda dava tempo de trocar por outro.
J um livro que fala o que quase todos os livros falam continuou o
velho. Da incapacidade que as pessoas tkm de escolher seu pruprio destino.
E termina fazendo com que todo mundo acredite na maior mentira do mundo.
Qual j a maior mentira do mundo? indagou surpreso o rapaz.
J esta: em determinado momento de nossa existkncia, perdemos o
controle de nossas vidas, e ela passa a ser governada pelo destino. Esta j a
maior mentira do mundo.
Comigo ngo aconteceu isto disse o rapaz. Queriam que eu fosse
padre, e eu resolvi ser pastor.
Assim j melhor disse o velho. Porque vock gosta de viajar.
"Ele adivinhou meu pensamento", refletiu o rapaz. O velho, entretanto,
folheava o livro grosso, sem a menor intenzgo de devolvk-lo. O rapaz notou
que ele vestia uma roupa estranha; parecia um brabe, o que ngo era raro
naquela regigo. A Bfrica ficava a apenas algumas horas da Tarifa; e era su
cruzar o pequeno estreito num barco. Muitas vezes apareciam brabes na
cidade, fazendo compras e rezando orazhes estranhas vbrias vezes por dia.
De onde j o senhor? perguntou.
De muitas partes.
Ningujm pode ser de muitas partes o rapaz falou. Eu sou um pastor
e estou em muitas partes, mas sou de um Ūnico lugar, de uma cidade perto de
um castelo antigo. Ali foi onde nasci.
Entgo podemos dizer que eu nasci em Saljm.
O rapaz ngo sabia onde era Saljm, mas ngo quis perguntar para ngo
sentir- se humilhado com a prupria ignorvncia. Ficou mais algum tempo
olhando a praza. As pessoas iam e vinham, e pareciam muito ocupadas.
Como estb Saljm? perguntou o rapaz, procurando alguma pista.
Como sempre esteve.
Ainda ngo era uma pista. Mas sabia que Saljm ngo estava em Andaluzia.
Sengo, ele jb a teria conhecido.
E o que vock faz em Saljm? insistiu.
O que fazo em Saljm? o velho pela primeira vez deu uma gostosa
gargalhada. Ora, eu sou o Rei de Saljm!
As pessoas dizem coisas muito estranhas, pensou o rapaz. As vezes j
melhor estar com as ovelhas, que sgo caladas, e apenas procuram alimento e
bgua. Ou j melhor estar com os livros, que contam esturias incrnveis sempre
nas horas que a gente quer ouvir. Mas quando a gente fala com pessoas, elas
dizem certas coisas e ficamos sem saber como continuar a conversa.
Meu nome j Melquisedec disse o velho. Quantas ovelhas vock tem?
O suficiente respondeu o rapaz. O velho estava querendo saber
demais sobre sua vida.
Entgo estamos diante de um problema. Ngo posso ajudb-lo enquanto vock
achar que tem ovelhas suficientes.
O rapaz se irritou. Ngo estava pedindo ajuda. O velho j que tinha
pedido vinho, conversa, e livro.
Me devolva o livro disse. Tenho que ir buscar minhas ovelhas e
seguir adiante.
Me dk um djcimo de suas ovelhas disse o velho. E eu lhe ensino
como chegar atj o tesouro escondido.
O rapaz tornou entgo a lembrar-se do sonho, e de repente tudo ficou
claro. A velha ngo tinha cobrado nada, mas o velho que era talvez seu
marido ia conseguir arrancar muito mais dinheiro em troca de uma
informazgo que ngo existia. O velho devia ser cigano tambjm.
Antes que o rapaz dissesse qualquer coisa, porjm, o velho abaixou-se,
pegou um graveto, e comezou a escrever na areia da praza. Quando ele se
abaixou, alguma coisa brilhou dentro do seu peito, com tanta intensidade que
quase cegou o rapaz. Mas num movimento rbpido demais para algujm de sua
idade, tornou a cobrir o brilho com o manto. Os olhos do rapaz voltaram ao
normal e ele pode enxergar o que o velho estava escrevendo.
Na areia da praza principal da pequena cidade, ele leu o nome do seu
pai e de sua mge.
Leu a histuria de sua vida atj aquele momento, as brincadeiras de
infvncia, as noites frias do seminbrio. Leu o nome da filha do comerciante,
que ngo sabia. Leu coisas que jamais contara para algujm, como o dia em que
roubou a arma do seu pai para matar veados, ou sua primeira e solitbria
experikncia sexual.
"Sou o Rei de Saljm", dissera o velho.
Por que um rei conversa com um pastor? perguntou o rapaz,
envergonhado e admiradnssimo.
Existem vbrias razhes. Mas vamos dizer que a mais importante j que
vock tem sido capaz de cumprir sua Lenda Pessoal.
O rapaz ngo sabia o que era Lenda Pessoal.
J aquilo que vock sempre desejou fazer. Todas as pessoas, no comezo
da juventude, sabem qual j sua Lenda Pessoal.
"Nesta altura da vida, tudo j claro, tudo j possnvel, e elas ngo tkm
medo de sonhar e desejar tudo aquilo que gostariam de ver fazer em suas
vidas. Entretanto, a medida em que o tempo vai passando, uma misteriosa
forza comeza a tentar provar que j impossnvel realizar a Lenda Pessoal.
O que o velho estava dizendo ngo fazia muito sentido para o rapaz. Mas
ele queria saber o que eram "forzas misteriosas"; a filha do comerciante ia
ficar boquiaberta com isto.
Sgo as forzas que parecem ruins, mas na verdade estgo ensinando a
vock como realizar sua Lenda Pessoal. Estgo preparando seu espnrito e sua
vontade, porque existe uma grande verdade neste planeta: seja vock quem for
ou o que faza, quando quer com vontade alguma coisa, j porque este desejo
nasceu na alma do Universo. J sua missgo na Terra.
Mesmo que seja apenas viajar? Ou casar com a filha de um comerciante
de tecidos?
Ou buscar um tesouro. A Alma do Mundo j alimentada pela felicidade
das pessoas. Ou pela infelicidade, inveja, ciŪme. Cumprir sua Lenda Pessoal
j a Ūnica obrigazgo dos homens. Tudo j uma coisa su.
"E quando vock quer alguma coisa, todo o Universo conspira para que
vock realize seu desejo".
Durante algum tempo ficaram em silkncio, olhando a praza e as pessoas.
Foi o velho quem falou primeiro.
Por que vock cuida de ovelhas?
Porque gosto de viajar.
Ele apontou um pipoqueiro, com sua carrocinha vermelha, que estava num
canto da praza.
Aquele pipoqueiro tambjm sempre desejou viajar, quando crianza. Mas
preferiu comprar uma carrocinha de pipoca, juntar dinheiro durante anos.
Quando estiver velho, vai passar um mks na Bfrica. Jamais entendeu que a
gente sempre tem condizhes para fazer o que sonha.
Devia ter escolhido ser um pastor pensou em voz alta o rapaz.
Ele pensou nisto disse o velho. Mas os pipoqueiros sgo mais
importantes que os pastores. Os pipoqueiros tkm uma casa, enquanto os
pastores dormem ao relento. As pessoas preferem casar suas filhas com
pipoqueiros do que com pastores.
O rapaz sentiu uma pontada no corazgo, pensando na filha do
comerciante. Em sua cidade devia haver um pipoqueiro.
Enfim, o que as pessoas pensam sobre pipoqueiros e sobre pastores
passa a ser mais importante para elas que a Lenda Pessoal.
O velho folheou o livro, e distraiu-se lendo uma pbgina. O rapaz
esperou um pouco, e o interrompeu da mesma maneira como ele o havia
interrompido.
Por que vock fala estas coisas comigo?
Porque vock tenta viver sua Lenda Pessoal. E estb a ponto de desistir
dela.
E vock aparece sempre nestas horas?
Nem sempre desta forma, mas jamais deixei de aparecer. As vezes
aparezo sob a forma de uma boa sanda, uma boa idjia. Outras vezes, num
momento crucial, fazo as coisas ficarem mais fbceis. E assim por diante; mas
a maior parte das pessoas ngo nota isto.
O velho contou que na semana passada ele tinha sido forzado a aparecer
para um garimpeiro sob a forma de uma pedra. O garimpeiro tinha largado tudo
para ir em busca de esmeraldas. Durante cinco anos trabalhou num rio, e
tinha quebrado 999.999 pedras em busca de uma esmeralda. Neste ponto o
garimpeiro pensou em desistir, e su faltava uma pedra apenas UMA PEDRA
para ele descobrir sua esmeralda. Como ele tinha sido um homem que havia
apostado em sua Lenda Pessoal, o velho resolveu interferir. Transformou-se
numa pedra que rolou sobre o pj do garimpeiro. Este, com a raiva e
frustrazgo dos cinco anos perdidos, atirou a pedra longe. Mas atirou com
tanta forza que ela bateu em outra pedra e esta se quebrou, mostrando a mais
bela esmeralda do mundo.
As pessoas aprendem muito cedo sua razgo de viver disse o velho com
uma certa amargura nos olhos. Talvez seja por isso que elas desistem tgo
cedo tambjm. Mas assim j o mundo.
Entgo o rapaz se lembrou que a conversa havia comezado com o tesouro
escondido.
Os tesouros sgo levantados da terra pela torrente de bgua, e
enterrados por estas mesmas enchentes disse o velho. Se vock quiser
saber sobre seu tesouro, terb que me ceder um djcimo de suas ovelhas.
E ngo serve um djcimo do tesouro?
O velho ficou decepcionado.
Se vock sair prometendo o que ainda ngo tem, vai perder sua vontade
de consegui-lo.
O rapaz entgo contou que tinha prometido um djcimo a cigana.
Os ciganos sgo espertos suspirou o velho. De qualquer maneira j
bom vock aprender que tudo na vida tem um prezo. J isto que os Guerreiros da
Luz tentam ensinar.
O velho devolveu o livro ao rapaz.
Amanhg, nesta mesma hora, vock me traz um djcimo de suas ovelhas. Eu
lhe ensinarei como conseguir o tesouro escondido. Boa tarde.
E sumiu numa das esquinas da praza.
O rapaz tentou ler o livro, mas ngo conseguiu concentrar-se mais.
Estava agitado e tenso, porque sabia que o velho falava a verdade. Foi atj o
pipoqueiro, comprou um saco de pipocas, enquanto pensava se devia ou ngo
contar a ele o que o velho dissera. "As vezes j melhor deixar as coisas como
estgo", pensou o rapaz, e ficou quieto. Se dissesse algo, o pipoqueiro ia
ficar trks dias pensando em largar tudo, mas estava muito acostumado com sua
carrocinha.
Ele podia evitar este sofrimento ao pipoqueiro. Comezou a andar sem
rumo pela cidade, e foi atj o porto. Havia um pequeno prjdio, e no prjdio
havia uma janelinha onde as pessoas compravam passagens. O Egito estava na
Bfrica.
Quer alguma coisa? perguntou o sujeito no guichk.
Talvez amanhg disse o rapaz se afastando. Se vendesse apenas uma
ovelha podia chegar atj o outro lado do estreito. Era uma idjia que o
apavorava.
Mais um sonhador disse o sujeito do guichk ao seu assistente,
enquanto o rapaz se afastava. Ngo tem dinheiro para viajar.
Quando estava no guichk, o rapaz havia se lembrado de suas ovelhas, e
sentiu medo de voltar para junto delas. Dois anos haviam passado aprendendo
tudo sobre a arte do pastoreio; sabia tosquiar, cuidar das ovelhas grbvidas,
proteger os animais contra os lobos. Conhecia todos os campos e pastos de
Andaluzia. Conhecia o prezo justo de comprar e vender cada um dos seus
animais.
Resolveu voltar atj o estbbulo de seu amigo pelo caminho mais longo. A
cidade tambjm tinha um castelo, e ele resolveu subir a rampa de pedra e
sentar-se numa de suas muradas. Lb de cima ele podia ver a Bfrica. Algujm
certa vez havia lhe explicado que por ali chegaram os mouros, que ocuparam
durante tantos anos quase toda a Espanha. O rapaz detestava os mouros. Eles
j que tinham trazido os ciganos.
De lb podia ver tambjm quase toda a cidade, inclusive a praza onde
havia conversado com o velho.
"Maldita hora em que encontrei este velho", pensou ele. Tinha ido
apenas buscar uma mulher que interpretasse sonhos. Nem a mulher nem o velho
davam qualquer importvncia para o fato de que ele era um pastor. Eram
pessoas solitbrias, que jb ngo acreditavam mais na vida, e ngo entendiam que
os pastores terminam apegados as suas ovelhas. Ele conhecia em detalhes cada
uma delas: sabia qual mancava, qual iria dar cria daqui a dois meses, e
quais eram as mais preguizosas. Sabia tambjm como tosquib-las, e como
matb-las. Se resolvesse partir, elas sofreriam.
Um vento comezou a soprar. Ele conhecia aquele vento: as pessoas o
chamavam de Levante, porque com este vento chegaram tambjm as hordas de
infijis. Atj conhecer Tarifa, nunca havia pensado que a Bfrica estava tgo
perto. Isto era um grande perigo: os mouros poderiam invadir novamente.
O Levante comezou a soprar mais forte. "Estou entre as ovelhas e o
tesouro", pensava o rapaz. Tinha que decidir-se entre alguma coisa que havia
se acostumado e alguma coisa que gostaria de ter. Havia tambjm a filha do
comerciante, mas ela ngo era tgo importante como as ovelhas, porque ngo
dependia dele. Talvez sequer se lembrasse dele. Teve certeza de que, se ngo
aparecesse daqui a dois dias, a menina ngo iria notar: para ela todos os
dias eram iguais, e quando todos os dias ficam iguais, j porque as pessoas
deixaram de perceber as coisas boas que aparecem em suas vidas sempre que o
sol cruza o cju.
"Eu larguei meu pai, minha mge, e o castelo da minha cidade. Eles se
acostumaram e eu me acostumei. As ovelhas tambjm vgo se acostumar com a
minha falta", pensou o rapaz.
De lb de cima ele olhou a praza. O pipoqueiro continuava vendendo suas
pipocas. Um jovem casal sentou-se no banco onde ele havia conversado com o
velho, e deram um longo beijo.
"O pipoqueiro", disse para si mesmo, sem completar a frase. Porque o
Levante havia comezado a soprar com mais forza, e ele ficou sentindo o vento
no rosto. Ele trazia os mouros, j verdade, mas tambjm trazia o cheiro do
deserto e das mulheres cobertas com vju. Trazia o suor e os sonhos dos
homens que um dia haviam partido em busca do desconhecido, de ouro, de
aventuras e de pirvmides. O rapaz comezou a invejar a liberdade do vento,
e percebeu que poderia ser como ele. Nada o impedia, exceto ele pruprio. As
ovelhas, a filha do comerciante, os campos de Andaluzia, eram apenas os
passos de sua Lenda Pessoal.
No dia seguinte o rapaz encontrou-se com o velho ao meio-dia. Trazia
seis ovelhas consigo.
Estou surpreso disse ele. Meu amigo comprou imediatamente as
ovelhas. Disse que a vida inteira havia sonhado em ser pastor, e aquilo era
um bom sinal.
J sempre assim disse o velho. Chamamos de Princnpio Favorbvel. Se
vock for jogar baralho pela primeira vez, com quase toda certeza irb ganhar.
Sorte de principiante.
E por que?
Porque a vida quer que vock viva sua Lenda Pessoal.
Depois comezou a examinar as seis ovelhas, e descobriu que uma mancava.
O rapaz explicou que isto ngo tinha importvncia, porque ela era a mais
inteligente, e produzia bastante lg.
Onde estb o tesouro? perguntou.
O tesouro estb no Egito, perto das Pirvmides.
O rapaz levou um susto. A velha tinha dito a mesma coisa, mas ngo tinha
cobrado nada.
Para chegar atj ele, vock terb que seguir os sinais. Deus escreveu no
mundo o caminho que cada homem deve seguir. J su ler o que ele escreveu para
vock.
Antes que o rapaz dissesse alguma coisa, uma mariposa comezou a
esvoazar entre ele e o velho. Lembrou-se de seu avf; quando ele era crianza,
seu avf lhe dissera que as mariposas eram sinal de boa sorte. Como os
grilos, as esperanzas, as lagartixas, e os trevos de quatro folhas.
Isto disse o velho, que era capaz de ler seus pensamentos.
Exatamente como seu avf lhe ensinou. Estes sgo os sinais.
Depois o velho abriu o manto que lhe cobria o peito. O rapaz ficou
impressionado com o que viu, e lembrou-se do brilho que havia notado no dia
anterior. O velho tinha um peitoral de ouro macizo, coberto de pedras
preciosas.
Era realmente um rei. Devia estar disfarzado assim para fugir dos
salteadores.
Tome disse o velho, tirando uma pedra branca e uma pedra negra que
estavam presas no centro do peitoral de ouro. Chamam-se Urim e Tumim. A
preta quer dizer "sim", a branca quer dizer "ngo". Quando vock ngo conseguir
enxergar os sinais, elas servem. Faza sempre uma pergunta objetiva.
"Mas de uma maneira geral, procure tomar suas decishes. O tesouro estb
nas Pirvmides e isto vock jb sabia; mas teve que pagar seis ovelhas porque
eu lhe ajudei a tomar uma decisgo".
O rapaz guardou as pedras no alforje . Daqui por diante, tomaria suas
pruprias decishes.
Ngo se esqueza de que tudo j uma coisa su. Ngo se esqueza da
linguagem dos sinais. E, sobretudo, ngo se esqueza de ir atj o fim de sua
Lenda Pessoal.
"Antes, porjm, gostaria de contar-lhe uma pequena histuria.
"Certo mercador enviou seu filho para aprender o Segredo da Felicidade
com o mais sbbio de todos os homens. O rapaz andou durante quarenta dias
pelo deserto,
atj chegar a um belo castelo, no alto de uma montanha. Lb vivia o Sbbio
que o rapaz buscava.
"Ao invjs de encontrar um homem santo, porjm, o nosso herui entrou numa
sala e viu uma atividade imensa; mercadores entravam e sanam, pessoas
conversavam pelos cantos, uma pequena orquestra tocava melodias suaves, e
havia uma farta mesa com os mais deliciosos pratos daquela regigo do mundo.
O Sbbio conversava com todos, e o rapaz teve que esperar duas horas atj
chegar sua vez de ser atendido.
"O Sbbio ouviu atentamente o motivo da visita do rapaz, mas disse-lhe
que naquele momento ngo tinha tempo de explicar-lhe o Segredo da Felicidade.
Sugeriu que o rapaz desse um passeio por seu palbcio, e voltasse daqui a
duas horas.
" Entretanto, quero lhe pedir um favor completou o Sbbio, entregando
ao rapaz uma colher de chb, onde pingou duas gotas de uleo. Enquanto vock
estiver caminhando, carregue esta colher sem deixar que o uleo seja
derramado.
"O rapaz comezou a subir e descer as escadarias do palbcio, mantendo
sempre os olhos fixos na colher. Ao final de duas horas, retornou a presenza
do Sbbio.
" Entgo perguntou o Sbbio vock viu as tapezarias da Pjrsia que
estgo na minha sala de jantar? Viu o jardim que o Mestre dos Jardineiros
demorou dez anos para criar? Reparou nos belos pergaminhos de minha
biblioteca?
"O rapaz, envergonhado, confessou que ngo havia visto nada. Sua Ūnica
preocupazgo era ngo derramar as gotas de uleo que o Sbbio lhe havia
confiado.
" Pois entgo volte e conheza as maravilhas do meu mundo disse o
Sbbio. Vock ngo pode confiar num homem se ngo conhece sua casa.
"Jb mais tranq'ilo, o rapaz pegou a colher e voltou a passear pelo
palbcio, desta vez reparando em todas as obras de arte que pendiam do teto e
das paredes. Viu os jardins, as montanhas ao redor, a delicadeza das flores,
o requinte com que cada obra de arte estava colocada em seu lugar. De volta
a presenza do Sbbio, relatou pormenorizadamente tudo que havia visto.
" Mas onde estgo as duas gotas de uleo que lhe confiei? perguntou o
Sbbio.
"Olhando para a colher, o rapaz percebeu que as havia derramado.
" Pois este j o Ūnico conselho que eu tenho para lhe dar disse o
mais Sbbio dos Sbbios. O segredo da felicidade estb em olhar todas as
maravilhas do mundo, e nunca se esquecer das duas gotas de uleo na colher".
O rapaz ficou em silkncio. Havia compreendido a histuria do velho rei.
Um pastor gosta de viajar, mas jamais esquece suas ovelhas.
O velho olhou para o rapaz, e com as duas mgos espalmadas fez alguns
gestos estranhos em sua cabeza. Depois, pegou os animais e seguiu seu
caminho.
No alto da pequena cidade de Tarifa existe um velho forte construndo
pelos mouros, e quem senta em suas muralhas consegue enxergar uma praza, um
pipoqueiro, e um pedazo da Bfrica. Melquisedec, o Rei de Saljm, sentou-se na
murada do forte aquela tarde, e sentiu o vento Levante no rosto. As ovelhas
esperneavam ao seu lado, com medo
do novo dono, e excitadas com tantas mudanzas. Tudo que elas queriam
era apenas comida e bgua.
Melquisedec olhou o pequeno navio que estava zarpando do porto. Nunca
mais tornaria a ver o rapaz, da mesma maneira como jamais tornou a ver
Abrago, depois de lhe ter cobrado o dnzimo. Entretanto, esta era a sua obra.
Os deuses ngo devem ter desejos, porque os deuses ngo tkm Lenda
Pessoal. Entretanto, o Rei de Saljm torceu intimamente para que o rapaz
tivesse kxito.
"Pena que ele vai esquecer logo meu nome", pensou. "Devia ter repetido
mais de uma vez. Assim, quando falasse a meu respeito, diria que sou
Melquisedec, o Rei de Saljm."
Depois olhou para o cju meio arrependido: "sei que j vaidade das
vaidades, como Tu disseste, Senhor. Mas um velho rei as vezes tem que sentir
orgulho de si mesmo".
"Como j estranha a Bfrica", pensou o rapaz.
Estava sentado numa espjcie de bar igual a outros bares que ele havia
encontrado nas ruelas estreitas da cidade. Algumas pessoas fumavam um
cachimbo gigante, que era passado de boca em boca. Em poucas horas havia
visto homens de mgos dadas, mulheres com o rosto coberto, e sacerdotes que
subiam em longas torres e comezavam a cantar enquanto todos a sua volta se
ajoelhavam e batiam com a cabeza no solo.
"Coisa de infijis", disse para si mesmo. Quando crianza, via sempre na
igreja da sua aldeia uma imagem de Sgo Santiago Matamouros em seu cavalo
branco, com a espada desembainhada, e figuras como aquelas debaixo de seus
pjs. O rapaz sentia-se mal e terrivelmente su. Os infijis tinham um olhar
sinistro.
Aljm disso, na pressa de viajar, ele havia se esquecido de um detalhe,
um Ūnico detalhe, que podia afastb-lo do seu tesouro por muito tempo:
naquele pans todos falavam brabe.
O dono do bar se aproximou e o rapaz apontou para uma bebida que tinha
sido servida em outra mesa. Era um chb amargo. O rapaz preferia beber vinho.
Mas ngo devia preocupar-se com isto agora. Tinha que pensar apenas no
seu tesouro, e a maneira de consegui-lo. A venda das ovelhas lhe havia
deixado com bastante dinheiro no bolso, e o rapaz sabia que o dinheiro era
mbgico: com ele ningujm jamais estb sozinho. Daqui a pouco, talvez em alguns
dias, estaria junto das Pirvmides. Um velho, com todo aquele ouro no peito,
ngo precisava mentir para ganhar seis ovelhas.
O velho lhe havia falado de sinais. Enquanto atravessava o mar, ele
havia pensado nos sinais. Sim, sabia do que ele estava falando: durante o
tempo em que estivera nos campos de Andaluzia, havia se acostumado a ler na
terra e nos cjus as condizhes do caminho que devia seguir. Aprendera que
certo pbssaro indicava uma cobra por perto, e que determinado arbusto era
sinal de bgua daqui a alguns quilfmetros. As ovelhas lhe haviam ensinado
isto.
"Se Deus conduz tgo bem as ovelhas, tambjm conduzirb o homem",
refletiu, e ficou mais tranq'ilo. O chb parecia menos amargo.
Quem j vock? ouviu uma voz em espanhol.
O rapaz ficou imensamente aliviado. Estava pensando em sinais e algujm
tinha aparecido.
Como vock fala espanhol? perguntou. O recjm-chegado era um rapaz
vestido a maneira dos ocidentais, mas a cor de sua pele indicava que devia
ser daquela cidade. Tinha mais ou menos sua altura e sua idade.
Quase todo mundo aqui fala espanhol. Estamos hb apenas duas horas da
Espanha.
Sente-se e peza alguma coisa por minha conta disse o rapaz. E
peza um vinho para mim. Detesto este chb.
Ngo hb vinho no pans disse o recjm-chegado. A religigo ngo
permite.
O rapaz disse entgo que precisava chegar atj as Pirvmides. Quase ia
falando do tesouro, mas resolveu ficar calado. Sengo era bem capaz do brabe
querer uma parte para levb-lo atj lb. Lembrou-se do que o velho lhe dissera
a respeito de ofertas.
