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     © Copyright Paulo Coelho
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     Origin: http://www.cyberminas.com.br
     Date: 14 Aug 2003
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     Edi§£o especial da p¡gina www.paulocoelho.com.br , venda proibida








     ‰  importante dizer  alguma coisa  sobre o  fato de O Alquimista ser um
livro simbãlico, diferente de O  Di¡rio  de um Mago, que foi um  trabalho de
n£o-fic§£o.
     Durante  onze anos de minha vida  estudei Alquimia.  A simples id©ia de
transformar metais em ouro,  ou de  descobrir o Elixir da Longa Vida, j¡ era
fascinante demais para passar  despercebida  a qualquer  iniciante em Magia.
Confesso que  o Elixir da Longa Vida  me seduzia  mais: antes de  entender e
sentir  a  presen§a  de  Deus,  a  id©ia de que  tudo ia acabar um  dia  era
desesperadora. De  maneira  que,  ao saber da  possibilidade de conseguir um
l­quido  capaz  de  prolongar  por muitos  anos  minha  existªncia,  resolvi
dedicar- me de corpo e alma   sua fabrica§£o.
     Era uma  ©poca de  grandes  transforma§åes sociais ­ o come§o dos  anos
setenta ­  e n£o  havia ainda  publica§åes  s©rias  a  respeito de Alquimia.
Comecei,  como um dos personagens do livro, a gastar  o  pouco dinheiro  que
tinha na compra de livros importados, e dedicava muitas horas do  meu dia ao
estudo da sua simbologia complicada. Procurei duas ou trªs pessoas no Rio de
Janeiro que se dedicavam seriamente    Grande Obra, e elas se recusaram a me
receber. Conheci tamb©m  muitas outras pessoas  que  se diziam  alquimistas,
possu­am  seus laboratãrios,  e prometiam  me ensinar os segredos da Arte em
troca de verdadeiras fortunas; hoje entendo que elas nada sabiam daquilo que
pretendiam ensinar.
     Mesmo  com  toda a  minha  dedica§£o, os  resultados eram absolutamente
nulos. N£o acontecia  nada do que os manuais de  Alquimia  afirmavam  em sua
complicada linguagem. Era  um sem-fim de  s­mbolos, de dragåes, leåes, sãis,
luas e mercêrios, e eu sempre tinha a impress£o de estar no caminho  errado,
porque a linguagem simbãlica permite uma gigantesca  margem de equ­vocos. Em
1973,  j¡  desesperado com  a  ausªncia  de progresso,  cometi  uma  suprema
irresponsabilidade.  Nesta  ©poca  eu  era  contratado  pela  Secretaria  de
Educa§£o de Mato Grosso para dar aulas de teatro naquele  estado, e  resolvi
utilizar meus alunos em laboratãrios teatrais que  tinham como tema  a T¡boa
da Esmeralda.  Esta  atitude, aliada  a algumas  incursåes  minhas nas ¡reas
pantanosas da Magia, fizeram com que no ano seguinte eu pudesse experimentar
na prãpria carne a verdade do prov©rbio: "Aqui se faz, aqui se paga". Tudo a
minha volta ruiu por completo.
     Passei os prãximos seis anos de minha vida numa atitude bastante c©tica
com  rela§£o a  tudo que dissesse  respeito    ¡rea  m­stica.  Neste  ex­lio
espiritual, aprendi muitas coisas importantes: que  sã aceitamos uma verdade
quando primeira a negamos do fundo da  alma, que n£o  devemos fugir de nosso
prãprio destino, e que a m£o de Deus © infinitamente generosa, apesar de Seu
rigor.
     Em 1981, conheci  RAM e o meu  Mestre, que iria conduzir-me de volta ao
caminho  que est¡ tra§ado  para mim.  E  enquanto ele  me  treinava em  seus
ensinamentos,  voltei  a  estudar  Alquimia por  minha prãpria conta.  Certa
noite, enquanto  convers¡vamos depois de uma  exaustiva sess£o de telepatia,
perguntei porque a linguagem dos alquimistas era t£o vaga e t£o complicada.
     ­ Existem trªs tipos  de alquimistas ­ disse meu Mestre. ­  Aqueles que
s£o vagos porque n£o sabem