Gostaria que me levasse atj lb, se puder. Posso lhe pagar como guia.
Vock tem idjia de como chegar atj lb?
O rapaz reparou que o dono do bar estava por perto, ouvindo atentamente
a conversa. Sentia-se incomodado com a presenza dele. Mas tinha encontrado
um guia, e ngo ia perder esta oportunidade.
Vock tem que atravessar todo o deserto de Saara disse o
recjm-chegado. E para isto precisamos de dinheiro. Quero saber se vock tem
dinheiro suficiente.
O rapaz achou estranha a pergunta. Mas confiava no velho, e o velho lhe
falara que quando se quer uma coisa, o universo sempre conspira a favor.
Tirou seu dinheiro do bolso e mostrou ao recjm-chegado. O dono do bar
aproximou-se e olhou tambjm. Os dois trocaram algumas palavras em brabe. O
dono do bar parecia irritado.
Vamos embora disse o recjm-chegado.
Ele ngo quer que continuemos aqui.
O rapaz ficou aliviado. Levantou-se para pagar a conta, mas o dono o
agarrou e comezou a falar sem parar. O rapaz era forte, mas estava numa
terra estrangeira. Foi seu novo amigo que empurrou o dono para o lado e
puxou o rapaz para fora.
Ele queria seu dinheiro disse. Tvnger ngo j igual ao resto da
Bfrica. Estamos num porto e os portos tkm sempre muito ladrhes.
Ele podia confiar em seu novo amigo. Tinha lhe ajudado numa situazgo
crntica. Tirou o dinheiro do bolso e contou.
Podemos chegar amanhg nas Pirvmides disse o outro, pegando o
dinheiro. Mas preciso comprar dois camelos.
Sanram andando pelas ruas estreitas de Tvnger. Em todo canto haviam
barracas de coisas para vender. Chegaram enfim no meio de uma grande praza,
onde funcionava o mercado. Haviam milhares de pessoas discutindo, vendendo,
comprando, hortalizas misturadas com adagas, tapetes junto com todo tipo de
cachimbos. Mas o rapaz ngo tirava o olho de seu novo amigo. Afinal de
contas, ele estava com todo o seu dinheiro nas mgos. Pensou em pedi-lo de
volta, mas achou que seria indelicado. Ele ngo conhecia o costume das terras
estranhas que estava pisando.
"Basta vigib-lo", disse para si mesmo. Era mais forte que o outro.
De repente, no meio de toda aquela confusgo, estava a mais bela espada
que seus olhos jb haviam visto. A bainha era prateada, e o cabo negro,
cravejado de pedras. O rapaz prometeu a si mesmo que, quando voltasse do
Egito, ia comprar aquela espada.
Pergunte ao dono da barraca quanto custa disse ele ao amigo. Mas
percebeu que tinha ficado dois segundos distrando, olhando a espada.
Seu corazgo ficou pequeno, como se o peito tivesse subitamente
encolhido. Teve medo de olhar para o lado, porque sabia o que ia encontrar.
Os olhos continuaram fixos na bela espada por mais alguns momentos, atj que
o rapaz tomou coragem e se virou.
Em volta dele o mercado, as pessoas indo e vindo, gritando e comprando,
os tapetes misturados com avelgs, as alfaces junto as bandejas de cobre, os
homens de mgos dadas pelas ruas, as mulheres de vju, o cheiro de comida
estranha, e em nenhum lugar, mas em nenhum lugar mesmo, o rosto de seu
companheiro.
O rapaz ainda quis pensar que haviam se perdido por acaso. Resolveu
ficar ali mesmo, esperando que o outro voltasse. Pouco tempo depois um
sujeito subiu numa daquelas torres e comezou a cantar; todas as pessoas
ajoelharam-se no chgo, bateram com a cabeza no solo, e cantaram tambjm.
Depois, como um bando de formigas trabalhadoras, desfizeram as barracas e
foram embora.
O sol comezou a ir embora tambjm. O rapaz olhou o sol durante muito
tempo, atj que ele se escondeu atrbs das casas brancas que davam a volta na
praza. Lembrou-se que quando aquele sol nascera de manhg, ele estava em
outro continente, era um pastor, tinha sessenta ovelhas, e um encontro
marcado com uma moza. De manhg ele sabia tudo que iria acontecer enquanto
andava pelos campos.
Entretanto, agora que o sol se escondia, ele estava num pans diferente,
um estranho numa terra estranha, onde nem sequer podia entender a lnngua que
falavam. Jb ngo era um pastor, e ngo tinha mais nada na vida, nem mesmo
dinheiro para voltar e comezar tudo de novo.
"Tudo isto entre o nascente e o poente do mesmo sol" pensou o rapaz.
E sentiu pena de si mesmo, porque as vezes as coisas mudam na vida no espazo
de um simples grito, antes que as pessoas possam se acostumar com elas.
Tinha vergonha de chorar. Jamais havia chorado na frente de suas
pruprias ovelhas. Entretanto, o mercado estava vazio e ele estava longe da
pbtria.
O rapaz chorou. Chorou porque Deus era injusto, e retribuna desta
maneira as pessoas que acreditavam em seus pruprios sonhos. "Quando eu
estava com as ovelhas eu era feliz, e espalhava sempre felicidade a minha
volta. As pessoas me viam chegar e me recebiam bem.
"Mas agora estou triste e infeliz. O que farei? Vou ser mais amargo e
ngo vou confiar nas pessoas, porque uma pessoa me traiu. Vou odiar aqueles
que encontraram tesouros escondidos, porque eu ngo encontrei o meu. E vou
sempre procurar manter o pouco que tenho, porque sou pequeno demais para
abrazar o mundo".
Abriu seu alforje para ver o que tinha lb dentro; talvez tivesse
sobrado alguma coisa do sandunche que havia comido no barco. Mas su
encontrou o livro grosso, o casaco, e as duas pedras que o velho lhe dera.
Ao olhar as pedras, sentiu uma imensa sensazgo de alnvio. Tinha trocado
seis ovelhas por duas pedras preciosas, sandas de um peitoral de ouro. Podia
vender as pedras e comprar a passagem de volta. "Agora serei mais esperto",
pensou o rapaz, tirando as pedras do alforje para escondk-las dentro do
bolso. Ali era um porto, e esta era a Ūnica verdade que aquele homem lhe
dissera; um porto estb sempre cheio de ladrhes.
Agora entendia tambjm o desespero do dono do bar: estava tentando
dizer- lhe para ngo confiar naquele homem. "Sou como todas as pessoas: vejo
o mundo da maneira que desejava que as coisas acontecessem, e ngo da maneira
que as coisas acontecem".
Ficou olhando as pedras. Tocou com cuidado cada uma, sentindo a
temperatura e a superfncie lisa. Elas eram seu tesouro. O simples toque das
pedras lhe deu mais tranq'ilidade. Elas lhe lembravam do velho.
"Quando vock quer uma coisa, todo o Universo conspira para que possa
consegui-la", dissera-lhe o velho.
Queria entender como aquilo podia ser verdade. Estava ali num mercado
vazio, sem um centavo no bolso, e sem ovelhas para guardar aquela noite. Mas
as pedras eram a prova de que tinha encontrado um rei um rei que sabia a
sua histuria, sabia da arma do seu pai e da sua primeira experikncia sexual.
"As pedras servem para adivinhazgo. Chamam-se Urim e Tumim". O rapaz
colocou de novo as pedras dentro do saco e resolveu experimentar. O velho
havia falado que fizesse perguntas claras, porque as pedras su serviam para
quem sabe o que quer.
O rapaz entgo perguntou se a bknzgo do velho continuava ainda com ele.
Tirou uma das pedras. Era "sim".
"Vou encontrar meu tesouro?" perguntou o rapaz.
Enfiou a mgo no alforje e ia pegando uma das pedras, quando ambas
escorregaram por buraco no tecido. O rapaz nunca havia percebido que seu
alforje estava rasgado. Abaixou-se para pegar o Urim e o Tumim, e colocb-los
de novo dentro do saco. Ao vk-las no chgo, porjm, uma outra frase surgiu em
sua cabeza.
"Aprenda a respeitar e seguir os sinais", havia falado o velho rei.
Um sinal. O rapaz riu para si mesmo. Depois apanhou as duas pedras no
chgo e as recolocou no alforje. Ngo pensava costurar o buraco as pedras
poderiam escapar por ali sempre que desejassem. Ele havia entendido que
certas coisas a gente ngo devia perguntar para ngo fugir do pruprio
destino. "Prometi tomar minhas pruprias decishes", disse para si mesmo.
Mas as pedras tinham dito que o velho, continuava com ele, e isto lhe
deu mais confianza. Olhou de novo para o mercado vazio, e ngo sentiu o
desespero de antes. Ngo era um mundo estranho; era um mundo novo.
Pois, afinal de contas, tudo que ele queria era exatamente isto:
conhecer mundos novos. Mesmo que ele jamais chegasse atj as Pirvmides, ele
jb tinha ido muito mais longe do que qualquer pastor que conhecia. "Ah, se
eles soubessem que a apenas duas horas de barco existem tantas coisas
diferentes".
O mundo novo aparecia na sua frente sob a forma de um mercado vazio,
mas ele jb vira aquele mercado cheio de vida, e nunca mais ia se esquecer.
Lembrou-se da espada foi um prezo caro contemplb-la um pouco, mas tambjm
nunca tinha visto nada igual antes. Sentiu de repente que ele podia olhar o
mundo como uma pobre vntima de um ladrgo, ou como um aventureiro em busca de
um tesouro.
"Sou um aventureiro em busca de um tesouro", pensou, antes de cair
exausto no sono.
Acordou com um sujeito lhe cutucando. Tinha dormido no meio do mercado,
e a vida daquela praza estava prestes a recomezar de novo.
Olhou em volta, procurando suas ovelhas, e percebeu que estava em outro
mundo. Ao invjs de sentir-se triste, ficou feliz. Ngo tinha mais que seguir
em busca de bgua e comida; podia seguir em busca de um tesouro. Ngo tinha um
centavo no bolso, mas tinha fj na vida. Havia escolhido, na noite anterior,
ser um aventureiro igual aos personagens dos livros que costumava ler.
Comezou a andar sem pressa pela praza. Os mercadores colocaram em pj
suas barracas; ajudou um doceiro a montar a sua. Havia um sorriso diferente
no rosto daquele doceiro: estava alegre, desperto para a vida, pronto para
comezar um bom dia de trabalho. Era um sorriso que lembrava alguma coisa do
velho, aquele velho e misterioso rei que havia conhecido. "Este doceiro ngo
estb fazendo doces porque quer viajar, ou porque quer casar com a filha de
um comerciante. "Este doceiro faz doce porque gosta disto", pensou o rapaz,
e notou que podia fazer a mesma coisa que o velho saber se uma pessoa estb
pruxima ou distante de sua Lenda Pessoal. Su em olhar para ela. "J fbcil, e
eu nunca havia percebido isto."
Quando acabaram de montar a barraca, o doceiro lhe estendeu o primeiro
doce que havia feito. O rapaz comeu satisfeito, agradeceu, e seguiu seu
caminho. Quando jb
havia se afastado um pouco, lembrou-se que a barraca havia sido montada
com uma pessoa falando brabe e a outra, espanhol.
E tinham se entendido perfeitamente.
"Existe uma linguagem que estb aljm das palavras", pensou o rapaz. "Eu
jb experimentei isto com as ovelhas, e agora estou experimentando com os
homens."
Estava aprendendo vbrias coisas novas. Coisas que ele jb havia
experimentado, e que no entanto eram novas, porque tinham passado por ele
que tivesse percebido. E ngo tinha percebido, porque estava acostumado com
elas. "Se eu aprender a decifrar esta linguagem sem palavras, eu vou
conseguir decifrar o mundo".
"Tudo j uma coisa su", falava o velho.
Resolveu andar sem pressa e sem ansiedade pelas pequenas ruas de
Tvnger: su desta maneira ia conseguir perceber os sinais. Isto exigia muita
pacikncia, mas esta j a primeira virtude que um pastor aprende. Mais uma vez
percebeu que estava aplicando naquele mundo estranho as mesmas lizhes que
suas ovelhas lhe ensinaram.
"Tudo j uma coisa su", havia falado o velho.
O Mercador de Cristais viu o dia nascer, e sentiu a mesma angŪstia que
experimentava todas as manhgs. Estava hb quase trinta anos naquele mesmo
lugar, uma loja no alto de uma ladeira, onde raramente passava um comprador.
Agora era tarde para mudar qualquer coisa: tudo que havia aprendido na vida
era vender e comprar cristais. Houve um tempo em que muita gente conhecia
sua loja: mercadores brabes, geulogos franceses e ingleses, soldados alemges
sempre com dinheiro no bolso. Naquela jpoca era uma grande aventura vender
cristais, e ele pensava como ia ficar rico, e como ia ter belas mulheres em
sua velhice.
Depois o tempo foi passando, e a cidade tambjm. Ceuta cresceu mais que
Tvnger, e o comjrcio mudou de rumo. Os vizinhos mudaram-se, e ficaram apenas
algumas lojas na ladeira. Ningujm ia subir uma ladeira por causa de umas
poucas lojas.
Mas o Mercador de Cristais ngo tinha escolha. Tinha vivido trinta anos
de sua vida comprando e vendendo pezas de cristal, e agora era tarde demais
para mudar de rumo.
Durante a manhg inteira ficou olhando o pequeno movimento da rua. Fazia
aquilo hb anos, e jb sabia o horbrio de cada pessoa. Quando faltavam alguns
minutos para o almozo, um rapaz estrangeiro parou diante de sua vitrine.
Estava vestido normalmente, mas os olhos experimentados do Mercador de
Cristais conclunram que ele ngo tinha dinheiro. Mesmo assim resolveu entrar
e esperar alguns instantes, atj que o rapaz fosse embora.
Havia um cartaz na porta dizendo que ali se falavam vbrias lnnguas. O
rapaz viu um homem aparecer atrbs do balcgo.
Posso limpar estes vasos se vock quiser disse o rapaz. Assim como
eles estgo, nenhum comprador vai querer comprar.
O homem olhou sem dizer nada
Em troca, vock me paga um prato de comida.
O homem continuou em silkncio, e o rapaz sentiu que precisava tomar uma
decisgo. Dentro de seu alforje havia o casaco ngo ia precisar mais dele no
deserto. Tirou o casaco e comezou a limpar os vasos. Durante meia hora
limpou todos os vasos da vitrine; neste meio tempo entraram dois fregueses e
compraram cristais do homem.
Quando acabou de limpar tudo, ele pediu ao homem um prato de comida.
Vamos comer disse o Mercador de Cristais.
Colocou uma tabuleta na porta, e foram atj um minŪsculo bar no alto na
ladeira. Assim que sentaram na Ūnica mesa existente, o Mercador de Cristais
sorriu.
Ngo era preciso limpar nada disse. A lei do Alcorgo obriga a dar
de comer a quem tem fome.
Entgo por que me deixou fazer isto? perguntou o rapaz.
Porque os cristais estavam sujos. E tanto vock como eu precisbvamos
limpar as cabezas dos maus pensamentos.
Quando acabaram de comer, o Mercador virou-se para o rapaz:
Queria que vock trabalhasse na minha loja . Hoje entraram dois
fregueses enquanto vock limpava os vasos, e isto j um bom sinal.
"As pessoas falam muito em sinais", pensou o pastor. "Mas ngo percebem
o que estgo dizendo. Da mesma maneira que eu ngo percebia que hb muitos anos
falava com minhas ovelhas uma linguagem sem palavras".
Quer trabalhar para mim? insistiu o Mercador.
Posso trabalhar o resto do dia respondeu o rapaz. Limparei atj de
madrugada todos os cristais da loja. Em troca, preciso de dinheiro para
estar amanhg no Egito.
O velho riu de novo.
Mesmo que vock limpasse meus cristais durante um ano inteiro, mesmo
que vock ganhasse uma boa comissgo de vendas em cada um deles, ainda ia ter
que arranjar dinheiro emprestado para ir ao Egito. Existem milhares de
quilfmetros de deserto entre Tvnger e as Pirvmides.
Houve um momento de silkncio tgo grande, que a cidade parecia ter
adormecido. Jb ngo haviam mais os bazares, as discusshes dos mercadores, os
homens que subiam em minaretes e cantavam, as belas espadas com seus punhos
cravejados. Jb ngo havia mais a esperanza e a aventura, velhos reis e Lendas
Pessoais, o tesouro e as pirvmides. Era como se todo o mundo estivesse
quieto, porque a alma do rapaz estava em silkncio. Ngo havia. nem dor, nem
sofrimento, nem decepzgo: apenas um olhar vazio atravjs da pequena porta do
bar, e uma vontade imensa de morrer, de que tudo acabasse para sempre
naquele minuto.
O Mercador olhou espantado para o rapaz. Era como se toda a alegria que
tinha visto aquela manhg houvesse subitamente desaparecido.
Posso lhe dar dinheiro para voltar a sua terra, meu filho disse o
Mercador de Cristais.
O rapaz continuou em silkncio. Depois levantou-se, ajeitou as roupas, e
pegou seu alforje.
Vou trabalhar com o senhor disse.
E depois de outro silkncio demorado, concluiu:
Preciso de dinheiro para comprar algumas ovelhas.
Hb quase um mks o rapaz estava trabalhando para o Mercador de Cristais,
e ngo era exatamente o tipo de emprego que lhe fazia feliz. O Mercador
passava o dia inteiro resmungando atrbs do balcgo, pedindo que tomasse
cuidado com as pezas, que ngo deixasse quebrar nada.
Mas continuava no emprego porque o Mercador era um velho rabujento, mas
ngo era injusto; o rapaz recebia uma boa comissgo em cada peza vendida, e jb
havia conseguido juntar algum dinheiro. Naquela manhg havia feito certos
cblculos: se continuasse a trabalhar todos os dias como estava trabalhando,
ia precisar de um ano inteiro para poder comprar algumas ovelhas.
Gostaria de fazer uma estante para os cristais disse o rapaz ao
Mercador. Ela pode ser colocada do lado de fora, e atrair quem estb
passando lb embaixo da ladeira.
Nunca fiz uma estante antes respondeu o Mercador. As pessoas
passam e esbarram. Os cristais se quebram.
Quando eu andava pelo campo com as ovelhas, elas podiam morrer se
encontrassem uma cobra. Mas isto faz parte da vida das ovelhas e dos
pastores.
O Mercador atendeu um freguks que desejava trks vasos de cristal.
Estava vendendo melhor do que nunca, como se o mundo tivesse voltado no
tempo, para a jpoca em que a rua era uma das principais atrazhes de Tvnger.
O movimento jb melhorou bastante disse ao rapaz, quando o freguks
saiu. O dinheiro permite que eu viva melhor, e lhe devolverb as suas
ovelhas em pouco tempo. Para que exigir mais da vida?
Porque temos que seguir os sinais falou o rapaz, quase sem querer;
e arrependeu-se do que dissera, porque o Mercador nunca havia encontrado um
rei.
"Chama-se Princnpio Favorbvel, sorte de principiante. Porque a vida
quer que vock viva sua Lenda Pessoal", falara o velho.
O Mercador, entretanto, estava entendendo o que o rapaz falava. A
simples presenza dele na loja era um sinal, e com o passar dos dias, com o
dinheiro entrando na caixa, ele ngo estava arrependido de haver contratado o
espanhol. Mesmo que o rapaz estivesse ganhando mais do que devia; como ele
sempre havia achado que as vendas ngo mudavam mais, tinha oferecido uma
comissgo alta, e sua intuizgo dizia que em breve o garoto estaria de volta
as suas ovelhas.
Por que vock queria conhecer as Pirvmides? perguntou, para mudar o
assunto da estante.
Porque sempre me falaram nelas disse o rapaz, evitando falar no seu
sonho. Agora o tesouro era uma lembranza sempre dolorosa, e o rapaz evitava
pensar nisto.
Eu ngo conhezo ningujm aqui que queira atravessar o deserto su para
conhecer as Pirvmides disse o Mercador. Sgo apenas um monte de pedras.
Vock pode construir uma no seu quintal.
Vock nunca teve sonhos de viajar disse o rapaz, atendendo mais um
freguks que entrava na loja.
Dois dias depois o velho procurou o rapaz para falar da estante.
Ngo gosto de mudanzas disse o Mercador. Nem eu nem vock somos
como Hassan, o rico comerciante. Se ele erra numa compra, isto ngo o afeta
muito. Mas nus dois temos sempre que conviver com nossos erros.
"J verdade", pensou o rapaz.
Para que vock quer a estante? disse o Mercador.
Quero voltar mais rbpido para minhas ovelhas. Temos que aproveitar
quando a sorte estb do nosso lado, e fazer tudo para ajudb-la da mesma
maneira que ela estb nos ajudando. Chama-se Princnpio Favorbvel. Ou "sorte
de principiante".
O velho ficou calado por algum tempo. Depois disse:
O Profeta nos deu o Alcorgo, e nos deixou apenas cinco obrigazhes
para serem seguidas em nossa existkncia. A mais importante j a seguinte: su
existe um Deus. As outras sgo: rezar cinco vezes por dia, fazer jejum no mks
de Ramadg, fazer caridade com os pobres.
Parou de falar. Seus olhos ficaram cheios de bgua ao falar do Profeta.
Era um homem fervoroso, e mesmo com toda a sua impacikncia, procurava viver
sua vida de acordo com a lei muzulmana.
E qual a quinta obrigazgo? perguntou o rapaz.
Hb dois dias atrbs vock disse que eu nunca tive sonhos de viajar
respondeu o Mercador. A quinta obrigazgo de todo muzulmano j uma viagem.
Devemos ir, pelo menos uma vez na vida, a cidade sagrada de Meca.
"Meca j muito mais longe que as Pirvmides. Quando eu era jovem, preferi
juntar o pouco dinheiro que tinha para comezar esta loja. Pensava em ser
rico algum dia, para ir a Meca. Passei a ganhar dinheiro, mas ngo podia
deixar ningujm cuidando dos cristais, porque os cristais sgo coisas
delicadas. Ao mesmo tempo, via passar defronte a minha loja muitas pessoas
que seguiam na direzgo de Meca. Haviam alguns peregrinos ricos, que iam com
um sjquito de criados e de camelos, mas a maior parte das pessoas era muito
mais pobre do que eu era".
"Todas iam e voltavam contentes, e colocavam na porta de suas casas os
snmbolos da peregrinazgo. Uma delas, um sapateiro que vivia de remendar as
botas alheias, me disse que havia caminhado quase um ano pelo deserto, mas
que ficava sempre mais cansado quando tinha que caminhar alguns quarteirhes
em Tvnger para comprar couro".
Por que ngo vai a Meca agora? perguntou o rapaz.
Porque Meca j o que me mantjm vivo. J o que me faz ag'entar todos
estes dias iguais, estes vasos calados nas prateleiras, o almozo e o jantar
naquele restaurante horrnvel. Tenho medo de realizar meu sonho, e depois ngo
ter mais motivos para continuar vivo.
"Vock sonha com ovelhas e com pirvmides. J diferente de mim, porque
deseja realizar seus sonhos. Eu quero apenas sonhar com Meca. Jb imaginei
milhares de vezes a travessia do deserto, minha chegada na praza onde estb a
Pedra Sagrada, as sete voltas que devo dar em torno dela antes de tocb-la.
Jb imaginei quais pessoas estargo do meu lado, na minha frente, e as
conversas e orazhes que compartilharemos juntos. Mas tenho medo que seja uma
grande decepzgo, entgo prefiro apenas sonhar".
Neste dia, o Mercador deu permissgo ao rapaz para construir a estante.
Nem todos podem ver os sonhos da mesma maneira.
Mais dois meses se passaram, e a estante trouxe muitos fregueses a loja
dos cristais. O rapaz calculou que, se trabalhasse mais seis meses, poderia
voltar a Espanha e comprar sessenta ovelhas, e mais sessenta ovelhas. Em
menos de um ano ele teria duplicado seu rebanho, e ia poder negociar com os
brabes, porque jb conseguia falar aquela lnngua estranha. Depois daquela
manhg no mercado, ele ngo havia mais utilizado o Urim e o Tumim, porque o
Egito passou a ser apenas um sonho tgo distante para ele como era a cidade
de Meca para o Mercador. Entretanto, o rapaz agora estava contente com seu
trabalho, e pensava a todo momento no dia em que iria desembarcar em Tarifa
como um vencedor.
"Lembre-se de saber sempre o que quer", havia falado o velho rei. O
rapaz sabia, e estava trabalhando para isto. Talvez seu tesouro tivesse sido
chegar aquela terra estranha, encontrar um assaltante, e dobrar o nŪmero de
seu rebanho sem ter gasto um centavo sequer.
Estava orgulhoso de si mesmo. Havia aprendido coisas importantes, como
o comjrcio de cristais, linguagem sem palavras, e os sinais. Uma tarde viu
um homem no alto da ladeira, reclamando que era impossnvel encontrar um
lugar decente para beber alguma coisa depois de toda a subida. O rapaz jb
conhecia a linguagem dos sinais, e chamou o velho para conversar.
Vamos vender chb para as pessoas que sobem a ladeira disse ele.
Muitas pessoas vendem chb por aqui respondeu o Mercador.
Podemos vender chb em vasos de cristal. Assim as pessoas vgo gostar
do chb, e vgo querer comprar os cristais. Porque o que mais seduz os homens
j a beleza.
O Mercador olhou para o rapaz durante algum tempo. Ngo respondeu nada.
Mas naquela tarde, depois de fazer suas orazhes e fechar a loja, sentou-se
na calzada com ele e convidou-o a fumar narguilj aquele estranho cachimbo
que os brabes usavam.
O que vock estb procurando? perguntou o velho Mercador de Cristais.
Jb lhe disse. Preciso comprar de volta as ovelhas. E para isto j
necessbrio dinheiro.
O velho colocou algumas brasas novas no narguilj, e deu uma longa
tragada.
Hb trinta anos tenho esta loja. Conhezo o bom e o mau cristal, e
conhezo todos os detalhes do seu funcionamento. Estou acostumado com seu
tamanho e seu movimento. Se vock colocar chb em cristais, a loja irb
crescer. Entgo eu vou ter que mudar minha maneira de vida.
E isto ngo j bom?
Estou acostumado com minha vida. Antes de vock, eu pensava que havia
perdido tanto tempo no mesmo lugar, enquanto meus amigos todos mudavam,
quebravam, ou progrediam Isto me deixava com uma imensa tristeza. Agora eu
sei que ngo era bem assim: a loja tem o exato tamanho que eu sempre quis que
ela tivesse. Ngo quero mudar, porque ngo sei como mudar. Jb estou muito
acostumado comigo mesmo.
O rapaz ngo sabia o que dizer. O velho entgo continuou:
Vock foi uma bknzgo para mim. E hoje estou entendendo uma coisa: toda
bknzgo que ngo j aceita, transforma-se numa maldizgo. Eu ngo quero mais da
vida. E vock estb me forzando a ver riquezas e horizontes que eu nunca
conheci. Agora que os conhezo, e que conhezo minhas possibilidades imensas,
vou me sentir pior do que me sentia antes. Porque sei que posso ter tudo, e
ngo quero.
"Ainda bem que eu ngo disse nada ao pipoqueiro", pensou o rapaz.
Continuaram fumando o narguilj por algum tempo, enquanto o sol se
escondia. Estavam conversando em brabe, e o rapaz estava satisfeito consigo
mesmo, porque falava brabe. Houve uma jpoca em que ele achou que as ovelhas
podiam ensinar tudo sobre o mundo. Mas as ovelhas ngo sabiam ensinar brabe.
"Devem ter outras coisas no mundo que as ovelhas ngo sabem ensinar",
pensou o rapaz, enquanto olhava o Mercador em silkncio. "Porque elas su
estgo em busca de bgua e comida.
"Acho que ngo sgo elas que ensinam: eu j que aprendo".
Maktub disse finalmente o mercador.
O que j isto?
Vock precisaria ter nascido brabe para compreender respondeu ele.
Mas a traduzgo seria algo como "estb escrito".
E enquanto apagava as brasas do narguilj, disse que o rapaz podia
comezar a vender chb nos vasos. As vezes, j impossnvel deter o rio da vida.
Os homens subiam a ladeira e ficavam cansados. Entgo, lb no seu topo,
havia uma loja de belos cristais com chb de menta refrescante. Os homens
entravam para beber o chb, que era servido em lindos vasos de cristal.
"Jamais minha mulher pensou nisto", lembrava um, e comprava alguns
cristais, porque ia ter visitas naquela noite: seus convidados ficariam
impressionados com a riqueza das tazas. Outro homem passou a garantir que o
chb era sempre mais gostoso quando servido em recipientes de cristal, pois
conservavam melhor o aroma. Um terceiro disse ainda que era tradizgo no
Oriente utilizar vasos de cristal junto com chb, por causa de seus poderes
mbgicos.
Em pouco tempo, a novidade se espalhou, e muitas pessoas passaram a
subir atj o topo da ladeira para conhecer a loja que estava fazendo algo de
novo num comjrcio tgo antigo. Outras lojas de chb em copos de cristal foram
abertas, mas ngo ficavam em cima de uma ladeira, e por isso estavam sempre
vazias.
Em pouco tempo, o Mercador teve que contratar mais dois empregados.
Passou a importar, junto com os cristais, quantidades enormes de chb, que
eram diariamente consumidas pelos homens e mulheres com sede de coisas
novas.
E assim transcorreram seis meses.
O rapaz acordou antes do sol nascer. Tinham-se passado onze meses e
nove dias desde que ele havia pisado pela primeira vez no continente
africano.
Vestiu sua roupa brabe, de linho branco, comprada especialmente para
aquele dia. Colocou o lenzo na cabeza, fixo por um anel feito de pele de
camelo. Calzou as sandblias novas, e desceu sem fazer qualquer rundo.
A cidade ainda dormia. Ele fez um sandunche de gergelim, e bebeu chb
quente no vaso de cristal. Depois sentou-se na soleira da porta, fumando
sozinho o narguilj.
Fumou em silkncio, sem pensar em nada, escutando apenas o rundo sempre
constante do vento que soprava trazendo o cheiro do deserto. Depois que
acabou de f'umar, enfiou a mgo num dos bolsos do traje, e ficou alguns
instantes contemplando o que havia retirado lb de dentro.
Havia um grande mazo de dinheiro. O suficiente para comprar cento e
vinte ovelhas, uma passagem de volta, e uma licenza de comjrcio entre seu
pans e o pans onde estava.
Esperou pacientemente que o velho acordasse e abrisse a loja. Os dois
entgo foram juntos tomar mais chb.
Vou embora hoje disse o rapaz. Tenho dinheiro para comprar minhas
ovelhas. Vock tem dinheiro para ir a Meca.
O velho ngo disse nada.
Pezo sua bknzgo insistiu o rapaz. Vock me ajudou.
O velho continuou a preparar o chb em silkncio. Depois de um certo
tempo, porjm, virou-se para o rapaz.
Tenho orgulho de vock disse. Vock trouxe alma para a minha loja
de cristais. Mas sabe que eu ngo vou a Meca. Como sabe que ngo voltarb a
comprar ovelhas.
Quem lhe disse isto? perguntou o rapaz, assustado.
Maktub disse simplesmente o velho Mercador de Cristais.
E o abenzoou.
O rapaz foi atj seu quarto e juntou tudo que tinha. Eram trks sacolas
cheias. Quando jb estava saindo, notou que, num canto do quarto, havia seu
velho alforje de pastor. Estava todo amassado, e ele quase nem se lembrava
mais dele. Lb dentro estava ainda o mesmo livro e o casaco. Quando ele tirou
o casaco, pensando em dar de presente para um rapaz na rua, as duas pedras
rolaram pelo chgo. O Urim e o Tumim.
O rapaz entgo se lembrou do velho rei, e ficou surpreso em perceber hb
quanto tempo ngo pensava mais nisto. Durante um ano havia trabalhado sem
parar, pensando apenas em conseguir dinheiro para ngo voltar de cabeza baixa
para a Espanha.
"Nunca desista dos seus sonhos", havia falado o velho rei. "Siga os
sinais".
O rapaz pegou o Urim e o Tumim no chgo, e teve novamente aquela
estranha sensazgo de que o rei estava perto. Trabalhara duro durante um ano,
e os sinais indicavam que agora era o momento de partir.
"Vou voltar exatamente a ser o que era antes", pensou o rapaz. "E as
ovelhas ngo me ensinaram a falar brabe".
As ovelhas, entretanto, tinham ensinado uma coisa muito mais
importante: que havia uma linguagem no mundo que todos compreendiam, e que o
rapaz tinha utilizado durante todo aquele tempo para fazer a loja progredir.
Era a linguagem do entusiasmo, das coisas feitas com amor e com vontade, em
busca de algo que se desejava ou em que se acreditava. Tvnger jb ngo era
mais uma cidade estranha, e ele sentiu que da mesma maneira que tinha
conquistado aquele lugar, poderia conquistar o mundo.
"Quando vock deseja uma coisa, todo o Universo conspira para que possa
realizb-la", havia falado o velho rei.
Mas o velho rei ngo falara de assaltos, de desertos imensos, de pessoas
que conhecem os seus sonhos mas ngo desejam realizb-los. O velho rei ngo
havia falado que as Pirvmides eram apenas um monte de pedras, e qualquer um
podia fazer um monte de pedras em seu quintal. E tinha se esquecido de dizer
que, quando se tem dinheiro para comprar um rebanho maior do que o que
possuna, deve-se comprar este rebanho.
O rapaz pegou o alforje e juntou com seus outros sacos. Desceu as
escadas; o velho estava atendendo um casal estrangeiro, enquanto dois outros
fregueses andavam pela loja, tomando chb em vasos de cristal. Era um bom
movimento para aquela hora da manhg. Do lugar onde estava, notou pela
primeira vez que o cabelo do Mercador lembrava muito o cabelo do velho rei.
Lembrou-se do sorriso do doceiro, no primeira dia em Tvnger, quando ngo
tinha para onde ir nem o que comer; tambjm aquele sorriso lembrava o velho
rei.
"Como se ele tivesse passado por aqui e deixado uma marca", pensou. "E
cada pessoa ngo tivesse jb conhecido este rei em algum momento de suas
existkncias. Afinal de contas, ele disse que sempre aparecia para quem vive
sua Lenda Pessoal".
Saiu sem se despedir do Mercador de Cristais. Ngo queria chorar porque
as pessoas podiam ver. Mas ia ter saudade de todo aquele tempo, e de todas
as coisas boas que havia aprendido. Estava mais confiante em si e tinha
vontade de conquistar o mundo.
"Mas estou indo para os campos que jb conhezo, conduzir de novo as
ovelhas". E ngo estava mais contente com sua decisgo. Tinha trabalhado um
ano inteiro para realizar um sonho, e este sonho, a cada minuto, ia perdendo
sua importvncia. Talvez porque ngo fosse seu sonho.
"Quem sabe j melhor ser como o Mercador de Cristais: nunca ir a Meca, e
viver da vontade de conheck-la". Mas estava segurando o Urim e o Tumim nas
mgos, e estas pedras lhe traziam a forza e a vontade do velho rei. Por uma
coincidkncia ou um sinal, pensou o rapaz ele chegou ao bar onde havia
entrado no primeiro dia. Ngo havia mais o ladrgo, e o dono lhe trouxe uma
xncara de chb.
"Sempre poderei voltar a ser pastor", pensou o rapaz. "Aprendi a cuidar
das ovelhas, e nunca mais me esquecerei de como elas sgo. Mas talvez ngo
tenha outra oportunidade de chegar atj as Pirvmides do Egito. O velho tinha
um peitoral de ouro, e sabia minha histuria. Era um rei de verdade, um rei
sbbio".
Estava apenas a duas horas de barco das planncies de Andaluzia, mas
havia um deserto inteiro entre ele as Pirvmides. O rapaz percebeu talvez
esta maneira de pensar a mesma situazgo: na verdade, ele estava duas horas
mais perto do seu tesouro. Mesmo que, para caminhar estas duas horas,
tivesse demorado quase um ano inteiro.
"Sei porque quero voltar para minhas ovelhas. Eu jb conhezo as ovelhas;
ngo dgo muito trabalho, e podem ser amadas. Ngo sei se o deserto pode ser
amado, mas j o deserto que esconde o meu tesouro. Se eu ngo conseguir
encontrb-lo, poderei sempre voltar
para casa. Mas de repente a vida me deu dinheiro suficiente, e eu tenho
todo o tempo que preciso; por que ngo?"
Sentiu uma alegria imensa naquele momento. Sempre podia voltar a ser
pastor de ovelhas. Sempre podia voltar a ser vendedor de cristais. Talvez o
mundo tivesse muitos outros tesouros escondidos, mas ele havia tido um sonho
repetido e encontrado um rei. Ngo acontecia com qualquer pessoa.
Estava contente quando saiu do bar. Havia se lembrado que um dos
fornecedores do Mercador trazia os cristais em caravanas que cruzavam o
deserto. Manteve o Urim e o Tumim nas mgos; por causa daquelas duas pedras,
estava de volta ao caminho de seu tesouro.
"Sempre estou perto dos que vivem a Lenda Pessoal", dissera o velho
rei.
Ngo custava nada ir atj o armazjm, saber se as Pirvmides eram de fato
muito longe.
O Inglks estava sentado numa construzgo cheirando a animais, suor, e
poeira. Ngo podia chamar aquilo de armazjm; era apenas um curral. "Toda a
minha vida para ter que passar por um lugar como este", pensou enquanto
folheava distrando uma revista de qunmica. "Dez anos de estudo me conduzem a
um curral".
Mas era preciso seguir adiante. Tinha que acreditar em sinais. Toda a
sua vida, todos os seus estudos foram em busca da linguagem Ūnica que o
Universo falava. Primeiro havia se interessado por Esperanto, depois por
religihes, e finalmente por Alquimia. Sabia falar Esperanto, entendia
perfeitamente as diversas religihes, mas ainda ngo era um Alquimista. Tinha
conseguido decifrar coisas importantes, j verdade. Mas suas pesquisas
chegaram a um ponto onde ngo conseguia progredir mais. Tinha tentado em vgo
entrar em contato com algum alquimista. Mas os alquimistas eram pessoas
estranhas, que su pensavam neles mesmos, e quase sempre recusavam ajuda.
Quem sabe, ngo haviam descoberto o segredo da Grande Obra chamada de Pedra
Filosofal e por isso se fechavam no silkncio.
Jb havia gasto parte da fortuna que seu pai lhe deixara, buscando
inutilmente a Pedra Filosofal. Tinha freq'entado as melhores bibliotecas do
mundo, e comprado os livros mais importantes e mais raros sobre alquimia.
Num deles descobriu que hb muitos anos atrbs, um famoso alquimista brabe
havia visitado a Europa. Diziam que ele tinha mais de duzentos anos, que
havia descoberto a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida. O Inglks ficou
impressionado com a histuria. Mas tudo ngo teria passado de mais uma lenda,
se um amigo seu voltando de uma expedizgo arqueolugica no deserto ngo
lhe tivesse contado sobre um brabe que tinha poderes excepcionais.
Mora no obsis de Al-Fayoum disse seu amigo. E as pessoas contam
que tem duzentos anos, e que j capaz de transformar qualquer metal em ouro.
O Inglks ngo coube em si de tanta excitazgo. Imediatamente cancelou
todos os seus compromissos, juntou os livros mais importantes, e agora
estava ali, naquele armazjm parecido com um curral, enquanto lb fora uma
imensa caravana se preparava para cruzar o Saara. A caravana passava por
Al-Fayoum.
"Tenho que conhecer este maldito Alquimista", pensou o Inglks. E o
cheiro dos animais tornou-se um pouco mais tolerbvel.
Um jovem brabe, tambjm carregado de malas, entrou no lugar onde o
Inglks estava e o cumprimentou.
Aonde vock vai? perguntou o jovem brabe.
Para o deserto respondeu o Inglks, e voltou para a sua leitura. Ngo
queria conversar agora. Precisava recordar tudo que havia aprendido em dez
anos, pois o Alquimista deveria submetk-lo a alguma espjcie de prova.
O jovem brabe tirou um livro e comezou a ler. O livro estava escrito em
espanhol. "Ainda bem", pensou o Inglks. Sabia falar espanhol melhor que
brabe, e se este rapaz fosse atj Al-Fayoum, ia ter algujm para conversar
quando ngo estivesse ocupado com coisas importantes.
"Que coisa engrazada" pensou o rapaz enquanto tentava mais uma vez
ler a cena do enterro que iniciava o livro. "Faz quase dois anos que
comecei a ler, e ngo consigo passar destas pbginas". Mesmo sem um rei para
interrompk-lo, ele ngo conseguia se concentrar. Ainda estava em dŪvida
quanto a sua decisgo. Mas estava percebendo uma coisa importante: as
decishes eram apenas o comezo de alguma coisa. Quando algujm tomava uma
decisgo, na verdade estava mergulhando numa correnteza poderosa, que levava
a pessoa para um lugar que jamais havia sonhado na hora de decidir.
"Quando resolvi ir em busca do meu tesouro, nunca imaginei trabalhar
numa loja de cristais", pensou o rapaz, para confirmar seu raciocnnio. "Da
mesma maneira, esta caravana pode ser uma decisgo minha, mas seu percurso
serb sempre um mistjrio".
Na sua frente havia um europeu tambjm lendo um livro. O europeu era
antipbtico, e tinha olhado com desprezo quando ele entrou. Podiam atj ter se
tornado bons amigos, mas o europeu havia interrompido a conversa.
O rapaz fechou o livro. Ngo queria fazer nada que o deixasse parecido
com aquele europeu. Tirou o Urim e o Tumim do bolso, e comezou a brincar com
eles.
O estrangeiro deu um grito:
Um Urim e um Tumim!
O rapaz, mais que depressa, guardou as pedras no bolso.
Ngo estgo a venda disse.
Ngo valem muito disse o Inglks. Sgo cristais de rocha, nada mais.
Hb milhhes de cristais de rocha na terra, mas para quem entende, estes sgo
Urim e Tumim. Ngo sabia que eles existiam nesta parte do mundo.
Foi o presente de um rei disse o rapaz.
O estrangeiro ficou mudo. Depois enfiou a mgo no bolso e retirou,
tremendo, duas pedras iguais.
Vock falou em um rei disse.
E vock ngo acredita que os reis conversem com pastores disse o
rapaz, desta vez querendo encerrar a conversa.
Ao contrbrio. Os pastores foram os primeiros a reconhecer um rei que
o resto do mundo recusou-se a conhecer. Por isso j muito provbvel que os
reis conversem com pastores.
E completou, com medo que o rapaz ngo estivesse entendendo:
Estb na Bnblia. No mesmo livro que me ensinou a fazer este Urim e
este Tumim. Estas pedras eram a Ūnica forma de adivinhazgo permitida por
Deus. Os sacerdotes as carregavam num peitoral de ouro.
O rapaz ficou contente de estar naquele armazjm.
Talvez isto seja um sinal disse o Inglks, como quem pensa alto.
Quem lhe falou em sinais? o interesse do rapaz crescia a cada
momento.
Tudo na vida sgo sinais disse o Inglks, desta vez fechando a
revista que estava lendo. O Universo j feito por uma lnngua que todo mundo
entende, mas que jb se esqueceu. Estou procurando esta Linguagem Universal,
aljm de outras coisas.
"Por isso estou aqui. Porque tenho que encontrar um homem que conhece
esta Linguagem Universal. Um Alquimista."
A conversa foi interrompida pelo chefe do armazjm.
Vocks estgo com sorte disse o brabe gordo. Sai hoje a tarde uma
caravana para Al-Fayoum.
Mas eu vou ao Egito disse o rapaz.
Al-Fayoum j no Egito disse o dono.
Que tipo de brabe vock j?
O rapaz disse que era espanhol. O Inglks ficou satisfeito: mesmo
vestido como brabe, o rapaz pelo menos era europeu.
Ele chama de "sorte" os sinais disse o Inglks, depois que o gordo
brabe saiu. Se eu pudesse, escreveria uma gigantesca enciclopjdia sobre as
palavras "sorte" e "coincidkncia". J com estas palavras que se escreve a
Linguagem Universal.
Depois comentou com o rapaz que ngo havia sido "coincidkncia"
encontrb-lo com o Urim e o Tumim na mgo. Perguntou se ele tambjm estava indo
em busca do Alquimista.
Estou indo em busca de um tesouro disse o rapaz, e arrependeu-se
imediatamente. Mas o Inglks pareceu ngo dar importvncia.
De certa forma, eu tambjm estou, disse.
E nem sei o que quer dizer Alquimia completou o rapaz, quando o
dono do armazjm comezou a chamb-los para fora.
Eu sou o Lnder da Caravana disse um senhor de barba longa e olhos
escuros. Tenho poder de vida e de morte sobre cada pessoa que carrego.
Porque o deserto j uma mulher caprichosa, e as vezes deixa os homens loucos.
Haviam quase duzentas pessoas, e o dobro de animais. Eram camelos,
cavalos, burros, aves. O Inglks tinha vbrias malas, cheias de livros. Haviam
mulheres, crianzas, e vbrios homens com espadas na cintura e longas
espingardas nos ombros. Um imenso burburinho enchia o local, e o Lnder teve
que repetir vbrias vezes suas palavras para que todos entendessem.
Hb vbrios homens e deuses diferentes no corazgo destes homens. Mas
meu Ūnico Deus j Allah, e por ele eu juro que farei o possnvel e o melhor
para vencer mais uma vez o deserto. Agora quero que cada um de vocks jure
pelo Deus em que acredita, no fundo
do seu corazgo, de que irb me obedecer em qualquer circunstvncia. No
deserto, a desobedikncia significa a morte.
Um murmŪrio correu baixo por todas as pessoas. Estavam jurando em voz
baixa diante de seu Deus. O rapaz jurou por Jesus Cristo. O Inglks ficou em
silkncio. O murmŪrio se estendeu um tempo maior do que uma simples jura; as
pessoas tambjm estavam pedindo protezgo aos cjus.
Ouviu-se um longo toque de clarim, e cada um montou em seu animal. O
rapaz e o Inglks haviam comprado camelos, e subiram com uma certa
dificuldade. O rapaz ficou com pena do camelo do Inglks: estava carregado
com as pesadas sacolas de livros.
Ngo existem coincidkncias disse o Inglks, tentando continuar a
conversa que haviam iniciado no armazjm. Foi um amigo que me trouxe atj
aqui, porque conhecia um brabe, que...
Mas a caravana comezou a andar, e ficou impossnvel escutar o que o
Inglks estava dizendo. Entretanto, o rapaz sabia exatamente do que se
tratava: a cadeia misteriosa que vai unindo uma coisa com a outra, que o
tinha levado a ser pastor, a ter o mesmo sonho, e estar numa cidade perto da
Bfrica, e encontrar na praza um rei, e ser roubado para conhecer um mercador
de cristais, e...
"Quanto mais se chega perto do sonho, mais a Lenda Pessoal vai se
tornando a verdadeira razgo de viver", pensou o rapaz.
A caravana comezou a seguir em direzgo ao poente. Viajavam de manhg,
paravam quando o sol ficava mais forte, e seguiam de novo ao entardecer. O
rapaz conversava pouco com o Inglks, que passava a maior parte do tempo
entretido pelos livros.
Entgo, passou a observar em silkncio a marcha de animais e homens pelo
deserto. Agora tudo era muito diferente do dia em que haviam partido:
naquele dia, confusgo e gritos, choros e crianzas e relinchar de animais, se
misturavam com as ordens nervosas dos guias e dos comerciantes.
No deserto, porjm, havia apenas o vento eterno, o silkncio, e o casco
dos animais. Mesmo os guias conversavam pouco entre si.
"Jb cruzei muitas vezes estas areias" disse um cameleiro certa noite.
"Mas o deserto j tgo grande, os horizontes ficam tgo longe, que fazem a
gente se sentir pequeno e permanecer em silkncio".
O rapaz entendeu o que o cameleiro queria dizer, mesmo sem ter pisado
antes num deserto. Todas as vezes que olhava o mar ou o fogo, era capaz de
ficar horas em silkncio, sem pensar em nada, mergulhado na imensidgo e na
forza dos elementos.
"Aprendi com ovelhas e aprendi com cristais", pensou ele. "Posso tambjm
aprender com o deserto. Ele me parece mais velho e mais sbbio".
O vento ngo parava nunca. O rapaz lembrou-se do dia em que sentiu este
mesmo vento, sentado num forte em Tarifa. Talvez ele agora estivesse rozando
de leve pela lg de suas ovelhas, que seguiam em busca de alimento e bgua
pelos campos de Andaluzia.
"Ngo sgo mais minhas ovelhas", disse para si mesmo, sem sentir
saudades. "Devem ter se acostumado a um novo pastor, e jb me esqueceram.
Isto j bom. Quem estb acostumado a viajar, como as ovelhas, sabe que j
sempre necessbrio partir um dia".
Lembrou-se depois, da filha do comerciante, e teve certeza de que ela
jb havia casado. Quem sabe com um pipoqueiro, ou com um pastor que tambjm
soubesse ler e contasse histurias extraordinbrias; afinal, ele ngo devia ser
o Ūnico. Mas ficou impressionado com o seu pressentimento: talvez ele
estivesse aprendendo tambjm esta histuria de Linguagem Universal, que sabe o
passado e o presente de todos os homens. "Pressentimentos", como sua mge
costumava dizer. O rapaz comezou a entender que os pressentimentos eram os
rbpidos mergulhos que a alma dava nesta corrente Universal de vida, onde a
histuria de todos os homens estb ligada entre si, e podemos saber tudo,
porque tudo estb escrito.
"Maktub", disse o rapaz, lembrando-se do Mercador de Cristais.
O deserto era as vezes feito de areia, e as vezes feito de pedra. Se a
caravana chegava em frente a uma pedra, ela a contornava; se estavam diante
de um rochedo, davam uma longa volta. Se a areia era fina demais para o
casco dos camelos, procuravam um lugar onde a areia fosse mais resistente.
As vezes o chgo estava coberto de sal, no lugar onde um lago devia haver
existido. Os animais entgo se queixavam, e os cameleiros desciam e
desatolavam os animais. Depois colocavam as cargas nas pruprias costas,
passavam pelo chgo traizoeiro, e novamente carregavam os animais. Se um guia
ficava doente ou morria, os cameleiros lanzavam a sorte e escolhiam um novo
guia.
Mas tudo isto acontecia por uma Ūnica razgo: ngo importava quantas
voltas tivesse que dar, a caravana seguia sempre em direzgo a um mesmo
ponto. Depois de vencidos os obstbculos, ela voltava de novo sua frente para
o astro que indicava a posizgo
do obsis. Quando as pessoas viam aquele astro brilhando no cju pela
manhg, sabiam que ele indicava um lugar com mulheres, bgua, tvmaras e
palmeiras. Su o Inglks ngo percebia aquilo: estava a maior parte do tempo
imerso na leitura dos seus livros.
O rapaz tambjm tinha um livro, que havia tentado ler nos primeiros dias
de viagem. Mas achava muito mais interessante olhar a caravana e escutar o
vento. Assim que aprendeu a conhecer melhor seu camelo e a se afeizoar a
ele, jogou o livro fora. Era um peso desnecessbrio, apesar do rapaz haver
criado a superstizgo de que toda vez que abria o livro, encontrava algujm
importante.
Terminou fazendo amizade com o cameleiro que viajava sempre ao seu
lado. De noite, quando paravam em volta das fogueiras, costumava contar suas
aventuras como pastor ao cameleiro.
Numa destas conversas o cameleiro comezou a falar de sua vida.
Eu morava num lugar perto de El Cairum contou. Tinha minha horta,
meus filhos e uma vida que ngo ia mudar atj o dia de minha morte. Num ano em
que a colheita foi melhor, seguimos todos para Meca, e eu cumpri a Ūnica
obrigazgo que estava faltando na minha vida. Podia morrer em paz, e gostava
disto.
"Certo dia a terra comezou a tremer, e o Nilo subiu aljm do seu limite.
Aquilo que eu pensava que su acontecia com os outros, terminou acontecendo
comigo. Meus vizinhos tiveram medo de perder suas oliveiras com a inundazgo;
minha mulher teve receio de que nossos filhos fossem levados pelas bguas. E
eu tive pavor de ver destrundo tudo que havia conquistado.
"Mas ngo houve jeito. A terra ficou imprestbvel e tive que arranjar
outro meio de vida.
Hoje sou cameleiro. Mas an entendi a palavra de Allah: ningujm sente
medo do desconhecido, porque qualquer pessoa j capaz de conquistar tudo que
quer e necessita.
"Su sentimos medo de perder aquilo que temos, sejam nossas vidas ou
nossas plantazhes. Mas este medo passa quando entendemos que nossa histuria
e a histuria do mundo foram escritas pela mesma Mgo".
As vezes as caravanas se encontravam durante a noite. Sempre uma delas
tinha o que a outra estava precisando como se realmente tudo fosse escrito
por uma su Mgo. Os cameleiros trocavam informazhes sobre as tempestades de
vento, e se reuniam em torno das fogueiras, contando as histurias do
deserto.
Outras vezes chegavam misteriosos homens encapuzados; eram bedunnos que
espionavam a rota seguida pelas caravanas. Davam notncias de assaltantes e
tribos bbrbaras. Chegavam no silkncio e partiam no silkncio, com as roupas
negras deixando apenas os olhos de fora.
Numa destas noites o cameleiro veio atj a fogueira onde o rapaz e o
Inglks estavam sentados.
Hb rumores de guerra entre os clgs disse o cameleiro.
Os trks ficaram quietos. O rapaz notou que havia medo no ar, mesmo que
ningujm tivesse dito nenhuma palavra. Mais uma vez estava percebendo a
linguagem sem palavras, a Linguagem Universal.
Depois de certo tempo, o Inglks perguntou se havia perigo.
Quem entra no deserto ngo pode voltar disse o cameleiro. Quando
ngo se pode voltar, su devemos ficar preocupado com a melhor maneira de
seguir em frente. O resto j por conta de Allah, inclusive o perigo.
E concluiu dizendo a misteriosa palavra: "Maktub".
Vock precisa prestar mais atenzgo as caravanas disse o rapaz ao
Inglks, depois que o cameleiro saiu. Elas dgo muitas voltas, mas rumam
sempre para o mesmo lugar.
E vock devia ler mais sobre o mundo respondeu o Inglks. Os livros
sgo iguais as caravanas.
O imenso grupo de homens e animais comezou a andar mais rbpido. Aljm do
silkncio durante o dia, as noites quando as pessoas costumavam se reunir
para conversar em torno das fogueiras comezaram a ficar tambjm
silenciosas. Certo dia o Lnder da Caravana decidiu que nem fogueiras podiam
mais ser acesas, para ngo chamar a atenzgo sobre a caravana.
Os viajantes passaram a fazer uma roda de animais, e dormiam todos
juntos no centro, tentando se proteger do frio noturno. O Lnder passou a
instalar sentinelas armadas em volta do grupo.
Numa daquelas noites o Inglks ngo conseguiu dormir. Chamou o rapaz e
comezaram a passear pelas dunas em volta do acampamento. Era uma noite de
lua cheia, e o rapaz contou ao Inglks toda a sua histuria.
O Inglks ficou fascinado com a loja que havia progredido depois que o
rapaz comezou a trabalhar nela.
Este j o princnpio que move todas as coisas disse. Na Alquimia j
chamado de Alma do Mundo. Quando vock deseja algo de todo o seu corazgo,
vock estb mais pruximo da Alma do Mundo. Ela j sempre uma forza positiva.
Disse tambjm que isto ngo era apenas um dom dos homens: todas as coisas
sobre a face da Terra tinham tambjm uma alma, ngo importando se era mineral,
vegetal, animal, ou apenas um simples pensamento.
Tudo que estb sob e sobre a face da Terra se transforma sempre,
porque a Terra estb viva; e tem uma alma. Somos parte desta Alma, e
raramente sabemos que ela sempre trabalha em nosso favor. Mas vock deve
entender que, na loja dos cristais, atj mesmo os vasos estavam colaborando
para o seu sucesso.
O rapaz ficou em silkncio por algum tempo, olhando a lua e a areia
branca.
Tenho visto a caravana caminhando atravjs do deserto disse, por
fim. Ela e o deserto falam a mesma lnngua, e por isso ele permite que ela
o atravesse. Vai testar cada passo seu, para ver se estb em perfeita
sintonia com ele; e se estiver, ela chegarb atj o obsis.
"Se um de nus chegasse aqui com muita coragem, mas sem entender esta
lnngua, ia morrer no primeiro dia."
Continuaram olhando a lua, juntos.
Esta j a magia dos sinais continuou o rapaz. Tenho visto como os
guias lkem os sinais do deserto, e como a alma da caravana conversa com a
alma do deserto.
Depois de algum tempo, foi a vez do Inglks falar.
Preciso prestar mais atenzgo a caravana disse, por fim.
E eu preciso ler seus livros falou o rapaz.
Eram livros estranhos. Falavam em mercŪrio, sal, draghes e reis, mas
ele ngo conseguia entender nada. Entretanto, havia uma idjia que parecia
repetida em quase todos os livros: todas as coisas eram manifestazhes de uma
coisa su.
Num dos livros ele descobriu que o texto mais importante da Alquimia
tinha apenas poucas linhas, e havia sido escrito numa simples esmeralda.
J a Tbboa da Esmeralda falou o Inglks, orgulhoso por ensinar alguma
coisa ao rapaz.
E entgo, para que tantos livros?
Para entender estas linhas respondeu o Inglks, sem estar muito
convencido da prupria resposta.
O livro que mais interessou ao rapaz contava a histuria dos alquimistas
famosos. Eram homens que tinham dedicado sua vida inteira a purificar metais
nos laboraturios; acreditavam que se um metal fosse cozinhado durante muitos
e muitos anos, terminaria se libertando de todas as suas propriedades
individuais, e em seu lugar sobrava apenas a Alma do Mundo. Esta Coisa Žnica
permitia que os alquimistas entendessem qualquer coisa sobre a face da
Terra, porque ela era a linguagem pela qual as coisas se comunicavam. Eles
chamavam esta descoberta de Grande Obra que era composta de uma parte
lnquida e uma parte sulida.
Ngo basta observar os homens e os sinais, para se descobrir esta
linguagem? perguntou o rapaz.
Vock tem mania de simplificar tudo respondeu o Inglks irritado. A
Alquimia j um trabalho sjrio. Precisa que cada passo seja seguido exatamente
como os mestres ensinaram.
O rapaz descobriu que a parte lnquida da Grande Obra era chamada de
Elixir da Longa Vida, e curava todas as doenzas, aljm de evitar que o
alquimista ficasse velho. E a parte sulida era camada de Pedra Filosofal.
Ngo j fbcil descobrir a Pedra Filosofal disse o Inglks. Os
alquimistas ficavam muitos anos nos laboraturios, olhando aquele fogo que
purificava os metais. Olhavam tanto o fogo, que aos poucos suas cabezas iam
perdendo todas as vaidades do mundo. Entgo, um belo dia, descobriam que a
purificazgo dos metais havia terminado por purificar a eles mesmos.
O rapaz se lembrou do Mercador de Cristais. Ele havia falado que tinha
sido bom limpar seus vasos, para que ambos se libertassem tambjm dos maus
pensamentos. Estava cada vez mais convencido de que a Alquimia poderia ser
aprendida na vida dibria.
Aljm disso falou o Inglks a Pedra Filosofal tem uma propriedade
fascinante. Uma pequena lasca dela j capaz de transformar grandes
quantidades de metal em ouro.
A partir desta frase, o rapaz ficou interessadnssimo em Alquimia.
Pensava que, com um pouco de pacikncia, poderia transformar tudo em ouro.
Leu a vida de vbrias pessoas que tinham conseguido: Helvetius, Elias,
Fulcanelli, Geber. Eram histurias fascinantes: todos estavam vivendo atj o
fim sua Lenda Pessoal. Viajavam, encontravam sbbios, faziam milagres na
frente dos incrjdulos, possunam a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida.
Mas quando queria aprender a maneira de conseguir a Grande Obra, ficava
completamente perdido. Eram apenas desenhos, instruzhes em cudigo, textos
obscuros.
Por que eles falam tgo difncil? perguntou certa noite ao Inglks.
Notou tambjm que o Inglks andava meio aborrecido e sentindo falta de seus
livros.
Para que su os que tkm responsabilidade de entender que entendam
disse ele. Imagine se todo mundo sansse transformando chumbo em ouro.
Daqui a pouco o ouro ngo ia valer nada.
"Su os persistentes, su aqueles que pesquisam muito, j que conseguem a
Grande Obra. Por isso estou no meio deste deserto. Para encontrar um
verdadeiro Alquimista, que me ajude a decifrar os cudigos".
Quando foram escritos estes livros? perguntou o rapaz.
Hb muitos sjculos atrbs.
Naquela jpoca ngo havia imprensa insistiu o rapaz. Ngo havia jeito
de todo mundo tomar conhecimento da Alquimia. Por que esta linguagem tgo
estranha, cheia de desenhos?
O Inglks ngo respondeu nada. Disse que hb vbrios dias estava prestando
atenzgo a caravana, e que ngo conseguia descobrir nada de novo. A Ūnica
coisa que tinha notado era que os comentbrios sobre a guerra aumentavam cada
vez mais.
Um belo dia o rapaz entregou de volta os livros ao Inglks.
Entgo, aprendeu muita coisa? perguntou o outro, cheio de
expectativa. Estava precisando de algujm com quem pudesse conversar para
esquecer o medo da guerra.
Aprendi que o mundo tem uma Alma, e quem entender esta Alma,
entenderb a linguagem das coisas. Aprendi que muitos alquimistas viveram sua
Lenda Pessoal e terminaram descobrindo a Alma do Mundo, a Pedra Filosofal, o
Elixir.
"Mas, sobretudo, aprendi que estas coisas sgo tgo simples que podem ser
escritas numa esmeralda".
O Inglks ficou decepcionado. Os anos de estudo, os snmbolos mbgicos, as
palavras difnceis, os aparelhos de laboraturio, nada disso havia
impressionado o rapaz. "Ele deve ter uma alma primitiva demais para
compreender isto", apensou.
Pegou seus livros e guardou nos sacos que pendiam do camelo.
Volte para sua caravana disse. Ela tampouco me ensinou qualquer
coisa.
O rapaz voltou a contemplar o silkncio do deserto e a areia levantada
pelos animais. "Cada um tem sua maneira de aprender", repetia consigo mesmo.
"A maneira dele ngo j a minha, e minha maneira ngo j a dele. Mas ambos
estamos em busca de nossa Lenda Pessoal, e eu o respeito por isto".
A caravana comezou a viajar dia e noite . A toda hora apareciam os
mensageiros encapuzados, e o cameleiro que haviam se tornado amigo do
rapaz explicou que a guerra entre os clgs havia comezado. Teriam muita
sorte se conseguissem chegar ao obsis.
Os animais estavam exaustos, e os homens cada vez mais silenciosos. O
silkncio era mais terrnvel na parte da noite, quando um simples relincho de
camelo que antes ngo passava de um relincho de camelo agora assustava a
todos e podia ser um sinal de invasgo.
O cameleiro, porjm, parecia ngo se impressionar muito com a ameaza de
guerra.
Estou vivo disse ao rapaz, enquanto comia um prato de tvmaras na
noite sem fogueiras e sem lua. Enquanto estou comendo, ngo fazo nada aljm
de comer. Se estiver caminhando, apenas caminharei. Se tiver que lutar, serb
um dia tgo bom para morrer como qualquer outro.
"Porque ngo vivo nem no meu passado, nem no meu futuro. Tenho apenas o
presente, e ele j o que me interessa. Se vock puder permanecer sempre no
presente, entgo serb um homem feliz. Vai perceber que no deserto existe
vida, que o cju tem estrelas, e que os guerreiros lutam porque isto faz
parte da raza humana. A vida serb uma festa, um grande festival, porque ela
j sempre e apenas o momento que estamos vivendo."
Duas noites depois, quando se preparava para dormir, o rapaz olhou em
direzgo ao astro que seguiam durante a noite. Achou que o horizonte estava
um pouco mais baixo, porque em cima do deserto haviam centenas de estrelas.
J o obsis disse o cameleiro.
E porque ngo chegamos lb imediatamente?
Porque precisamos dormir.
O rapaz abriu os olhos quando o sol comezava a surgir no horizonte.
Diante dele, onde as pequenas estrelas haviam estado durante a noite,
estendia-se uma fila interminbvel de tamareiras, cobrindo toda a frente do
deserto.
Conseguimos! disse o Inglks, que tambjm tinha acabado de acordar.
O rapaz, porjm, mantinha-se calado. Aprendera o silkncio do deserto, e
contentava-se em olhar as tamareiras na sua frente. Ainda tinha que caminhar
muito para chegar atj as Pirvmides, e algum dia aquela manhg seria apenas
uma lembranza. Mas agora ela era o momento presente, a festa da qual havia
falado o cameleiro, e ele estava procurando vivk-lo com as lizhes do seu
passado e os sonhos do seu futuro. Um dia, aquela visgo de milhares de
tamareiras seria apenas uma lembranza. Mas para ele, neste momento,
significava sombra, bgua, e um refŪgio para a guerra. Assim como um relincho
de camelo podia se transformar em perigo, uma fila de tamareiras podia
significar um milagre.
"O mundo fala muitas linguagens", pensou o rapaz.
"Quando os tempos andam depressa, as caravanas correm tambjm", pensou o
Alquimista, enquanto via chegar centenas de pessoas e animais ao Obsis. As
pessoas gritavam atrbs dos recjm-chegados, a poeira encobria o sol do
deserto, e as crianzas pulavam de excitazgo ao ver os estranhos. O
Alquimista percebeu os chefes tribais se aproximarem do Lnder da Caravana, e
conversarem longamente entre si.
Mas nada daquilo interessava ao Alquimista. Jb havia visto muita gente
chegar e partir, enquanto o Obsis e o deserto permaneciam o mesmo. Tinha
visto reis e mendigos pisando aquelas areias que sempre mudavam de forma por
causa do vento, mas que eram as mesmas que havia conhecido quando crianza.
Mesmo assim, ngo conseguia conter no fundo do seu corazgo um pouco da
alegria de vida que todo viajante experimentava quando, depois de terra
amarela e cju azul, o verde das tamareiras aparecia diante de seus olhos.
"Talvez Deus tenha criado o deserto para que o homem pudesse sorrir com as
tamareiras", pensou ele.
Depois resolveu concentrar-se em assuntos mais prbticos. Sabia que
naquela caravana vinha o homem a quem devia ensinar parte de seus segredos.
Os sinais lhe haviam contado isto. Ainda ngo conhecia este homem, mas seus
olhos experimentados o reconheceriam quando o visse. Esperava que fosse
algujm tgo capaz como seu aprendiz anterior.
"Ngo sei porque estas coisas tem que ser transmitidas de boca para
ouvido", pensava ele. Ngo era exatamente porque as coisas eram secretas;
Deus revelava prodigamente seus segredos a todas as criaturas.
Ele su conhecia uma explicazgo para este fato: as coisas tinham que ser
transmitidas assim porque elas seriam feitas de Vida Pura, e este tipo de
vida dificilmente consegue ser capturado em pinturas ou palavras.
Porque as pessoas se fascinam com pinturas e palavras, e terminam se
esquecendo da Linguagem do Mundo.
Os recjm-chegados foram trazidos imediatamente a presenza dos chefes
tribais de Al-Fayoum. O rapaz ngo podia acreditar no que estava vendo: ao
invjs de um pozo cercado de algumas palmeiras como havia lido certa vez
num livro de histuria o obsis era muito maior do que vbrias aldeias da
Espanha. Tinha trezentos pozos, cinq'enta mil tamareiras, e muitas tendas
coloridas espalhadas entre elas.
Parece as Mil e Uma Noites disse o Inglks, impaciente para
encontrar-se logo com o Alquimista.
Foram cercados logo pelas crianzas, que olhavam curiosas os animais, os
camelos, e as pessoas que chegavam. Os homens queriam saber se tinham visto
algum combate, e as mulheres disputavam entre si os tecidos e pedras que os
mercadores haviam trazido. O silkncio do deserto parecia um sonho distante;
as pessoas falavam sem parar, riam e gritavam, como se tivessem sando de um
mundo espiritual, para estarem de novo entre os homens. Estavam contentes e
felizes.
Apesar das precauzhes do dia anterior, o cameleiro explicou ao rapaz
que os obsis no deserto eram sempre considerados terrenos neutros, porque a
maior parte dos habitantes eram mulheres e crianzas. E haviam obsis tanto de
um lado como de outro; assim, os guerreiros iam lutar do deserto, e deixavam
os obsis como cidades de refŪgio.
O Lnder da Caravana reuniu todos com uma certa dificuldade, e comezou a
dar as instruzhes. Iam permanecer ali atj que a guerra entre os clgs tivesse
terminada. Como eram visitantes, deviam compartilhar as tendas com
habitantes do obsis, que lhes dariam seus melhores lugares. Era a
hospitalidade da Lei. Depois pediu que todos, inclusive seus pruprios
sentinelas, entregassem as armas aos homens indicados pelos chefes tribais.
Sgo as regras da Guerra explicou o Lnder da Caravana. Desta
maneira, os obsis ngo poderiam abrigar exjrcitos ou guerreiros.
Para surpresa do rapaz, o Inglks tirou de seu casaco um revulver
cromado e entregou ao homem que recolhia as armas.
Para que um revulver? perguntou.
Para aprender a confiar nos homens respondeu o Inglks. Estava
contente por haver chegado ao final de sua busca.
O rapaz, porjm, pensava em seu tesouro. Quanto mais perto ele ficava de
seu sonho, mais as coisas se tornavam difnceis. Ngo funcionava mais aquilo
que o velho rei havia chamado de "sorte de principiante". O que funcionava,
sabia ele, era o teste da persistkncia e da coragem de quem busca sua Lenda
Pessoal. Por isso ele ngo podia se apressar, nem ficar impaciente. Se agisse
assim, ia terminar sem ver os sinais que Deus havia posto no seu caminho.
"Deus colocou no meu caminho", pensou o rapaz, surpreso consigo mesmo.
Atj aquele momento considerava os sinais como uma coisa do mundo. Algo como
comer ou dormir, algo como procurar um amor, ou conseguir um emprego. Nunca
tinha pensado que esta era uma linguagem que Deus estava usando para
mostrar-lhe o que devia fazer.
"Ngo fique impaciente", repetiu o rapaz para si mesmo. "Como disse o
cameleiro, coma na hora de comer. E caminhe na hora de caminhar".
No primeiro dia todos dormiram de cansazo, inclusive o Inglks. O rapaz
havia ficado longe dele, numa tenda com outros cinco rapazes de idade quase
igual a sua. Eram gente do deserto, e queriam saber histurias das grandes
cidades.
O rapaz falou de sua vida como pastor, e ia comezar a contar sua
experikncia na loja de cristais, quando o Inglks entrou na tenda.
Procurei-o a manhg inteira disse, enquanto carregava o rapaz para
fora. Preciso que me ajude a descobrir onde mora o Alquimista.
Primeiro os dois tentaram encontrar sozinhos. Um Alquimista devia viver
de maneira diferente das outras pessoas do obsis, e em sua tenda era muito
provbvel que um forno estivesse sempre aceso. Andaram bastante, atj ficarem
convencidos que o obsis era muito maior do que podiam imaginar, e com muitas
centenas de tendas.
Perdemos quase o dia inteiro disse o Inglks, sentando-se com o
rapaz perto de um dos pozos do obsis.
Talvez seja melhor perguntarmos disse o rapaz.
O Inglks ngo queria contar aos outros sua presenza no Obsis, e ficou
bastante indeciso. Mas acabou concordando e pediu ao rapaz, que falava
melhor o brabe, para fazer isto. O rapaz se aproximou de uma mulher que
havia chegado no pozo para encher de bgua um saco de pele de carneiro.
Boa tarde, senhora. Gostaria de saber onde vive um Alquimista neste
obsis perguntou o rapaz.
A mulher disse que jamais havia ouvido falar disso, e foi imediatamente
embora. Antes, porjm, avisou ao rapaz que ngo deveria conversar com mulheres
vestidas de preto, porque eram mulheres casadas. Ele tinha que respeitar a
Tradizgo.
O Inglks ficou decepcionadnssimo. Tinha feito toda a sua viagem por
nada. O rapaz tambjm ficou triste; seu companheiro tambjm estava em busca de
sua Lenda Pessoal. E quando algujm faz isto, o Universo todo se esforza para
que a pessoa consiga o que deseja, dissera o velho rei. Ele ngo podia estar
enganado.
Eu nunca tinha ouvido falar antes de alquimistas disse o rapaz.
Sengo tentaria ajudb-lo.
Alguma coisa brilhou nos olhos do Inglks.
J isto! Talvez ningujm aqui saiba o que j um alquimista! Pergunte
pelo homem que cura todas as doenzas da aldeia!
Vbrias mulheres vestidas de preto vieram buscar bgua no pozo, e o rapaz
ngo conversou com elas, por mais que o Inglks insistisse. Atj que um homem
se aproximou.
Conhece algujm que cura as doenzas da aldeia? perguntou o rapaz.
Allah cura todas as doenzas, disse o homem, visivelmente apavorado
com os estrangeiros. Vocks estgo em busca de bruxos.
E depois de dizer alguns versnculos do Alcorgo, seguiu seu caminho.
Um outro homem se aproximou. Era mais velho, e trazia apenas um pequeno
balde. O rapaz repetiu a pergunta.
Por que vocks querem conhecer este tipo de homem? respondeu o brabe
com outra pergunta.
Porque meu amigo viajou muitos meses para encontrb-lo disse o
rapaz.
Se este homem existe no obsis, deve ser muito poderoso disse o
velho, depois de pensar por alguns instantes. Nem os chefes tribais
conseguiriam vk-lo quando precisam. Su quando ele assim determinasse.
"Esperem o final da guerra. E entgo partam com a caravana. Ngo procurem
entrar na vida do obsis", concluiu, se afastando.
Mas o Inglks ficou exultante. Estavam na pista certa.
Finalmente surgiu uma moza que ngo estava vestida de negro. Trazia um
cvntaro no ombro, e a cabeza coberta com um vju, mas tinha o rosto
descoberto. O rapaz aproximou-se para perguntar sobre o Alquimista.
Entgo foi como se o tempo parasse, e a Alma do Mundo surgisse com toda
a forza diante do rapaz. Quando ele olhou seus olhos negros, seus lbbios
indecisos entre um sorriso e o silkncio, ele entendeu a parte mais
importante e mais sbbia da Linguagem que o mundo falava, e que todas as
pessoas da terra eram capazes de entender em seus corazhes. E isto era
chamado de Amor, uma coisa mais antiga que os homens e que o pruprio
deserto, e que no entanto ressurgia sempre com a mesma forza onde quer que
dois pares de olhos se cruzassem como se cruzaram aqueles dois pares de
olhos diante de um pozo. Os lbbios finalmente resolveram dar um sorriso, e
aquilo era um sinal, o sinal que ele esperou sem saber durante tanto tempo
em sua vida, que tinha buscado nas ovelhas e nos livros, nos cristais e no
silkncio do deserto.
Ali estava a pura linguagem do mundo, sem explicazhes, porque o
Universo ngo precisava de explicazhes para continuar seu caminho no espazo
sem fim. Tudo o que o rapaz entendia naquele momento era que estava diante
da mulher de sua vida, e sem nenhuma necessidade de palavras, ela devia
saber disto tambjm. Tinha mais certeza disto do que de qualquer coisa no
mundo, mesmo que seus pais, e os pais de seus pais dissessem que era preciso
namorar, noivar, conhecer a pessoa e ter dinheiro antes de se casar. Quem
dizia isto talvez jamais tivesse conhecido a linguagem universal, porque
quando se mergulha nela, j fbcil entender que sempre existe no mundo uma
pessoa que espera a outra, seja no meio de um deserto, seja no meio das
grandes cidades. E quando estas pessoas se cruzam, e seus olhos se
encontram, todo o passado e todo o futuro perde qualquer importvncia, e su
existe aquele momento, e aquela certeza incrnvel de que todas as coisas
debaixo do sol foram escritas pela mesma Mgo. A Mgo que desperta o Amor, e
que fez uma alma gkmea para cada pessoa que trabalha, descansa e busca
tesouros debaixo do sol. Porque sem isto ngo haveria qualquer sentido para
os sonhos da raza humana.
"Maktub", pensou o rapaz.
O Inglks levantou-se de onde estava sentado e sacudiu o rapaz.
Vamos, pergunte a ela!
O rapaz se aproximou da moza. Ela tornou a sorrir. Ele sorriu tambjm.
Como vock se chama? perguntou.
Me chamo Fbtima disse a moza, olhando para o chgo.
J um nome que algumas mulheres tem na terra de onde venho.
J o nome da filha do Profeta disse Fbtima. Os guerreiros os
levaram para lb.
A moza delicada falava de guerreiros com orgulho. Ao seu lado o Inglks
insistia, e o rapaz perguntou pelo homem que curava todas as doenzas.
J um homem que conhece os segredos do mundo. Conversa com os djins do
deserto ela falou.
Os djins eram os demfnios. E a moza apontou para o sul, para o lugar
onde aquele estranho homem morava.
Depois encheu seu cvntaro e partiu. O Inglks partiu tambjm, em busca do
Alquimista. E o rapaz ficou por muito tempo sentado ao lado do pozo,
entendendo que algum dia o Levante havia deixado em seu rosto o perfume
daquela mulher, e que jb a amava antes mesmo de saber que ela existia, e que
seu amor por ela faria com que encontrasse todos os tesouros do mundo.
No dia seguinte o rapaz voltou para o pozo, para esperar a moza. Para
sua surpresa, encontrou lb o Inglks, olhando pela primeira vez o deserto.
Esperei a tarde e a noite disse o Inglks. Ele chegou junto com as
primeiras estrelas. Eu lhe contei o que estava procurando. Entgo ele me
perguntou se jb havia transformado chumbo em ouro. Eu disse que era isto que
queria aprender.
"Ele me mandou tentar. Foi tudo que me disse: vb tentar".
O rapaz ficou quieto. O Inglks havia viajado tanto para ouvir o que jb
sabia. An ele se lembrou de que tinha dado seis ovelhas ao velho rei pela
mesma razgo.
Entgo tente disse para o Inglks.
J isto que vou fazer. E vou comezar agora.
Pouco depois que o Inglks saiu, Fbtima chegou para apanhar bgua com seu
cvntaro.
Vim dizer-lhe uma coisa simples falou o rapaz. Eu quero que vock
seja minha mulher. Eu te amo.
A moza deixou que seu cvntaro derramasse a bgua.
Vou esperb-la todos os dias aqui. Cruzei o deserto em busca de um
tesouro que se encontra perto das pirvmides. A guerra foi para mim uma
maldizgo. Agora ela j uma bknzgo, porque me deixa perto de vock.
A guerra um dia vai acabar disse a moza.
O rapaz olhou as tamareiras do obsis. Havia sido pastor. E ali existiam
muitas ovelhas. Fbtima era mais importante que o tesouro.
Os guerreiros buscam seus tesouros disse a moza, como se estivesse
adivinhando o pensamento do rapaz. E as mulheres do deserto tkm orgulho
dos seus guerreiros.
Depois tornou a encher seu cvntaro, e foi embora.
Todos os dias o rapaz ia para o pozo esperar Fbtima. Contou-lhe de sua
vida de pastor, do rei, da loja de cristais. Ficaram amigos, e com excezgo
quinze minutos que passava com ela, o resto do dia custava infinitamente a
passar. Quando jb estava hb quase um mks no obsis, o Lnder da Caravana
convocou a todos para uma reunigo.
Ngo sabemos quando a guerra vai acabar, e ngo podemos seguir viagem
disse.
Os combates devem durar por muito tempo, talvez muitos anos. Existem
guerreiros fortes e valentes de ambos os lados, e existe a honra de combater
em ambos os exjrcitos. Ngo j uma guerra entre bons e maus. J uma guerra
entre forzas que lutam pelo mesmo poder, e quando este tipo de batalha
comeza, demora mais que as outras porque Allah estb dos dois lados.
As pessoas se dispersaram. O rapaz tornou a encontrar-se com Fbtima
aquela tarde, e contou da reunigo.
No segundo dia que nos encontramos disse Fbtima vock me falou do
seu amor. Depois me ensinou coisas belas, como a Linguagem e a Alma do
Mundo. Tudo isto me faz aos poucos ser parte de vock.
O rapaz ouvia sua voz, e achava mais bela que o barulho do vento nas
folhas das tamareiras.
Faz muito tempo, que estive aqui neste pozo esperando por vock. Ngo
consigo me lembrar do meu passado, da Tradizgo, da maneira que os homens
esperam que se comportem as mulheres do deserto. Desde crianza eu sonhava
que o deserto ia me trazer o maior presente de minha vida. Este presente
chegou afinal, e j vock.
O rapaz pensou em tocar sua mgo. Mas Fbtima segurava as alzas do
cvntaro.
Vock me falou dos seus sonhos, do velho rei, e do tesouro. Vock me
falou dos sinais. Entgo ngo tenho medo de nada, porque foram estes sinais
que me trouxeram vock. E eu sou parte do seu sonho, da sua Lenda Pessoal,
como vock costuma chamar.
"Por isso quero que siga em direzgo ao que veio buscar. Se tiver que
esperar o final da guerra, muito bem. Mas se tiver que seguir antes, vb em
direzgo a sua lenda. As dunas mudam com o vento, mas o deserto permanece no
mesmo. Assim serb com nosso amor.
"Maktub" disse. "Se eu for parte de sua Lenda, vock voltarb um dia".
O rapaz saiu triste do encontro com Fbtima. Ele se lembrava de muita
gente que havia conhecido. Os pastores casados tinham muita dificuldade em
convencer suas esposas de que precisavam andar pelos campos. O amor exigia
estar junto da pessoa amada.
No dia seguinte ele contou tudo isto a Fbtima.
O deserto leva nossos homens e nem sempre os traz de volta disse
ela. Entgo nos acostumamos com isto. E eles passam a existir nas nuvens
sem chuva, nos animais que se escondem entre as pedras, na bgua que sai
generosa da terra. Eles passam a fazer parte de tudo, passam a ser a Alma do
Mundo.
"Alguns retornam. E entgo todas as outras mulheres ficam felizes,
porque os homens que elas esperam tambjm podem voltar um dia. Antes eu
olhava estas mulheres, e invejava sua felicidade. Agora vou ter tambjm uma
pessoa para esperar.
"Sou uma mulher do deserto e me orgulho disto. Quero que meu homem
tambjm caminhe livre como o vento que move as dunas. Quero tambjm poder ver
meu homem nas nuvens, nos animais e na bgua."
O rapaz foi procurar o Inglks. Queria contar-lhe sobre Fbtima. Ficou
surpreso quando viu que o Inglks havia construndo um pequeno forno ao lado
de sua tenda. Era um forno estranho, com um frasco transparente em cima. O
Inglks alimentava o fogo com lenha, e olhava o deserto. Seus olhos pareciam
ter mais brilho quando passava o tempo todo lendo livros.
Esta j a primeira fase do trabalho disse o Inglks. Tenho que
separar o enxofre impuro. Para isto, nao posso ter medo de falhar. O meu
medo de falhar foi que me impediu de tentar a Grande Obra atj hoje. J agora
que estou comezando o que podia ter comezado hb dez anos atrbs. Mas me sinto
feliz de ngo ter esperado vinte anos para isto.
E continuou a alimentar o fogo e a olhar o deserto. O rapaz ficou ao
seu lado por algum tempo, atj que o deserto comezou a ficar rosado com a luz
do entardecer. Entgo ele sentiu uma imensa vontade de ir atj lb, para ver se
o silkncio conseguia responder suas perguntas.
Caminhou sem destino por algum tempo, mantendo as tamareiras do obsis
ao alcance de seus olhos. Escutava o vento, e sentia as pedras sob seus pjs.
As vezes encontrava alguma concha, e sabia que aquele deserto, num tempo
remoto, havia sido um grande mar. Depois sentou-se numa pedra e deixou-se
hipnotizar pelo horizonte que existia
na sua frente. Ngo conseguia entender o Amor sem o sentimento de posse;
mas Fbtima era uma mulher do deserto, e se algujm podia lhe ensinar isto,
era o deserto.
Ficou assim, sem pensar em nada, atj que pressentiu um movimento sobre
sua cabeza. Olhando para o cju, viu que eram dois gavihes, voando muito
alto.
O rapaz comezou a olhar os gavihes, e os desenhos que eles faziam no
cju. Parecia uma coisa desordenada, entretanto, tinham algum sentido para o
rapaz. Apenas ngo conseguia compreender seu significado. Decidiu entgo que
devia acompanhar com os olhos o movimento dos pbssaros, e talvez pudesse ler
alguma coisa. Talvez o deserto pudesse lhe explicar o amor sem posse.
Comezou a sentir sono. Seu corazgo pediu para que ngo dormisse: ao
invjs disto, devia se entregar. "Estava penetrando na Linguagem do Mundo, e
tudo nesta terra faz sentido, atj mesmo o vfo de gavihes", disse. E
aproveitou para agradecer pelo fato de estar cheio de amor por uma mulher.
"Quando se ama, as coisas fazem ainda mais sentido", pensou.
De repente, um gavigo deu um rbpido mergulho no cju e atacou o outro.
Quando fez este movimento, o rapaz teve uma sŪbita e rbpida visgo: um
exjrcito, de espadas desembainhadas, entrando no obsis. A visgo logo sumiu,
mas aquilo lhe deixou sobressaltado. Havia ouvido falar das miragens, e jb
havia visto algumas: eram desejos que se materializavam sobre a areia do
deserto. Entretanto, ele ngo desejava um exjrcito invadindo o obsis.
Pensou em esquecer aquilo e voltar a sua meditazgo. Tentou novamente
concentrar-se no deserto cfr-de-rosa e nas pedras. Mas alguma coisa em seu
corazgo ngo o deixava quieto.
"Siga sempre os sinais", dissera o velho rei. E o rapaz pensou em
Fbtima. Lembrou-se do que havia visto, e pressentiu que estava pruximo de
acontecer.
Com muita dificuldade, saiu do transe em que havia entrado.
Levantou-se, e comezou a caminhar em direzgo as tamareiras. Mais uma vez
percebia as muitas linguagens das coisas: desta vez, o deserto era seguro, e
o obsis se transformara em perigo.
O cameleiro estava sentado aos pjs de uma tamareira, tambjm olhando o
pfr-do-sol. Viu quando o rapaz surgiu por detrbs de uma das dunas.
Um exjrcito se aproxima disse. Tive uma visgo.
O deserto enche de vishes o corazgo de um homem respondeu o
cameleiro.
Mas o rapaz lhe contou dos gavihes: estava olhando seu vfo quando tinha
mergulhado de repente na Alma do Mundo.
O cameleiro ficou quieto; entendia o que o rapaz estava falando. Sabia
que qualquer coisa na face da terra pode contar a histuria de todas as
coisas. Se abrisse um livro em qualquer pbgina, ou olhasse as mgos das
pessoas, ou cartas de baralho, ou vfo dos pbssaros, ou seja lb o que fosse,
qualquer pessoa iria encontrar um lazo com a coisa que estava vivendo. Na
verdade, ngo eram as coisas que mostravam nada; eram as pessoas que, olhando
para as coisas, descobriam a maneira de penetrar na Alma do Mundo.
O deserto estava cheio de homens que ganhavam a vida porque podiam
penetrar com facilidade na Alma do Mundo. Eram conhecidos por Adivinhos, e
temidos por mulheres e velhos. Os Guerreiros raramente os consultavam,
porque era impossnvel entrar numa batalha sabendo quando se vai morrer. Os
Guerreiros preferiam o sabor da luta e a emozgo do desconhecido; o futuro
havia sido escrito por Allah, e o que quer que Ele
tivesse escrito, era sempre para o bem do homem. Entgo os Guerreiros
viviam apenas o presente, porque o presente era cheio de surpresas, e eles
tinham que prestar atenzgo em muitas coisas: onde estava a espada do
inimigo, onde estava seu cavalo, qual o pruximo golpe que devia desferir
para salvar a vida.
O cameleiro ngo era Guerreiro, e jb havia consultado alguns adivinhos.
Muitos disseram coisas certas, outros disseram coisas erradas.
Atj que um deles, o mais velho (e o mais temido), perguntou porque o
cameleiro estava tgo interessado em saber o futuro.
Para que possa fazer as coisas respondeu o cameleiro. E mudar o
que ngo gostaria que acontecesse.
Entgo deixarb de ser seu futuro respondeu o adivinho.
Talvez entgo eu queira saber o futuro para me preparar para as coisas
que virgo.
Se forem coisas boas, isto serb uma agradbvel surpresa disse o
adivinho. Se forem coisas ruins, vock estarb sofrendo muito antes delas
acontecerem.
Quero saber o futuro porque sou um homem disse o cameleiro para o
adivinho. E os homens vivem em funzgo do seu futuro.
O adivinho ficou quieto por algum tempo. Ele era especialista no jogo
de varetas, que eram atiradas no chgo e interpretadas da maneira que canam.
Naquele dia ele ngo jogou as varetas. Envolveu-as num lenzo e tornou a
colocar no bolso.
Ganho a vida adivinhando o futuro das pessoas disse ele. Conhezo
a cikncia das varetas, e sei como utilizb-la para penetrar neste espazo onde
tudo estb escrito. Ali posso ler o passado, descobrir o que jb foi
esquecido, e entender os sinais do presente.
"Quando as pessoas me consultam, eu ngo estou lendo o futuro; estou
adivinhando o futuro. Porque o futuro pertence a Deus, e ele su o revela em
circunstvncias extraordinbrias. E como consigo adivinhar o futuro? Pelos
sinais do presente. No presente j que estb o segredo; se vock prestar
atenzgo no presente, poderb melhorb-lo. E se vock melhorar o presente, o que
acontecerb depois tambjm serb melhor. Esqueza o futuro e viva cada dia de
sua vida nos ensinamentos da Lei, e na confianza de que Deus cuida dos seus
filhos. Cada dia traz em si a Eternidade".
O cameleiro quis saber quais as circunstvncias em que Deus permitia ver
o futuro:
Quando Ele mesmo o mostra. E Deus mostra o futuro raramente, e por
uma Ūnica razgo: j um futuro que foi escrito para ser mudado.
Deus tinha mostrado um futuro ao rapaz, pensou o cameleiro. Porque
queria que o rapaz fosse o Seu instrumento.
Vb falar com os chefes tribais disse o cameleiro. Conte dos
guerreiros que se aproximam.
Eles vgo rir de mim.
Sgo homens do deserto, e os homens do deserto estgo acostumados com
os sinais.
Entgo jb devem saber.
Ngo estgo preocupados com isto. Acreditam que se tiverem que saber
algo que Allah deseje lhe contar, alguma pessoa lhes dirb isto. Jb aconteceu
muitas vezes antes. Mas hoje, esta pessoa j vock.
O rapaz pensou em Fbtima. E resolveu ir ver os chefes tribais.
Trago sinais do deserto disse ao guarda que ficava na porta da
imensa tenda branca no centro do obsis. Quero ver os chefes.
O guarda ngo disse nada. Entrou e demorou-se muito lb dentro. Depois
saiu com um brabe jovem, vestido de branco e ouro. O rapaz contou ao jovem o
que havia visto. Ele pediu que esperasse um pouco e tornou a entrar.
A noite caiu. Entraram e sanram vbrios brabes e mercadores. Aos poucos
as fogueiras foram se apagando, e o obsis comezou a ficar tgo silencioso
como o deserto. Su a luz da grande tenda continuava acesa. Durante todo este
tempo, o rapaz pensava em Fbtima, ainda sem entender a conversa daquela
tarde.
Finalmente, depois de muitas horas de espera, o guarda mandou que o
rapaz entrasse.
O que viu deixou-o extasiado. Nunca poderia imaginar que, no meio do
deserto, existisse uma tenda como aquela. O chgo estava coberto com os mais
belos tapetes que jb havia pisado, e do teto pendiam lustres de metal
amarelo trabalhado, coberto de velas acessas. Os chefes tribais estavam
sentados no fundo da tenda, em semicnrculo, descansando seus brazos e pernas
em almofadas de seda com ricos bordados. Criados entravam e sanam com
bandejas de prata cheias de especiarias e chb. Alguns se encarregavam de
manter acesas as brasas dos narguiljs. Um suave perfume de fumo enchia o
ambiente.
Haviam oito chefes, mas o rapaz logo percebeu quem era o mais
importante: um brabe vestido de branco e ouro, sentado no centro do
semicnrculo. Ao seu lado estava o jovem brabe com quem tinha conversado
antes.
Quem j o estrangeiro que fala de sinais? perguntou um dos chefes,
olhando para ele.
Eu sou respondeu. E contou o que havia visto.
E por que o deserto ia contar isto a um estranho, quando sabe que
estamos hb vbrias gerazhes aqui? disse outro chefe tribal.
Porque meus olhos ainda ngo se acostumaram com o deserto respondeu
o rapaz. E eu posso ver coisas que os olhos habituados demais ngo
conseguem mais ver.
"J porque eu sei da Alma do Mundo", pensou consigo mesmo. Mas ngo falou
nada, porque os brabes ngo acreditam nestas coisas.
O Obsis j um terreno neutro. Ningujm ataca um Obsis disse um
terceiro chefe.
Eu conto apenas o que vi. Se ngo quiserem acreditar, ngo fazam nada.
Um completo silkncio abateu-se sobre a tenda, seguido de uma exaltada
conversa entre os chefes tribais. Falavam num dialeto brabe que o rapaz ngo
entendia, mas quando ele fez menzgo de ir embora, um guarda disse para
ficar. O rapaz comezou a sentir medo; os sinais diziam que havia alguma
coisa errada. Lamentou haver conversado com o cameleiro a respeito.
De repente, o velho que estava no centro deu um sorriso quase
imperceptnvel, e o rapaz tranq'ilizou-se. O velho ngo havia participado da
discussgo, e ngo dissera uma palavra atj aquele momento. Mas o rapaz jb
estava acostumado com a Linguagem do Mundo, e pode sentir uma vibrazgo de
Paz cruzando a tenda de ponta a ponta. Sua intuizgo dizia que havia agido
corretamente em vir.
A discussgo acabou. Ficaram em silkncio por algum tempo, ouvindo o
velho. Depois, ele se virou para o rapaz: desta vez seu rosto estava frio e
distante.
Hb dois mil anos, numa terra distante, jogaram num pozo e venderam
como escravo um homem que acreditava em sonhos disse o velho. Nossos
mercadores o compraram e o trouxeram para o Egito. E todos nus sabemos que,
quem acredita em sonhos, tambjm sabe interpretb-los.
"Embora nem sempre consiga realizb-los", pensou o rapaz, lembrando-se
da velha cigana.
Por causa dos sonhos do farau com vacas magras e gordas, este homem
livrou o Egito da fome. Seu nome era Josj. Era tambjm um estrangeiro numa
terra estrangeira, como vock, e devia ter mais ou menos a sua idade.
O silkncio continuou. Os olhos do velho se mantinham frios.
Sempre seguimos a Tradizgo. A Tradizgo salvou o Egito da fome naquela
jpoca, e o fez o mais rico entre os povos. A Tradizgo ensina como os homens
devem atravessar o deserto e casar suas filhas. A Tradizgo diz que um Obsis
j um terreno neutro, porque ambos os lados tem Obsis, e sgo vulnerbveis.
Ningujm disse qualquer palavra enquanto o velho falava.
Mas a Tradizgo diz tambjm para acreditarmos nas mensagens do deserto.
Tudo que sabemos foi o deserto que nos ensinou.
O velho fez um sinal e todos os brabes se levantaram. A reunigo estava
para terminar. Os narguiljs foram apagados, e os guardas se colocaram em
posizgo de sentido. O rapaz preparou-se para sair, mas o velho falou ainda
mais uma vez:
Amanhg nus vamos romper um acordo que diz que ningujm no obsis pode
portar armas. Durante o dia inteiro aguardaremos os inimigos. Quando o sol
descer no horizonte, os homens me devolvergo as armas. Para cada dez
inimigos mortos, vock receberb uma moeda de ouro.
"Entretanto, as armas ngo podem sair do seu lugar sem experimentarem a
batalha. Sgo caprichosas como o deserto, e se as acostumamos com isto, da
pruxima vez podem ter preguiza de disparar. Se nenhuma delas tiver sido
utilizada amanhg, pelo menos uma serb usada em vock."
O obsis estava iluminado apenas pela lua cheia quando o rapaz saiu.
Eram vinte minutos de caminhada atj sua tenda, e ele comezou a andar.
Estava assustado com tudo que havia acontecido. Tinha mergulhado na
Alma do Mundo, e o prezo por acreditar naquilo era a sua vida. Uma aposta
alta. Mas tinha apostado alto desde o dia em que havia vendido suas ovelhas
para seguir sua Lenda Pessoal. E como dizia o cameleiro, morrer amanhg era
tgo bom como morrer em qualquer outro dia. Todo dia era feito para ser
vivido ou para abandonar o mundo. Tudo dependia apenas de uma palavra:
"Maktub".
Caminhou em silkncio. Ngo estava arrependido. Se morresse amanhg, seria
porque Deus ngo estava com vontade de mudar o futuro. Mas teria morrido
depois de haver cruzado o estreito, trabalhado em uma loja de cristais,
conhecido o silkncio do deserto e os olhos de Fbtima. Tinha vivido
intensamente cada um dos seus dias, desde que havia sando de casa, hb tanto
tempo atrbs. Se morresse amanhg, seus olhos teriam visto muito mais coisas
do que os olhos dos outros pastores, e o rapaz tinha orgulho disto.
De repente ouviu um estrondo, e foi jogado subitamente por terra, com o
impacto de um vento que ngo conhecia. O lugar encheu-se de poeira, que quase
cobriu a lua. Na sua frente, um enorme cavalo branco empinou soltando um
relincho aterrador.
O rapaz mal podia ver o que se passava, mas quando a poeira assentou um
pouco, sentiu um pavor que jamais havia sentido antes. Em cima do cavalo
estava um cavaleiro todo vestido de negro, com um falcgo em seu ombro
esquerdo. Usava um turbante e um lenzo que lhe cobria todo o rosto, deixando
apenas os olhos de fora. Parecia o mensageiro do deserto, mas sua presenza
era mais forte do que todas as pessoas que havia conhecido na vida.
O estranho cavaleiro puxou a enorme espada curva que trazia presa a
sela. O azo brilhou com a luz da lua.
Quem ousou ler o vfo dos gavihes? perguntou com uma voz tgo forte
que pareceu ecoar entre as cinq'enta mil tamareiras do Al-fayoum.
Eu ousei disse o rapaz. Lembrou-se imediatamente da imagem de
Santiago Matamouros do seu cavalo branco com os infijis sob as patas. Era
exatamente assim. Su que agora a situazgo estava invertida.
Eu ousei repetiu o rapaz, e abaixou a cabeza para receber o golpe
da espada. Muitas vidas sergo salvas, porque vocks ngo contavam com a Alma
do Mundo.
A espada, porjm, ngo desceu rbpido. A mgo do estranho foi abaixando
lentamente, atj que a ponta da lvmina tocou na testa do rapaz. Era tgo
afiada que saiu uma gota de sangue.
O cavaleiro estava completamente imuvel. O rapaz tambjm. Ngo pensou um
minuto sequer em fugir. Dentro do seu corazgo, uma estranha alegria tomou
conta dele: ia morrer por sua Lenda Pessoal. E por Fbtima. Os sinais eram
verdadeiros, enfim. Ali estava o Inimigo, e por causa disto ele ngo
precisava se preocupar com a morte, porque havia uma Alma do Mundo. Daqui a
pouco ele estaria fazendo parte dela. E amanhg o Inimigo faria parte dela
tambjm.
O estranho, porjm, apenas mantinha a espada em sua testa.
Por que vock leu o vfo dos pbssaros?
Li apenas o que os pbssaros queriam contar. Eles querem salvar o
obsis, e vocks morrergo. O obsis tem mais homens que vocks.
A espada continuava em sua testa.
Quem j vock para mudar o destino de Allah?
Allah fez os exjrcitos, e fez tambjm os pbssaros. Allah me mostrou a
linguagem dos pbssaros. Tudo foi escrito pela mesma Mgo, disse o rapaz,
lembrando as palavras do cameleiro.
O estranho finalmente retirou a espada da testa. O rapaz sentiu um
certo alnvio. Mas ngo podia fugir.
Cuidado com as adivinhazhes disse o estranho. Quando as coisas
estgo escritas, ngo hb como evitb-las.
Apenas vi um exjrcito disse o rapaz. Ngo vi o resultado de uma
batalha.
O cavaleiro parecia contente com a resposta. Mas mantinha a espada na
sua mgo.
O que faz um estrangeiro numa terra estrangeira?
Busco minha Lenda Pessoal. Algo que vock ngo entenderb nunca.
O cavaleiro colocou a espada na bainha, e o falcgo no seu ombro deu um
grito estranho. O rapaz comezou a relaxar.
Precisava testar sua coragem disse o estranho. A coragem j o dom
mais importante para quem busca a Linguagem do Mundo.
O rapaz ficou surpreso. Aquele homem estava falando em coisas que pouca
gente conhecia.
J preciso ngo relaxar nunca, mesmo tendo chegado tgo longe
continuou ele. J preciso amar o deserto, mas jamais confiar inteiramente
nele. Porque o deserto j uma prova para todos os homens: testa cada passo, e
mata quem se distrai.
Suas palavras lembravam as palavras do velho rei.
Se os guerreiros chegarem, e sua cabeza ainda estiver sobre o pescozo
depois que o sol morrer, me procure disse o estranho.
A mesma mgo que havia segurado a espada, empunhou um chicote. O cavalo
empinou de novo, levantando uma nuvem de poeira.
Onde vock mora? gritou o rapaz, enquanto o cavaleiro se afastava.
A mgo com chicote apontou em direzgo ao sul.
O rapaz tinha encontrado o Alquimista.
Na manhg seguinte haviam dois mil homens armados entre as tamareiras de
Al-Fayoum. Antes que o sol chegasse ao topo do cju, quinhentos guerreiros
apareceram no horizonte. Os cavaleiros entraram no obsis pela parte norte;
parecia uma expedizgo de paz, mas haviam armas escondidas sobre os mantos
brancos. Quando chegaram perto da grande tenda que ficava no centro de
Al-Fayoum, puxaram as cimitarras e as espingardas. E atacaram uma tenda
vazia.
Os homens do obsis cercaram os cavaleiros do deserto. Em meia hora
haviam quatrocentos e noventa e nove corpos espalhados pelo chgo. As
crianzas estavam no outro extremo do bosque de tamareiras, e ngo viram nada.
As mulheres rezavam por seus maridos nas tendas, e tambjm ngo viram nada.
Ngo fosse pelos corpos espalhados, o obsis parecia viver um dia normal.
Apenas um guerreiro foi poupado, o comandante do batalhgo. De tarde ele
foi conduzido diante dos chefes tribais, que lhe perguntaram porque havia
rompido a Tradizgo. O comandante disse que seus homens estavam com fome e
sede, exaustos por tantos dias de batalha, e haviam decidido tomar um obsis
para poder recomezar a luta.
O chefe tribal disse que sentia pelos guerreiros, mas a Tradizgo jamais
pode ser rompida. A Ūnica coisa que muda no deserto sgo as dunas, quando
sopra o vento.
Depois condenou o comandante a uma morte sem honra. Ao invjs do azo ou
da bala de fuzil, ele foi enforcado numa tamareira tambjm morta. Seu corpo
balanzou com o vento do deserto.
O chefe tribal chamou o estrangeiro e lhe deu cinq'enta moedas de ouro.
Depois tornou a recordar a histuria de Josj no Egito, e pediu para que fosse
o Conselheiro do Obsis.
Quando o sol se pfs por completo, e as primeiras estrelas comezaram a
aparecer (ngo brilhavam muito, porque a lua cheia continuava), o rapaz andou
em direzgo ao sul. Havia apenas uma tenda, e alguns brabes que passavam
diziam que o lugar era cheio de djins. Mas o rapaz sentou-se e esperou
durante muito tempo.
O Alquimista apareceu quando a lua jb estava alto no cju. Trazia dois
gavihes mortos no ombro.
Aqui estou disse o rapaz.
Ngo devia estar respondeu o Alquimista. Ou sua Lenda Pessoal era
chegar atj aqui?
Existe uma guerra entre os clgs. Ngo j possnvel cruzar o deserto.
O Alquimista desceu do seu cavalo, e fez um sinal para que o rapaz
entrasse com ele na tenda. Era uma tenda igual a todas as outras que havia
conhecido no obsis exceto a grande tenda central, que tinha o luxo dos
contos de fada. Ele procurou os aparelhos e fornos de alquimia, mas ngo
encontrou nada. Havia apenas uns poucos livros empilhados, um foggo para
cozinhar, e os tapetes cheios de desenhos misteriosos.
Sente-se, que vou preparar um chb disse o Alquimista. E comeremos
juntos estes gavihes.
O rapaz suspeitou que eram os mesmos pbssaros que havia visto no dia
anterior, mas ngo disse nada. O Alquimista acendeu o fogo, e em pouco tempo
um delicioso cheiro de carne enchia a tenda. Era melhor que o perfume dos
narguiljs.
Por que quis me ver? disse o rapaz.
Por causa dos sinais respondeu o Alquimista O vento me contou que
vock viria. E que ia precisar de ajuda.
Ngo sou eu. J o outro estrangeiro, o Inglks. Ele j que o estava
buscando.
Ele tem que encontrar outras coisas antes de me encontrar. Mas estb
no caminho certo. Passou a olhar o deserto.
E eu?
Quando se quer uma coisa, todo o Universo conspira para que a pessoa
consiga realizar seu sonho disse o Alquimista, repetindo as palavras do
velho rei. O rapaz entendeu. Outro homem estava no seu caminho, para
conduzi-lo atj sua Lenda Pessoal.
Entgo vock vai me ensinar?
Ngo. Vock jb sabe de tudo que precisa. Vou apenas lhe fazer seguir em
direzgo ao seu tesouro.
Existe uma guerra entre os clgs. repetiu o rapaz.
Eu conhezo o deserto.
Jb encontrei meu tesouro. Tenho um camelo, o dinheiro das lojas de
cristais, e cinq'enta moedas de ouro. Posso ser um homem rico na minha
terra.
Mas nada disto estb perto das Pirvmides disse o Alquimista.
Tenho Fbtima. J um tesouro maior que todo este que consegui juntar.
Tambjm ela ngo estb perto das Pirvmides.
Comeram os gavihes em silkncio. O Alquimista abriu uma garrafa e
derramou um lnquido vermelho no copo do rapaz. Era vinho, um dos melhores
vinhos que havia tomado em sua vida. Mas o vinho era proibido pela lei.
O mal ngo j o que entra na boca do homem disse o Alquimista. O
mal j o que sai dela.
O rapaz comezou a sentir-se alegre com o vinho. Mas o Alquimista lhe
inspirava medo. Sentaram-se do lado de fora da tenda, olhando o brilho da
lua, que ofuscava as estrelas.
Beba e se distraia um pouco disse o Alquimista, notando que o rapaz
comezava a ficar cada vez mais alegre. Repouse como um guerreiro sempre
repousa antes do combate. Mas ngo esqueza que o seu corazgo estb onde estb o
seu tesouro. E que seu tesouro precisa ser encontrado, para que tudo isto
que vock descobriu no caminho possa fazer sentido.
"Amanhg venda seu camelo e compre um cavalo. Os camelos sgo
traizoeiros: andam milhares de passos, e ngo dgo qualquer sinal de cansazo.
De repente, porjm, ajoelham e morrem. Os cavalos vgo se cansando aos poucos.
E vock poderb saber sempre o quanto pode pedir deles, ou a jpoca em que vgo
morrer".
Na noite seguinte o rapaz apareceu com um cavalo na tenda do
Alquimista. Esperou um pouco e ele apareceu, montado em seu animal, e com o
falcgo no ombro esquerdo.
Mostre-me a vida no deserto disse o Alquimista. Su quem acha
vida, pode encontrar tesouros.
Comezaram a caminhar pelas areias, com a lua ainda brilhando sobre os
dois. "Ngo sei se vou conseguir encontrar vida no deserto", pensou o rapaz.
"Ngo conhezo ainda o deserto".
Quis virar-se e dizer isto ao Alquimista, mas tinha medo dele. Chegaram
ao lugar de pedras, onde o rapaz havia visto os gavihes no cju; entretanto,
tudo era silkncio e vento.
Ngo consigo encontrar vida no deserto disse o rapaz. Sei que ela
existe, mas ngo consigo encontrb-la.
A vida atrai a vida respondeu o Alquimista.
E o rapaz entendeu. Na mesma hora soltou as rjdeas de seu cavalo e ele
saiu livremente pelas pedras e areia. O Alquimista seguia em silkncio, e o
cavalo do rapaz andou por quase meia-hora. Jb ngo podiam mais ver as
tamareiras do obsis, apenas a lua gigantesca no cju, e as rochas brilhando
com a cor prata. De repente, num lugar onde jamais havia estado antes, o
rapaz notou que seu cavalo parava.
Aqui existe vida respondeu o rapaz ao Alquimista. Ngo conhezo a
linguagem do deserto, mas meu cavalo conhece a linguagem da vida.
Desmontaram. O Alquimista ngo disse nada. Comezou a olhar as pedras,
caminhando devagar. De repente, ele parou, e abaixou-se com todo cuidado.
Havia um buraco no chgo, entre as pedras; o Alquimista enfiou a mgo dentro
do buraco, e depois enfiou o brazo atj o ombro. Alguma coisa se mexeu lb
dentro, e os olhos do Alquimista ele su podia ver os olhos se encolherem
de esforzo e tensgo. O brazo parecia lutar com o que estava dentro do
buraco. Mas num salto que assustou o rapaz, o Alquimista retirou o brazo e
ficou imediatamente de pj. Sua mgo trazia unia serpente agarrada pelo rabo.
O rapaz tambjm deu um salto, su que para trbs. A cobra debatia-se sem
cessar, emitindo rundos e silvos que feriam o silkncio do deserto. Era uma
naja, cujo veneno podia matar um homem em poucos minutos.
"Cuidado com o veneno", chegou a pensar o rapaz. Mas o Alquimista havia
colocado a mgo no buraco, e jb devia ter sido mordido. Seu rosto, porjm,
estava tranq'ilo. "O Alquimista tem duzentos anos", havia falado o Inglks.
Jb devia saber como lidar com cobras no deserto.
O rapaz viu quando seu companheiro foi atj o cavalo e puxou a longa
espada em forma de meia-lua. Com ela, trazou um cnrculo no chgo e colocou a
cobra no meio. O animal aquietou-se imediatamente
Pode ficar tranq'ilo disse o Alquimista. Ela ngo vai sair dali. E
vock descobriu a vida no deserto, o sinal que eu estava precisando.
Por que isto era tgo importante?
Porque as Pirvmides estgo cercadas de deserto.
O rapaz ngo queria ouvir falar nas Pirvmides. Seu corazgo estava pesado
e triste, desde a noite anterior. Porque seguir em busca do seu tesouro,
significava ter que abandonar Fbtima.
Vou guib-lo pelo deserto falou o Alquimista.
Quero ficar no obsis respondeu o rapaz. Jb encontrei Fbtima. E
ela, para mim, vale mais que o tesouro.
Fbtima j uma mulher do deserto disse o Alquimista. Sabe que os
homens devem partir, para poderem voltar. Ela jb encontrou seu tesouro:
vock. Agora espera que vock encontre o que busca.
E se eu resolver ficar?
Serb o Conselheiro do Obsis. Tem ouro suficiente para comprar muitas
ovelhas e muitos camelos. Vai casar-se com Fbtima e vivergo felizes o
primeiro ano. Aprenderb a amar o deserto e vai conhecer cada uma das
cinq'enta mil tamareiras. Perceberb como elas crescem, mostrando um mundo
que muda sempre. E irb cada vez entender mais os sinais, porque o deserto j
um mestre melhor que todos os mestres.
"No segundo ano vock se lembrarb que existe um tesouro. Os sinais
comezargo a falar insistentemente sobre isto, e vock tentarb ignorb-los.
Usarb seu conhecimento apenas para o bem-estar do obsis e dos seus
habitantes. Os chefes tribais lhe agradecergo por isto. Os seus camelos lhe
trargo riqueza e poder.
"No terceiro ano os sinais continuargo a falar sobre seu tesouro e sua
Lenda Pessoal. Vock vai ficar noites e noites andando pelo obsis, e Fbtima
serb uma mulher triste, porque fez com que seu caminho fosse interrompido.
Mas vock lhe darb amor, e serb correspondido. Vock vai se lembrar que ela
jamais pediu que ficasse, porque uma mulher do deserto sabe esperar seu
homem. Por isso ngo vai culpb-la. Mas vai andar muitas noites pelas areias
do deserto, e por entre as tamareiras, pensando que talvez pudesse ter ido
adiante, ter confiado mais no seu amor por Fbtima. Porque o que o manteve no
obsis foi seu pruprio medo de ngo voltar nunca. E a esta altura, os sinais
lhe indicargo que seu tesouro estb enterrado para sempre.
No quarto ano, os sinais o abandonargo, porque vock ngo quis ouvi-los.
Os Chefes Tribais irgo entender isto, e vock serb destitundo do Conselho. A
esta altura serb um rico comerciante, com muitos camelos e muitas
mercadorias. Mas passarb o resto dos seus dias vagando entre as tamareiras e
o deserto, sabendo que ngo cumpriu sua Lenda Pessoal, e que agora j tarde
demais para isto.
"Sem jamais compreender que o Amor nunca impede um homem de seguir sua
Lenda Pessoal. Quando isto acontece, j porque ngo era o verdadeiro Amor,
aquele que fala a Linguagem do Mundo".
O Alquimista desfez o cnrculo no chgo, e a cobra correu e desapareceu
entre as pedras. O rapaz lembrava o mercador de cristais que sempre quis ir
a Meca, e o Inglks que buscava um Alquimista. O rapaz lembrava de uma mulher
que confiou no deserto, e o deserto um dia lhe trouxe a pessoa que desejava
amar.
Montaram em seus cavalos, e desta vez foi o rapaz que seguiu o
Alquimista. O vento trazia os rundos do obsis, e ele tentava identificar a
voz de Fbtima. Naquele dia ngo tinha ido ao pozo por causa da batalha.
Mas esta noite, enquanto olhavam uma cobra dentro de um cnrculo, o
estranho cavaleiro com seu falcgo no ombro havia falado de amor e de
tesouros, das mulheres do deserto e da sua Lenda Pessoal.
Vou com vock disse o rapaz. E imediatamente sentiu paz no seu
corazgo.
Partimos amanhg antes que o sol nasza foi a Ūnica resposta do
Alquimista.
O rapaz passou a noite inteira em claro. Duas horas antes do amanhecer,
acordou um dos rapazes que dormia na sua tenda, e pediu para lhe mostrar
onde morava Fbtima. Sanram juntos, e foram atj lb. Em troca, o rapaz lhe deu
dinheiro para comprar uma ovelha.
Depois pediu que descobrisse onde Fbtima dormia, e que lhe acordasse e
dissesse que o rapaz a estava esperando. O jovem brabe fez isto, e em troca
ganhou dinheiro para comprar outra ovelha.
Agora deixe-nos a sus disse o rapaz ao jovem brabe, que voltou a
sua tenda para dormir, orgulhoso de haver ajudado o Conselheiro do Obsis; e
contente por ter dinheiro para comprar ovelhas.
Fbtima apareceu na porta da tenda. Os dois sanram para andar entre as
tamareiras. O rapaz sabia que era contra a Tradizgo, mas isto ngo tinha
nenhuma importvncia agora.
Vou partir disse. E quero que saiba que vou voltar. Eu te amo
porque...
Ngo diga nada interrompeu Fbtima. Ama-se porque se ama. Ngo hb
qualquer razgo para amar.
Mas o rapaz continuou:
Eu te amo porque tive um sonho, encontrei um rei, vendi cristais,
cruzei o deserto, os clgs declararam guerra, e estive num pozo para saber
onde morava um Alquimista. Eu te amo porque todo o Universo conspirou para
que eu chegasse atj vock.
Os dois se abrazaram. Era a primeira vez que um corpo tocava no
outro.
Voltarei repetiu o rapaz.
Antes eu olhava o deserto com desejo disse Fbtima. Agora serb com
esperanza. Meu pai um dia partiu, mas voltou para minha mge, e continua
voltando sempre.
E ngo disseram mais nada. Andaram um pouco entre as tamareiras, e o
rapaz a deixou na porta da tenda.
Voltarei como seu pai voltou para a sua mge disse.
Reparou que os olhos de Fbtima estavam cheios d'bgua.
Vock chora?
Sou uma mulher do deserto disse ela, escondendo o rosto. Mas
acima de tudo, sou uma mulher.
Fbtima entrou na tenda. Daqui a pouco o sol ia aparecer. Quando o dia
chegasse, ela ia sair e fazer aquilo que havia feito durante tantos anos;
mas tudo havia mudado. O rapaz jb ngo estava mais no obsis, e o obsis ngo
teria mais o significado que tinha atj pouco tempo antes. Ngo seria mais o
lugar com cinq'enta mil tamareiras e trezentos pozos, onde os peregrinos
chegavam contentes depois de uma longa viagem. O obsis, daquele dia em
diante, seria um lugar vazio para ela.
A partir daquele dia, o deserto ia ser mais importante. Iria olhar para
ele sempre, tentando saber qual estrela o rapaz estava seguindo em busca do
tesouro. Haveria de mandar seus beijos pelo vento, na esperanza de que ele
tocasse o rosto do rapaz, e lhe contasse que estava viva, esperando por ele,
como uma mulher espera um homem de coragem, que segue em busca de sonhos e
tesouros. A partir daquele dia, o deserto ia ser apenas uma coisa: a
esperanza de sua volta.
Ngo pense no que ficou para trbs disse o Alquimista, quando
comezaram a cavalgar pelas areias do deserto. Tudo estb gravado na Alma do
Mundo, e ali permanecerb para sempre.
Os homens sonham mais com a volta do que com a partida disse o
rapaz, que jb estava se acostumando de novo com o silkncio do deserto.
Se o que vock encontrou j feito de matjria pura, jamais apodrecerb. E
vock poderb voltar um dia. Se foi apenas um momento de luz, como a explosgo
de uma estrela, entgo ngo vai encontrar nada quando voltar. Mas terb visto
uma explosgo de luz. E su isto jb valeu a pena.
O homem falava em linguagem de alquimia. Mas o rapaz sabia que ele
estava se referindo a Fbtima.
Era difncil ngo pensar no que havia ficado para trbs. O deserto, com
sua paisagem quase sempre igual, costumava encher-se de sonhos. O rapaz
ainda via as tamareiras, os pozos, e o rosto da mulher amada. Via o Inglks
com seu laboraturio, e o cameleiro que era um mestre e ngo sabia. "Talvez o
Alquimista jamais tenha amado", pensou o rapaz.
O Alquimista cavalgava na sua frente, com o falcgo nos ombros. O falcgo
conhecia bem a linguagem do deserto, e quando paravam, ele sana do ombro do
Alquimista e voava em busca de alimento. No primeiro dia trouxe uma lebre.
No segundo dia trouxe dois pbssaros.
De noite, estendiam seus cobertores e ngo acendiam fogueiras. As noites
do deserto eram frias, e foram ficando escuras a medida que a lua comezou a
diminuir no cju. Durante uma semana andaram em silkncio, conversando apenas
sobre as precauzhes necessbrias para evitar os combates entre os clgs. A
guerra continuava, e o vento as vezes trazia o cheiro adocicado de sangue.
Alguma batalha havia sido travada por perto, e o vento recordava ao rapaz
que havia a Linguagem dos Sinais, sempre pronta para mostrar o que seus
olhos ngo conseguiam ver.
Quando completaram sete dias de viagem, o Alquimista resolveu acampar
mais cedo do que de costume. O falcgo saiu em busca de caza, e ele tirou o
cantil de bgua e ofereceu ao rapaz.
Vock agora estb quase no final da viagem disse o Alquimista. Meus
parabjns por haver seguido sua Lenda Pessoal.
E vock estb me guiando em silkncio disse o rapaz. Pensei que ia
me ensinar aquilo que sabe. Faz algum tempo que estive no deserto com um
homem que tinha livros de Alquimia. Mas ngo consegui aprender nada.
Su existe uma maneira de aprender respondeu o Alquimista J
atravjs da azgo. Tudo que vock precisava saber, a viagem lhe ensinou. Falta
apenas uma coisa.
O rapaz quis saber o que era, mas o Alquimista manteve os olhos fixos
no horizonte, esperando pela volta do falcgo.
Por que o chamam de Alquimista?
Porque sou.
E o que havia de errado com os outros alquimistas, que buscaram ouro
e ngo conseguiram?
Buscavam apenas ouro respondeu seu companheiro. Buscavam o
tesouro de sua Lenda Pessoal, sem desejarem viver a prupria Lenda.
O que me falta saber? insistiu o rapaz.
Mas o Alquimista continuou olhando o horizonte. Depois de algum tempo o
falcgo retornou com a comida. Cavaram um buraco e acenderam a fogueira
dentro dele, para que ningujm pudesse ver a luz das chamas.
Sou um Alquimista porque sou um Alquimista disse ele, enquanto
preparavam a comida. Aprendi a cikncia de meus avus, que aprenderam de
seus avus, e assim atj a criazgo do mundo. Naquela jpoca, toda a cikncia da
Grande Obra podia ser escrita numa simples esmeralda. Mas os homens ngo
deram importvncia as coisas simples, e comezaram a escrever tratados,
interpretazhes, e estudos filosuficos. Comezaram tambjm a dizer que sabiam
melhor o caminho que os outros.
"Mas a Tbboa da Esmeralda continua viva atj hoje".
O que estava escrito na Tbboa da Esmeralda? quis saber o rapaz.
O Alquimista comezou a desenhar na areia, e ngo demorou mais do que
cinco minutos. Enquanto ele desenhava, o rapaz lembrou-se do velho rei, e da
praza onde haviam se encontrado um dia; parecia que tinham se passado muitos
e muitos anos.
Isto estava escrito na Tbboa da Esmeralda disse o Alquimista,
quando acabou de escrever.
O rapaz aproximou-se e leu as palavras na areia.
J um cudigo disse o rapaz, um pouco decepcionado com a Tbboa da
Esmeralda. Parece com os livros do Inglks.
Ngo respondeu o Alquimista. J como o vfo dos gavihes; ngo deve
ser compreendida simplesmente pela razgo. A Tbboa da Esmeralda j uma
passagem direta para a Alma do Mundo.
"Os sbbios entenderam que este mundo natural j apenas uma imagem e uma
cupia do Paranso. A simples existkncia deste mundo j a garantia de que
existe um mundo mais perfeito que ele. Deus o criou para que, atravjs das
coisas visnveis, os homens pudessem compreender seus ensinamentos
espirituais, e as maravilhas de sua sabedoria. Isto j que eu chamo de Azgo".
Devo entender a Tbboa da Esmeralda? perguntou o rapaz.
"Talvez, se vock estivesse num laboraturio de Alquimia, agora seria o
momento certo para estudar a melhor maneira de entender a Tbboa da
Esmeralda. Entretanto, vock estb no Deserto. Entgo mergulhe no deserto. Ele
serve para compreender o mundo tanto como qualquer outra coisa sobre a face
da terra. Vock nem precisa de entender o deserto: basta contemplar um
simples grgo de areia, e verb nele todas as maravilhas da Criazgo".
Como fazo para mergulhar no deserto?
Escute seu corazgo. Ele conhece todas as coisas, porque veio da Alma
do Mundo, e um dia retornarb para ela.
Andaram em silkncio mais dois dias. O Alquimista estava muito mais
cauteloso, porque se aproximavam da zona de combates mais violentos. E o
rapaz procurava escutar seu corazgo.
Era um corazgo difncil; antes estava acostumado a partir sempre, e
agora queria chegar a todo custo. As vezes, seu corazgo ficava muitas horas
contando histurias de saudades, outras vezes se emocionava com o nascer do
sol no deserto, e fazia o rapaz chorar escondido. O corazgo batia mais
rbpido quando falava para o rapaz sobre o tesouro e ficava mais vagaroso
quando os olhos do rapaz se perdiam no horizonte sem fim do deserto. Mas
nunca estava em silkncio, mesmo que o rapaz ngo trocasse uma palavra com o
Alquimista.
Por que temos que escutar o corazgo? perguntou o rapaz quando
acamparam aquele dia.
Porque, onde ele estiver, j onde estarb o seu tesouro.
Meu corazgo j agitado disse o rapaz. Tem sonhos, se emociona, e
estb apaixonado por uma mulher do deserto. Ele me pede coisas e ngo me deixa
dormir muitas noites, quando penso nela.
J bom. Seu corazgo estb vivo. Continue a ouvir o que ele tem para
dizer.
Nos trks dias seguintes os dois passaram por alguns guerreiros, e viram
outros guerreiros no horizonte. O corazgo do rapaz comezou a falar sobre o
medo. Contava para o rapaz histurias que tinha ouvido da Alma do Mundo,
histurias de homens que foram em busca de seus tesouros e jamais o
encontraram. As vezes assustava o rapaz com o pensamento de que poderia ngo
conseguir o tesouro, ou poderia morrer no deserto. Outras vezes dizia para o
rapaz que jb estava satisfeito, que jb havia encontrado um amor e muitas
moedas de ouro.
Meu corazgo j traizoeiro disse o rapaz ao Alquimista, quando eles
pararam para descansar um pouco os cavalos. Ngo quer que eu continue.
Isto j bom respondeu o Alquimista. Prova que seu corazgo estb
vivo. J natural ter medo de trocar por um sonho tudo aquilo que jb se
conseguiu.
Entgo, para que devo escutar meu corazgo?
Porque vock ngo vai conseguir jamais mantk-lo calado. E mesmo que
finja ngo escutar o que ele diz, ele estarb dentro do seu peito, repetindo
sempre o que pensa sobre a vida e o mundo.
Mesmo que ele seja traizoeiro?
A traizgo j o golpe que vock ngo espera. Se vock conhecer bem seu
corazgo, ele jamais conseguirb isto. Porque vock conhecerb seus sonhos e
seus desejos, e saberb lidar com eles.
"Ningujm consegue fugir do seu corazgo. Por isso j melhor escutar o que
ele fala. Para que jamais venha um golpe que vock ngo espera".
O rapaz continuou a escutar seu corazgo, enquanto caminhavam pelo
deserto. Passou a conhecer suas artimanhas e seus truques, e passou a
aceitb-lo como era. Entgo o rapaz deixou de ter medo, e deixou de ter
vontade de voltar, porque certa tarde o seu corazgo lhe disse que estava
contente. "Mesmo que eu reclame um pouco", dizia seu corazgo, "j porque sou
um corazgo de homem, e os corazhes de homens sgo assim. Tkm medo de realizar
seus maiores sonhos, porque acham que ngo o merecem, ou ngo vgo
consegui-los. Nus, os corazhes, morremos de medo su de pensar em amores que
partiram para sempre, em momentos que poderiam ter sido bons e que ngo
foram, em tesouros que poderiam ter sido descobertos e ficaram para sempre
escondidos na areia. Porque quando isto acontece, terminamos sofrendo
muito".
Meu corazgo tem medo de sofrer disse o rapaz para o Alquimista, uma
noite em que olhavam o cju sem lua.
Diga para ele que o medo de sofrer j pior do que o pruprio
sofrimento. E que nenhum corazgo jamais sofreu quando foi em busca de seus
sonhos, porque cada momento de busca j um momento de encontro com Deus e com
a Eternidade.
"Cada momento de busca j um momento de encontro", disse o rapaz ao seu
corazgo. "Enquanto procurei meu tesouro, todos os dias foram dias luminosos,
porque eu sabia que cada hora fazia parte do sonho de encontrar. Enquanto
procurei este meu tesouro, descobri no caminho coisas que jamais teria
sonhado encontrar, se ngo tivesse tido a coragem de tentar coisas
impossnveis aos pastores".
Entgo seu corazgo ficou quieto por uma tarde inteira. De noite, o rapaz
dormiu tranq'ilo, e quando acordou, o seu corazgo comezou a lhe contar as
coisas da Alma do Mundo. Disse que todo homem feliz era um homem que trazia
Deus dentro de si. E que a felicidade poderia ser encontrada num simples
grgo de areia do deserto, como o Alquimista havia falado. Porque um grgo de
areia j um momento da Criazgo, e o Universo demorou milhares de milhhes de
anos para crib-lo. "Cada homem na face da Terra tem um tesouro que estb
esperando por ele", disse seu corazgo. Nus, os corazhes, costumamos falar
pouco destes tesouros, porque os homens jb ngo querem mais encontrb-los. Su
falamos dele para as crianzas. Depois deixamos que a vida encaminhe cada um
em direzgo ao seu destino. Mas, infelizmente, poucos seguem o caminho que
lhes estb trazado, e que j o caminho da Lenda Pessoal, e da felicidade.
Acham o mundo uma coisa ameazadora e por causa disto o mundo se torna uma
coisa ameazadora.
"Entgo nus, os corazhes, vamos falando cada vez mais baixo, mas ngo nos
calamos nunca. E torcemos para que nossas palavras ngo sejam ouvidas: ngo
queremos que os homens sofram porque ngo seguiram seus corazhes".
Por que os corazhes ngo contam aos homens que devem continuar
seguindo seus sonhos? perguntou o rapaz ao Alquimista.
Porque, neste caso, o corazgo j o que sofre mais. E os corazhes ngo
gostam de sofrer.
O rapaz entendeu seu corazgo a partir daquele dia. Pediu que nunca mais
o deixasse. Pediu que, quando estivesse longe de seus sonhos, o corazgo
apertasse no peito e desse o sinal de alarme. O rapaz jurou que sempre que
escutasse este sinal, tambjm o seguiria.
Naquela noite conversou tudo com o Alquimista. E o Alquimista entendeu
que o corazgo do rapaz havia voltado para a Alma do Mundo .
O que fazo agora? perguntou o rapaz.
Siga em direzgo as Pirvmides disse o Alquimista. E continue
atento aos sinais. Seu corazgo jb j capaz de lhe mostrar o tesouro.
Era isto que estava faltando saber?
Ngo. respondeu o Alquimista. O que estb faltando saber j o
seguinte:
"Sempre antes de realizar um sonho, a Alma do Mundo resolve testar tudo
aquilo que foi aprendido durante a caminhada. Ela faz isto ngo porque seja
mb, mas para que possamos, junto com o nosso sonho, conquistar tambjm as
lizhes que aprendemos seguindo em direzgo a ele. J o momento em que a maior
parte das pessoas desiste. J o que chamamos, em linguagem do deserto, de
`morrer de sede quando as tamareiras jb apareceram no horizonte' ".
"Uma busca comeza sempre com a Sorte de Principiante. E termina sempre
com a Prova do Conquistador".
O rapaz lembrou-se de um velho provjrbio de sua terra. Dizia que a hora
mais escura era a que vinha antes do sol nascer.
No dia seguinte apareceu o primeiro sinal concreto de perigo. Trks
guerreiros se aproximaram e perguntaram o que os dois estavam fazendo por
ali.
Vim cazar com o meu falcgo respondeu o Alquimista.
Precisamos revistb-los para ver se ngo levam armas disse um dos
guerreiros.
O Alquimista desceu devagar de seu cavalo. O rapaz fez o mesmo.
Para quk tanto dinheiro? perguntou o guerreiro, quando viu a bolsa
do rapaz.
Para chegar ao Egito disse ele.
O guarda que estava revistando o Alquimista encontrou um pequeno frasco
de cristal cheio de lnquido, e um ovo de vidro amarelado, pouco maior que o
ovo de uma galinha.
Que sgo estas coisas? perguntou o guarda.
J a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida. J a grande obra dos
Alquimistas. Quem tomar este elixir jamais ficarb doente, e uma lasca desta
pedra transforma qualquer metal em ouro.
Os guardas riram pra valer, e o Alquimista riu com eles. Tinham achado
a resposta muito engrazada, e os deixaram partir sem maiores contratempos,
com todos os seus pertences.
Vock estb louco? perguntou o rapaz ao Alquimista, quando jb haviam
se distanciado bastante. Para que vock fez isto?
Para mostrar a vock uma simples lei do mundo respondeu o
Alquimista. Quando temos os grandes tesouros diante de nus, nunca
percebemos. E sabe por quk? Porque os homens ngo acreditam em tesouros.
Continuaram andando pelo deserto. A cada dia que passava, o corazgo do
rapaz ia ficando mais silencioso. Jb ngo queria saber das coisas passadas ou
das coisas futuras; contentava-se em contemplar tambjm o deserto, e beber
junto com o rapaz da Alma do Mundo. Ele e seu corazgo tornaram-se grandes
amigos um passou a ser incapaz de trair o outro.
Quando o corazgo falava, era para dar estnmulo e forza ao rapaz, que as
vezes achava terrivelmente mazante os dias de silkncio. O corazgo contou-lhe
pela primeira vez suas grandes qualidades: sua coragem ao abandonar as
ovelhas, ao viver sua Lenda Pessoal, e seu entusiasmo na loja de cristais.
Contou-lhe tambjm mais uma coisa, que o rapaz nunca havia notado: os
perigos que passaram perto e que ele nunca tinha percebido. Seu corazgo
disse que certa vez havia escondido a pistola que ele havia roubado do pai,
pois havia uma grande chance de que se ferisse com ela. E lembrou um dia que
o rapaz havia passado mal em pleno campo, vomitado, e depois dormido por
muito tempo: haviam dois assaltantes mais adiante, que estavam planejando
roubar suas ovelhas, e assassinb-lo. Mas como o rapaz ngo aparecia,
resolveram ir embora, achando que ele tinha mudado de rota.
Os corazhes sempre ajudam os homens? perguntou o rapaz ao
Alquimista.
Su os que vivem sua Lenda Pessoal. Mas ajudam muito as crianzas, os
bkbados, e os velhos.
Quer dizer entgo que ngo hb perigo?
Quer dizer apenas que os corazhes se esforzam ao mbximo respondeu o
Alquimista.
Certa tarde passaram pelo acampamento de um dos clgs. Haviam brabes em
vistosas roupas brancas, com armas ensilhadas em todos os cantos. Os homens
fumavam narguilj e conversavam sobre os combates. Ningujm prestou maior
atenzgo aos dois viajantes.
Ngo hb qualquer perigo disse o rapaz, quando jb tinham se afastado
um pouco do acampamento.
O Alquimista ficou furioso.
Confie em seu corazgo disse, mas ngo se esqueza de que vock estb no
deserto. Quando os homens estgo em guerra, a Alma do Mundo tambjm sente os
gritos de combate. Ningujm deixa de sofrer as conseq'kncias de cada coisa
que se passa debaixo do sol.
"Tudo j uma coisa Ūnica", pensou o rapaz.
E como se o deserto quisesse mostrar que o velho Alquimista estava
certo, dois cavaleiros surgiram por detrbs dos viajantes.
Ngo podem seguir adiante disse um deles. Vocks estgo nas areias
onde os combates sgo travados.
Ngo vou muito longe respondeu o Alquimista, olhando fundo nos olhos
dos guerreiros. Eles ficaram quietos por alguns minutos, e depois
concordaram com a viagem dos dois.
O rapaz assistiu aquilo tudo fascinado.
Vock dominou os guardas com o olhar comentou ele.
Os olhos mostram a forza da alma respondeu o Alquimista.
Era verdade, pensou o rapaz. Havia percebido que, no meio da multidgo
de soldados no acampamento, um deles estava olhando fixo para os dois. E
estava tgo distante, que ngo dava sequer para ver direito sua face. Mas o
rapaz tinha certeza de que estava olhando para eles.
Finalmente, quando comezaram a cruzar uma montanha que se estendia por
todo o horizonte, o Alquimista disse que faltavam dois dias para chegarem
atj as Pirvmides.
Se vamos nos separar logo respondeu o rapaz me ensine Alquimia.
Vock jb sabe. J penetrar na Alma do Mundo, e descobrir o tesouro que
ela reservou para nus.
Ngo j isto que quero saber. Falo de transformar chumbo em ouro.
O Alquimista respeitou o silkncio do deserto, e su respondeu ao rapaz
quando pararam para comer.
Tudo no Universo evolui disse ele. E para os sbbios, o ouro j o
metal mais evolundo. Ngo pergunte porquk; ngo sei. Sei apenas que a Tradizgo
estb sempre certa.
"Os homens j que ngo interpretaram bem as palavras dos sbbios. E ao
invjs de snmbolo de evoluzgo, o ouro passou a ser o sinal das guerras.
As coisas falam muitas linguagens disse o rapaz. Vi quando o
relincho de camelo era apenas um relincho, depois passou a ser sinal de
perigo, e finalmente tornou- se de novo um relincho.
Mas calou-se. O Alquimista devia saber tudo aquilo.
Conheci verdadeiros alquimistas continuou. Se trancavam no
laboraturio e tentavam evoluir como o ouro; descobriam a Pedra Filosofal.
Porque haviam entendido que quando uma coisa evolui, evolui tambjm tudo que
estb a sua volta.
"Outros conseguiram a pedra por acidente. Jb tinham o dom, suas almas
estavam mais despertas que a das outras pessoas. Mas estes ngo contam,
porque sgo raros.
"Outros, enfim, buscavam apenas o ouro. Estes jamais descobriram o
segredo. Esqueceram-se de que o chumbo, o cobre, o ferro, tambjm tkm sua
Lenda Pessoal para cumprir. Quem interfere na Lenda Pessoal dos outros,
nunca descobrirb a sua".
As palavras do Alquimista soaram como uma maldizgo. Ele abaixou-se e
pegou uma concha no solo do deserto.
Isto um dia jb foi um mar disse.
Jb tinha reparado respondeu o rapaz. O Alquimista pediu ao rapaz
para colocar a concha no ouvido. Ele tinha feito isto muitas vezes quando
era crianza, e escutou o barulho do mar.
O mar continua dentro desta concha, porque j sua Lenda Pessoal. E
jamais a abandonarb, atj que o deserto se cubra novamente de bgua.
Depois montaram em seus cavalos, e seguiram em direzgo as Pirvmides do
Egito.
O sol tinha comezado a descer quando o corazgo do rapaz deu sinal de
perigo. Estavam no meio de gigantescas dunas, e o rapaz olhou o Alquimista,
mas este parecia ngo haver notado nada. Cinco minutos depois o rapaz
percebeu dois cavaleiros a sua frente, as silhuetas cortadas contra o sol.
Antes que pudesse falar com o Alquimista, os dois cavaleiros se
transformaram em dez, depois em cem, atj que as gigantescas dunas ficaram
cobertas deles.
Eram guerreiros vestidos de azul, com uma tiara negra sobre o turbante.
Os rostos estavam cobertos por outro vju azul, deixando apenas os olhos de
fora.
Mesmo distante, os olhos mostravam a forza de suas almas. E os olhos
falavam em morte.
Levaram os dois para um acampamento militar nas imediazhes. Um soldado
empurrou o rapaz e o Alquimista para dentro de uma tenda. Era uma tenda
diferente das que havia conhecido no obsis; ali estava um comandante reunido
com seu estado-maior.
Sgo os espihes disse um dos homens.
Somos apenas viajantes respondeu o Alquimista.
Vocks foram vistos no acampamento inimigo hb trks dias atrbs. E
conversaram com um dos guerreiros.
Sou um homem que caminha pelo deserto e conhece as estrelas disse o
Alquimista. Ngo tenho informazhes de tropas, ou o movimento dos clgs. Apenas
guiava meu amigo atj aqui.
Quem j seu amigo? perguntou o comandante.
Um Alquimista disse o Alquimista. Conhece os poderes da natureza.
E deseja mostrar ao comandante sua capacidade extraordinbria.
O rapaz ouvia em silkncio. E com medo.
O que faz um estrangeiro numa terra estrangeira? disse outro homem.
Trouxe dinheiro para oferecer a seu clg respondeu o Alquimista,
antes que o rapaz dissesse qualquer palavra. E pegando a bolsa do rapaz,
entregou as moedas de ouro ao general.
O brabe aceitou em silkncio. Dava para comprar muitas armas.
O que j um Alquimista? perguntou, finalmente.
Um homem que conhece a natureza e o mundo. Se ele quisesse, destruna
este acampamento apenas com a forza do vento.
Os homens riram. Estavam acostumados com a forza da guerra, e o vento
ngo detjm um golpe mortal. Dentro do peito de cada um, porjm, seus corazhes
apertaram. Eram homens do deserto e tinham medo dos feiticeiros.
Quero ver disse o general.
Precisamos de trks dias respondeu o Alquimista. E ele vai se
transformar em vento, apenas para mostrar a forza de seu poder. Se ngo
conseguir, nus lhe oferecemos humildemente nossas vidas, pela honra de seu
clg.
Ngo pode me oferecer o que jb j meu disse, arrogante, o general.
Mas concedeu os trks dias aos viajantes.
O rapaz estava paralisado de terror. Saiu da tenda porque o Alquimista
lhe segurou os brazos.
Ngo deixe que eles percebam seu medo disse o Alquimista. Sgo
homens corajosos, e desprezam os covardes.
O rapaz, porjm, estava sem voz. Su conseguiu falar depois de algum
tempo, enquanto caminhavam pelo meio do acampamento. Ngo havia necessidade
de prisgo: os brabes apenas tiraram seus cavalos. E mais uma vez o mundo
mostrou suas muitas linguagens: o deserto, antes um terreno livre e sem fim,
era agora uma muralha intransponnvel.
Vock deu todo o meu tesouro! disse o rapaz. Tudo que eu ganhei em
toda a minha vida!
E para que lhe adiantaria isto, se tivesse que morrer? respondeu, o
Alquimista. Seu dinheiro o salvou por trks dias. Poucas vezes o dinheiro
serve para adiar a morte.
Mas o rapaz estava apavorado demais para ouvir palavras sbbias. Ngo
sabia como transformar-se em vento. Ngo era um Alquimista.
O Alquimista pediu chb a um guerreiro, e colocou um pouco nos pulsos do
rapaz. Uma onda de tranq'ilidade encheu seu corpo, enquanto o Alquimista
dizia algumas palavras que ele ngo conseguia compreender.
Ngo se entregue ao desespero disse o Alquimista, com uma voz
estranhamente doce. Isto faz com que vock ngo consiga conversar com seu
corazgo.
Mas eu ngo sei transformar-me em vento.
Quem vive sua Lenda Pessoal, sabe tudo que precisa saber. Su uma
coisa torna um sonho impossnvel: o medo de fracassar.
Ngo tenho medo de fracassar. Apenas ngo sei transformar-me em vento.
Pois terb que aprender. Sua vida depende disto.
E se eu ngo conseguir?
Vai morrer enquanto vivia sua Lenda Pessoal. J muito melhor do que
morrer como milhhes de pessoas, que jamais souberam que a Lenda Pessoal
existia.
"Entretanto, ngo se preocupe. Geralmente a morte faz com que as pessoas
fiquem mais sensnveis a vida."
O primeiro dia se passou. Houve uma grande batalha nas imediazhes, e
vbrios feridos foram trazidos para o acampamento militar. "Nada muda com a
morte", pensava o rapaz. Os guerreiros que morriam eram substitundos por
outros, e a vida continuava.
Poderias ter morrido mais tarde, meu amigo disse o guarda para o
corpo de um companheiro seu. Poderias ter morrido quando chegasse a paz.
Mas irias terminar morrendo de qualquer jeito.
No final do dia, o rapaz foi procurar o Alquimista. Estava levando o
falcgo para o deserto.
Ngo sei transformar-me em vento repetiu o rapaz.
Lembre-se do que eu lhe disse: de que o mundo j apenas a parte
visnvel de Deus. De que a Alquimia j trazer para o plano material a
perfeizgo espiritual.
O que vock faz?
Alimento meu falcgo.
Se eu ngo conseguir transformar-me em vento, nus vamos morrer disse
o rapaz. Para que alimentar o falcgo?
Quem vai morrer j vock disse o Alquimista. Eu sei transformar-me
em vento.
No segundo dia o rapaz foi para o alto de uma rocha que ficava perto do
acampamento. As sentinelas o deixaram passar; jb ouviram falar do bruxo que
se transformava em vento, e ngo queriam chegar perto dele. Aljm disso, o
deserto era uma grande e intransponnvel muralha.
Ficou o resto da tarde do segundo dia olhando o deserto. Escutou seu
corazgo. E o deserto escutou seu medo.
Ambos falavam a mesma lnngua.
No terceiro dia o general reuniu-se com os principais comandantes.
Vamos ver o garoto que se transforma em vento disse o General ao
Alquimista.
Vamos ver respondeu o Alquimista.
O rapaz os conduziu atj o lugar onde havia estado no dia anterior.
Entgo pediu que todos se sentassem.
Vai demorar um pouco disse o rapaz.
Ngo temos pressa respondeu o General. Somos homens do deserto.
O rapaz comezou a olhar o horizonte a sua frente. Haviam montanhas ao
longe, haviam dunas, rochas e plantas rasteiras que insistiam em viver onde
a sobrevivkncia era impossnvel. Ali estava o deserto, que ele havia
percorrido durante tantos meses, e que, mesmo assim, su conhecia uma parte
muito pequena. Nesta pequena parte ele havia encontrado ingleses, caravanas,
guerras de clgs, e um obsis com cinq'enta mil tamareiras e trezentos pozos.
O que vock quer aqui hoje? perguntou o deserto. Jb ngo nos
contemplamos o suficiente ontem?
Em algum ponto vock guarda a pessoa que eu amo disse o rapaz.
Entgo, quando olho suas areias contemplo tambjm a ela. Quero voltar a ela e
preciso de sua ajuda para transformar-me em vento.
O que j o amor? perguntou o deserto.
O amor j quando o falcgo voa sobre suas areias. Porque para ele vock
j um campo verde, e ele nunca voltou sem caza. Ele conhece suas rochas, suas
dunas, e suas montanhas, e vock j generoso com ele.
O bico do falcgo tira pedazos de mim disse o deserto. Durante
anos eu cultivo sua caza, alimento com a pouca bgua que tenho, mostro onde
estb a comida. E um dia, desce o falcgo do cju, justamente quando eu ia
sentir o carinho da caza sobre minhas areias. Ele carrega aquilo que eu
criei.
Mas foi para isto que vock criou a caza respondeu o rapaz. Para
alimentar o falcgo. E o falcgo alimentarb o homem. E o homem entgo
alimentarb um dia tuas areias, de onde a caza tornarb a surgir. Assim
move-se o mundo.
J isto o amor?
J isto o amor. J o que faz a caza transformar-se em falcgo, o falcgo
em homem, e o homem de novo em deserto. J isto que faz o chumbo
transformar-se em ouro; e o ouro voltar a esconder-se sob a terra.
Ngo entendo suas palavras disse o deserto.
Entgo entenda que em algum lugar de suas areias, uma mulher me
espera. E para isto, tenho que transformar-me em vento.
O deserto ficou em silkncio por alguns instantes.
Eu lhe dou minhas areias para que o vento possa soprar. Mas sozinho,
ngo posso fazer nada. Peza ajuda ao vento.
Uma pequena brisa comezou a soprar. Os comandantes olhavam o rapaz ao
longe, falando uma linguagem que eles ngo conheciam.
O Alquimista sorria.
O vento chegou perto do rapaz e tocou seu rosto. Havia escutado sua
conversa com o deserto, porque os ventos sempre conhecem tudo. Percorriam o
mundo sem um lugar onde nascer e sem um lugar onde morrer.
Me ajude disse o rapaz ao vento. Certo dia escutei em vock a voz
da minha amada.
Quem lhe ensinou a falar a linguagem do deserto e do vento?
Meu corazgo respondeu o rapaz.
O vento tinha muitos nomes. Ali ele era chamado de siroco, porque os
brabes acreditavam que ele vinha das terras cobertas de bgua, onde habitavam
homens negros. Na terra distante de onde vinha o rapaz, eles o chamavam de
Levante, porque acreditavam que trazia as areias do deserto e os gritos de
guerra dos mouros. Talvez num lugar mais distante dos campos de ovelhas, os
homens pensassem que o vento nascia em Andaluzia. Mas o vento ngo vinha de
lugar nenhum, e ngo ia para lugar nenhum, e por isso era mais forte que o
deserto. Um dia eles poderiam plantar brvores no deserto, e atj mesmo criar
ovelhas, mas jamais iriam conseguir dominar o vento.
Vock ngo pode ser o vento disse o vento. Somos de naturezas
diferentes.
Ngo j verdade disse o rapaz. Conheci os segredos da Alquimia,
enquanto vagava o mundo com vock. Tenho em mim os ventos, os desertos, os
oceanos, as estrelas, e tudo que foi criado no Universo. Fomos feitos pela
mesma Mgo, e temos a mesma Alma. Quero ser como vock, penetrar em todos os
cantos, atravessar os mares, tirar a areia que cobre meu tesouro, trazer
para perto a voz de minha amada.
Ouvi sua conversa com o Alquimista outro dia disse o vento. Ele
falou que cada coisa tem sua Lenda Pessoal. As pessoas ngo podem se
transformar em vento.
Me ensine a ser vento por alguns instantes, disse o rapaz. Para
que possamos conversar sobre as possibilidades ilimitadas dos homens e dos
ventos.
O vento era curioso, e aquilo era uma coisa que ele ngo conhecia.
Gostaria de conversar sobre aquele assunto, mas ngo sabia como transformar
homens em vento. E olha que ele conhecia tanta coisa! Construna desertos,
afundava navios, derrubava florestas inteiras, e passeava por cidades cheias
de mŪsica e de rundos estranhos. Achava que era ilimitado, e no entanto ali
estava um rapaz dizendo que ainda havia mais coisas que um vento podia
fazer.
J isto que chamam de Amor disse o rapaz, ao ver que o vento estava
quase cedendo ao seu pedido. Quando se ama j que se consegue ser qualquer
coisa da Criazgo. Quando se ama ngo temos necessidade nenhuma de entender o
que acontece, porque tudo passa a acontecer dentro de nus, e os homens podem
se transformar em vento. Desde que os ventos ajudem, j claro.
O vento era muito orgulhoso, e ficou irritado com o que o rapaz dizia.
Comezou a soprar com mais velocidade, levantando as areias do deserto. Mas
finalmente teve que reconhecer que, mesmo havendo percorrido o mundo
inteiro, ngo sabia como transformar homens em ventos. E ngo conhecia o Amor.
Enquanto passeava pelo mundo, notei que muitas pessoas falavam de
amor olhando para o cju disse o vento, furioso por ter que aceitar suas
limitazhes. Talvez seja melhor perguntar ao cju.
Entgo me ajude disse o rapaz. Encha este lugar de poeira, para
que eu possa olhar o sol sem ficar cego.
O vento entgo soprou com muita forza, e o cju ficou cheio de areia,
deixando apenas um disco dourado no lugar do sol.
No acampamento estava ficando difncil de enxergar. Os homens do deserto
jb conheciam aquele vento. Chamava-se Simum, e era pior que uma tempestade
no mar porque eles ngo conheciam o mar. Os cavalos relinchavam, e as armas
comezaram a ficar cobertas de areia.
No rochedo, um dos comandantes virou-se para o general, e disse:
Talvez seja melhor pararmos com isto. Eles jb quase ngo podiam
enxergar o rapaz. Os rostos estavam cobertos pelos lenzos azuis, e os olhos
agora significavam apenas espanto.
Vamos parar com isto insistiu outro comandante.
Quero ver a grandeza de Allah disse com respeito o general. Quero
ver como os homens se transformam em vento.
Mas anotou mentalmente o nome dos dois homens que haviam tido medo.
Assim que o vento parasse, ia destitun-los de seus comandos, porque os
homens do deserto ngo sentem medo.
O vento me disse que vock conhece o Amor disse o rapaz ao Sol. Se
vock conhece o Amor, conhece tambjm a Alma do Mundo, que j feita de Amor.
Daqui de onde estou disse o sol posso ver a Alma do Mundo. Ela se
comunica com minha alma, e nus, juntos, fazemos as plantas crescerem e as
ovelhas caminharem em busca de sombra. Daqui de onde estou e estou muito
longe do mundo aprendi a amar. Sei que, se eu me aproximar um pouco mais
da Terra, tudo que estb nela morrerb, e a Alma do Mundo deixarb de existir.
Entgo nos contemplamos e nos queremos, e eu lhe dou vida e calor, e ela me
db uma razgo para viver.
Vock conhece o Amor disse o rapaz.
E conhezo a Alma do Mundo, porque conversamos muito nesta viagem sem
fim pelo Universo. Ela me fala que seu maior problema j que atj hoje, su os
minerais e os vegetais entenderam que tudo j uma coisa su. E para isto, ngo
precisa que o ferro seja igual ao cobre, e que o cobre seja igual ao ouro.
Cada um cumpre sua funzgo exata nesta coisa Ūnica, e tudo seria uma Sinfonia
de Paz se a Mgo que escreveu tudo isto tivesse parado no quinto dia da
criazgo.
"Mas houve um sexto dia", disse o Sol.
Vock j sbbio porque vk tudo a distvncia respondeu o rapaz. Mas
ngo conhece o Amor. Se ngo houvesse um sexto dia da criazgo, ngo haveria o
homem, e o cobre seria sempre cobre, e o chumbo seria sempre chumbo. Cada um
tem sua Lenda Pessoal, j verdade, mas um dia esta Lenda Pessoal serb
cumprida. Entgo j preciso transformar-se em algo melhor, e ter uma nova
Lenda Pessoal, atj que a Alma do Mundo seja realmente uma coisa su.
O sol ficou pensativo e resolveu brilhar mais forte. O vento, que
estava gostando da conversa, soprou tambjm mais forte, para que o sol ngo
cegasse o rapaz.
Para isto existe a Alquimia disse o rapaz. Para que cada homem
busque seu tesouro, e o encontre, e depois queira ser melhor do que foi na
sua vida anterior. O chumbo cumprirb seu papel atj que o mundo ngo precise
mais de chumbo; entgo ele terb que transformar-se em ouro.
"Os Alquimistas fazem isto. Mostram que, quando buscamos ser melhores
do que somos, tudo em volta se torna melhor tambjm".
E por que vock diz que eu ngo conhezo o Amor? perguntou o Sol.
Porque o amor ngo j estar parado como o deserto, nem correr o mundo
como o vento, nem ver tudo de longe, como vock. O Amor j a forza que
transforma e melhora a Alma do Mundo. Quando penetrei nela pela primeira
vez, achei que fosse perfeita. Mas depois vi que ela era um reflexo de todas
as criaturas, e tinha suas guerras e suas paixhes. Somos nus que alimentamos
a Alma do Mundo, e a terra onde vivemos serb melhor ou pior, se formos
melhores ou piores. An j que entra a forza do Amor, porque quando amamos,
sempre desejamos ser melhores do que somos.
O que vock quer de mim? perguntou o Sol.
Que me ajude a transformar-me em vento respondeu o rapaz.
A Natureza me conhece como a mais sbbia de todas as criaturas disse
o Sol. Mas ngo sei como transformb-lo em vento.
Com quem devo falar, entgo?
Por um momento o sol ficou quieto. O vento estava ouvindo, e ia
espalhar por todo o mundo que sua sabedoria era limitada. Entretanto, ngo
tinha jeito de fugir daquele rapaz, que falava a Linguagem do Mundo.
Converse com a Mgo que escreveu tudo disse o Sol.
O vento gritou de contentamento, e soprou com mais forza do que nunca.
As tendas comezaram a ser arrancadas da areia, e os animais soltaram-se de
suas rjdeas. No rochedo, os homens se agarravam uns aos outros para ngo
serem atirados longe.
O rapaz se virou entgo para a Mgo que Tudo Havia Escrito. E ao invjs de
falar qualquer coisa, sentiu que o Universo ficava em silkncio, e ficou em
silkncio tambjm.
Uma forza de Amor jorrou de seu corazgo, e o rapaz comezou a rezar. Era
uma orazgo que nunca tinha feito antes, porque era uma orazgo sem palavras
ou sem pedidos. Ngo estava agradecendo pelas ovelhas haverem encontrado um
pasto, nem implorando para vender mais cristais, nem pedindo para que a
mulher que havia encontrado estivesse esperando sua volta. No silkncio que
se seguiu, o rapaz entendeu que o deserto, o vento, e o sol tambjm buscavam
os sinais que aquela Mgo havia escrito, e procuravam cumprir seus caminhos e
entender o que estava escrito numa simples esmeralda. Sabia que aqueles
sinais estavam espalhados na Terra e no Espazo, e que em sua aparkncia ngo
tinham qualquer motivo ou significado, e que nem os desertos, nem os ventos,
nem os suis, e nem os homens sabiam porque tinham sido criados. Mas aquela
Mgo tinha um motivo para tudo isto, e su ela era capaz de operar milagres,
de transformar oceanos em desertos, e homens em vento. Porque su ela
entendia que um desngnio maior empurrava o Universo a um ponto onde os seis
dias da criazgo se transformariam na Grande Obra.
E o rapaz mergulhou na Alma do Mundo, e viu que a Alma do Mundo era a
parte da Alma de Deus, e viu que a Alma de Deus era a sua prupria alma. E
que podia, entgo, realizar milagres.
O simum soprou naquele dia como jamais havia soprado. Durante muitas
gerazhes os brabes contaram entre si a lenda de um rapaz que havia se
transformado em vento, quase destrundo um acampamento militar, e desafiado o
poder do mais importante general do deserto.
Quando o simum parou de soprar, todos olharam para o lugar onde o rapaz
estava. Ele ngo estava mais lb; estava junto a um sentinela quase coberto de
areia, e que vigiava o outro lado do acampamento.
Os homens estavam apavorados com a bruxaria. Su duas pessoas sorriam: o
Alquimista, porque tinha encontrado seu discnpulo certo, e o General, porque
o discnpulo tinha entendido a gluria de Deus.
No dia seguinte, o general despediu-se do rapaz e do Alquimista, e
pediu que uma escolta os acompanhasse atj onde os dois quisessem.
Caminharam o dia inteiro. Quando estava entardecendo, chegaram em
frente a um mosteiro copta. O Alquimista dispensou a escolta, e desceu de
seu cavalo.
Daqui para frente vock vai sozinho disse o Alquimista. Sgo apenas
trks horas atj as Pirvmides.
Obrigado disse o rapaz. Vock me ensinou a Linguagem do Mundo.
Eu apenas recordei o que vock jb sabia.
O Alquimista bateu na porta do mosteiro. Um monge todo vestido de preto
veio atender. Conversaram alguma coisa em copta, e o alquimista convidou o
rapaz para entrar.
Pedi que me emprestasse um pouco a cozinha disse ele.
Foram atj a cozinha do mosteiro. O Alquimista acendeu o fogo, e o monge
trouxe um pouco de chumbo, que o Alquimista derreteu dentro de um vaso de
ferro. Quando o chumbo tinha virado lnquido, o Alquimista tirou do seu saco
aquele estranho ovo de vidro amarelado. Raspou uma camada do tamanho de um
fio de cabelo, envolveu-o em cera, e atirou na panela com o chumbo.
A mistura ganhou uma cor vermelha, como o sangue. O Alquimista entgo
tirou a panela do fogo e a deixou esfriar. Enquanto isto, conversava com o
monge a respeito da guerra dos clgs.
Deve durar muito disse ele para o monge.
O monge estava aborrecido. Fazia tempo que as caravanas estavam paradas
em Gizeh, esperando que a guerra acabasse. "Mas seja feita a vontade de
Deus", disse o monge.
Exatamente respondeu o Alquimista.
Quando a panela acabou de esfriar, o monge e o rapaz olharam
deslumbrados. O chumbo tinha secado na forma circular da panela, mas jb ngo
era mais chumbo. Era ouro.
Aprenderei a fazer isto um dia? perguntou o rapaz.
Esta foi minha Lenda Pessoal, e ngo a sua respondeu o Alquimista.
Mas queria lhe mostrar que j possnvel.
Caminharam de novo atj a porta do convento. Ali, o Alquimista dividiu o
disco em quatro partes.
Esta j para vock disse ele, estendendo uma parte para o monge.
Por sua generosidade com os peregrinos.
Estou recebendo um pagamento aljm da minha generosidade respondeu o
monge.
Jamais repita isto. A vida pode escutar, e lhe dar menos da pruxima
vez.
Depois aproximou-se do rapaz.
Esta j para vock. Para pagar o que deixou com o general.
O rapaz ia dizer que era muito mais do que havia deixado com o general.
Mas ficou quieto, porque tinha ouvido o comentbrio do Alquimista com o monge
...
Esta j para mim disse o Alquimista, guardando uma parte. Porque
tenho que voltar pelo deserto, e existe uma guerra entre os clgs.
Entgo pegou o quarto pedazo e deu de novo para o monge.
Esta j para o rapaz. Caso ele necessite.
Mas estou indo em busca do meu tesouro disse o rapaz. Estou perto
dele agora!
E tenho certeza que irb encontrb-lo falou o Alquimista.
Entgo por que isto?
Porque vock jb perdeu duas vezes, com o ladrgo e com o general, o
dinheiro que ganhou em sua viagem. Eu sou um velho brabe supersticioso, que
acredito nos provjrbios de minha terra. E existe um provjrbio que diz:
"Tudo que acontece uma vez, pode nunca mais acontecer. Mas tudo que
acontece duas vezes, acontecerb certamente uma terceira".
Montaram em seus cavalos.
Quero lhe contar uma histuria sobre sonhos disse o Alquimista.
O rapaz aproximou seu cavalo.
Na antiga Roma, na jpoca do imperador Tibjrio, vivia um homem muito
bom, que tinha dois filhos: um era militar, e quando entrou para o exjrcito,
foi enviado para as mais distantes regihes do Impjrio. O outro filho era
poeta, e encantava toda Roma com seus belos versos.
"Certa noite, o velho teve um sonho. Um anjo lhe aparecia para dizer
que as palavras de um de seus filhos seriam conhecidas e repetidas no mundo
inteiro, por todas as gerazhes vindouras. O velho homem acordou agradecido e
chorando naquela noite, porque a vida era generosa, e havia lhe revelado uma
coisa que qualquer pai teria orgulho de saber.
"Pouco tempo depois, o velho morreu ao tentar salvar uma crianza que ia
ser esmagada pelas rodas de uma carruagem. Como tinha se comportado de
maneira correta e justa por toda a sua vida, foi direto para o cju, e
encontrou-se com o anjo que havia aparecido em seu sonho.
" Vock foi um homem bom disse-lhe o anjo. Viveu sua existkncia com
amor, e morreu com dignidade. Posso realizar agora qualquer desejo que
tenha.
" A vida tambjm foi boa para mim respondeu o velho. Quando vock
apareceu em um sonho, senti que todos os meus esforzos estavam justificados.
Porque os versos de meu filho ficargo entre os homens pelos sjculos
vindouros. Nada tenho a pedir para mim; entretanto, todo pai se orgulharia
de ver a fama de algujm que ele cuidou quando crianza e educou quando jovem.
Gostaria de ver, no futuro distante, as palavras do meu filho.
"O anjo tocou no ombro do velho, e os dois foram projetados para um
futuro distante. Em volta deles apareceu um lugar imenso, com milhares de
pessoas, que falavam numa lnngua estranha.
"O velho chorou de alegria.
" Eu sabia que os versos do meu filho poeta eram bons e imortais
disse para o anjo, entre lbgrimas. Gostaria que vock me dissesse qual de
suas poesias estas pessoas estgo repetindo.
"O anjo entgo se aproximou do velho com carinho, e sentaram-se num dos
bancos que havia naquele imenso lugar.
" Os versos de seu filho poeta foram muito populares em Roma disse o
anjo. Todos gostavam, e se divertiam com eles. Mas quando o reinado de
Tibjrio acabou, seus versos tambjm foram esquecidos. Estas palavras sgo de
seu filho que entrou para o exjrcito.
"O velho olhou surpreso para o anjo.
" Seu filho foi servir num lugar distante, e tornou-se centurigo. Era
tambjm um homem justo e bom. Certa tarde, um dos seus servos ficou doente, e
estava para morrer. Seu filho, entgo, ouviu falar de um rabi que curava os
doentes, e andou dias e dias em busca deste homem. Enquanto caminhava,
descobriu que o homem que estava procurando era o Filho de Deus. Encontrou
outras pessoas que haviam sido curadas por ele, aprendeu seus ensinamentos,
e mesmo sendo um centurigo romano converteu-se a sua fj. Atj que certa manhg
chegou perto do Rabi.
" Contou-lhe que tinha um servo doente. E o Rabi se prontificou a ir
atj sua casa. Mas o centurigo era um homem de fj, e olhando no fundo dos
olhos do Rabi, compreendeu que estava mesmo diante do Filho de Deus, quando
as pessoas em volta deles se levantaram.
" Estas sgo as palavras de seu filho disse o anjo ao velho . Sgo
as palavras que ele disse ao Rabi naquele momento, e que nunca mais foram
esquecidas". Dizem: "Senhor eu ngo sou digno que entreis em minha casa, mas
dizei uma su palavra e meu servo serb salvo".
O Alquimista moveu seu cavalo.
Ngo importa o que faza, cada pessoa na Terra estb sempre
representando o papel principal da Histuria do mundo disse ele.
E normalmente ngo sabe disto.
O rapaz sorriu. Nunca havia pensado que a vida pudesse ser tgo
importante para um pastor.
Adeus disse o Alquimista.
Adeus respondeu o rapaz.
O rapaz caminhou duas horas e meia pelo deserto, procurando escutar
atentamente o que seu corazgo dizia. Era ele que iria revelar o local exato
onde o tesouro estava escondido.
"Onde estiver seu tesouro, ali estarb tambjm o seu corazgo", dissera o
Alquimista.
Mas seu corazgo falava em outras coisas.
Contava com orgulho a histuria de um pastor que havia deixado suas
ovelhas para seguir um sono que se repetiu duas noites. Contava da Lenda
Pessoal, e de muitos homens que fizeram isto, que foram em busca de terras
distantes ou de mulheres bonitas, enfrentando os homens de sua jpoca com
seus preconceitos e conceitos. Falou durante todo aquele tempo de viagens,
de descobertas, de livros e de grandes mudanzas.
Quando ia comezar a subir uma duna e su naquele momento foi que seu
corazgo sussurrou ao seu ouvido "esteja atento para o lugar onde vock
chorar. Porque neste lugar estou eu, e neste lugar estb seu tesouro".
O rapaz comezou a subir a duna lentamente. O cju, coberto de estrelas,
mostrava de novo uma lua cheia; haviam caminhado um mks pelo deserto. A lua
iluminava tambjm a duna, num jogo de sombras, que fazia com que o deserto
parecesse um mar cheio de ondas, e fazia com que o rapaz se lembrasse do dia
em que soltara livremente um cavalo pelo deserto, dando um bom sinal ao
Alquimista. Finalmente a lua iluminava o silkncio do deserto, e a jornada
que fazem os homens que buscam tesouros.
Quando, depois de alguns minutos, chegou ao topo da duna, seu corazgo
deu um salto. Iluminadas pela luz da lua cheia e pelo branco do deserto,
erguiam-se majestosas e solenes as Pirvmides do Egito.
O rapaz caiu de joelhos e chorou. Agradecia a Deus por haver acreditado
em sua Lenda Pessoal, e por haver encontrado certo dia um rei, um mercador,
um inglks, e um alquimista. Sobretudo, por haver encontrado uma mulher do
deserto, que lhe tinha feito entender que o Amor jamais vai separar o homem
de sua Lenda Pessoal.
Os muitos sjculos das Pirvmides do Egito contemplavam, do alto, o
rapaz. Se ele quisesse, podia agora voltar ao obsis, pegar Fbtima, e viver
como simples pastor de ovelhas. Porque o Alquimista vivia no deserto, mesmo
compreendendo a Linguagem do Mundo, mesmo sabendo transformar chumbo em
ouro. Ngo tinha que mostrar a ningujm sua cikncia e sua arte. Enquanto
caminhava em direzgo a sua Lenda Pessoal, havia aprendido tudo que
precisava, e havia vivido tudo que tinha sonhado viver.
Mas havia chegado ao seu tesouro, e uma obra su estb completa quando o
objetivo j atingido. Ali, naquela duna, o rapaz havia chorado. Olhou para o
chgo e viu que, no local onde haviam cando suas lbgrimas, um escaravelho
passeava. Durante o tempo que havia passado no deserto, tinha aprendido que,
no Egito, os escaravelhos eram o snmbolo de Deus.
Ali estava mais um sinal. E o rapaz comezou a cavar, depois de
lembrar-se do mercador de cristais; ningujm conseguiria ter uma Pirvmide no
seu quintal, mesmo que amontoasse pedras por toda a sua vida.
Durante a noite inteira o rapaz cavou no lugar marcado, sem encontrar
nada. Do alto das Pirvmides, os sjculos o contemplavam, em silkncio . Mas o
rapaz ngo desistia:
cavava e cavava, lutando com o vento, que muitas vezes tornava a trazer
a areia de volta para o buraco. Suas mgos ficaram cansadas depois feridas,
mas o rapaz acreditava em seu corazgo. E seu corazgo dissera para cavar onde
suas lbgrimas canssem.
De repente, quando estava tentando tirar algumas pedras que haviam
aparecido, o rapaz ouviu passos. Algumas pessoas se aproximaram dele.
Estavam contra a lua, e o rapaz ngo podia ver seus olhos, nem seus rostos.
O que vock estb fazendo an? perguntou um dos vultos.
O rapaz ngo respondeu. Mas sentiu medo. Tinha agora um tesouro para
desenterrar, e por isso tinha medo.
Somos refugiados da guerra dos clgs disse outro vulto. Precisamos
saber o que vock esconde an. Precisamos de dinheiro.
Ngo escondo nada respondeu o rapaz.
Mas um dos recjm-chegados agarrou-o e o puxou para fora do buraco.
Outro comezou a revistar seus bolsos. E encontraram o pedazo de ouro.
Ele tem ouro disse um dos salteadores.
A lua iluminou a face de quem o estava revistando, e ele viu, em seus
olhos, a morte.
Deve haver mais ouro escondido no chgo disse outro.
E obrigaram o rapaz a cavar. O rapaz continuou cavando, e ngo havia
nada. Entgo comezaram a bater no rapaz. Espancaram o rapaz atj que
aparecessem no cju os primeiros raios de sol. Sua roupa ficou em frangalhos,
e ele sentiu que a morte estava pruxima.
"De que adianta o dinheiro, se tiver que morrer? Poucas vezes o
dinheiro j capaz de livrar algujm da morte", dissera o Alquimista.
Estou procurando um tesouro! gritou finalmente o rapaz. E mesmo com
a boca ferida e inchada de pancadas, contou aos salteadores que havia
sonhado duas vezes com um tesouro escondido junto das Pirvmides do Egito.
O que parecia o chefe ficou um longo tempo em silkncio. Depois falou
com um deles:
Pode deixb-lo. Ele ngo tem mais nada. Deve ter roubado este ouro.
O rapaz caiu com o rosto na areia. Dois olhos procuraram os seus; era o
chefe dos salteadores. Mas o rapaz estava olhando as Pirvmides.
Vamos embora disse o chefe para os outros.
Depois, virou-se para o rapaz:
Vock ngo vai morrer disse. Vai viver e aprender que o homem ngo
pode ser tgo estŪpido. An, neste lugar onde vock estb, eu tambjm tive um
sonho repetido hb quase dois anos atrbs. Sonhei que devia ir atj os campos
da Espanha, buscar uma igreja em runnas onde os pastores costumavam dormir
com suas ovelhas, e que tinha um sicfmoro crescendo dentro da sacristia, se
eu cavasse na raiz deste sicfmoro, haveria de encontrar um tesouro
escondido. Mas ngo sou estŪpido de cruzar um deserto su porque tive um sonho
repetido.
Depois foi embora.
O rapaz levantou-se com dificuldade, e olhou mais uma vez para as
Pirvmides. As Pirvmides sorriram para ele, e ele sorriu de volta, com o
corazgo repleto de felicidade.
Havia encontrado o tesouro.
O rapaz chamava-se Santiago. Chegou na pequena igreja abandonada quando
jb estava quase anoitecendo. O sicfmoro ainda continuava na sacristia, e
ainda se podiam ver as estrelas atravjs do teto semidestrundo. Lembrou-se
que certa vez havia estado ali com suas ovelhas, e que tinha sido uma noite
tranq'ila, exceto pelo sonho.
Agora ele estava sem o seu rebanho. Ao invjs disto, trazia uma pb.
Ficou muito tempo olhando o cju. Depois tirou do alforje uma garrafa de
vinho, e bebeu. Lembrou-se da noite no deserto, quando tinha tambjm olhado
as estrelas e bebido vinho com o Alquimista. Pensou nos muitos caminhos que
tinha andado, e a maneira estranha de Deus lhe mostrar o tesouro. Se ngo
tivesse acreditado em sonhos repetidos, ngo tinha encontrado a cigana, nem o
rei, nem o salteador, nem... "bom, a lista j muito grande. Mas o caminho
estava escrito pelos sinais, e eu ngo tinha como errar", disse para si
mesmo.
Dormiu sem perceber, e quando acordou, o sol jb ia alto. Entgo comezou
a escavar a raiz do sicfmoro.
"Velho bruxo", pensava o rapaz. "Vock sabia de tudo. Deixou atj mesmo
um pouco de ouro para que eu pudesse voltar atj esta Igreja. O monge riu
quando me viu voltar em frangalhos. Ngo podia me poupar isto?"
"Ngo", ele escutou o vento dizer: "Se eu tivesse lhe contado, vock ngo
teria visto as Pirvmides. Sgo muito bonitas, ngo acha?"
Era a voz do Alquimista. O rapaz sorriu e continuou a cavar. Meia hora
depois, a pb bateu em algo sulido. Uma hora depois ele tinha diante de si um
baŪ cheio de velhas moedas de ouro espanholas. Havia tambjm pedrarias,
mbscaras de ouro com penas brancas e vermelhas, ndolos de pedra cravejados
de brilhantes. Pezas de uma conquista que o pans jb havia esquecido hb muito
tempo, e que o conquistador se esquecera de contar para seus filhos.
O rapaz tirou o Urim e o Tumim do alforje. Tinha utilizado as duas
pedras apenas uma vez, quando estava certa manhg, num mercado. A vida e o
seu caminho estiveram sempre cheios de sinais.
Guardou o Urim e o Tumim no baŪ de ouro. Eram tambjm parte de seu
tesouro, porque lembravam um velho rei que jamais tornaria a encontrar.
"Realmente a vida j generosa com quem vive sua Lenda Pessoal", pensou o
rapaz. Entgo lembrou-se de que tinha que ir atj Tarifa, e dar um djcimo
daquilo tudo para a cigana. "Como sgo espertos os ciganos", pensou. Talvez
fosse porque viajavam tanto.
Mas o vento voltou a soprar. Era o Levante, o vento que vinha da
Bfrica. Ngo trazia o cheiro do deserto, nem a ameaza de invasgo dos mouros.
Ao invjs disto, trazia um perfume que ele conhecia bem, e o som de um beijo
que veio vindo devagar, devagar, atj parar em seus lbbios.
O rapaz sorriu. Era a primeira vez que ela fazia isto.
Estou indo, Fbtima disse ele.
Last-modified: Thu, 21 Aug 2003 17:26:13 GMT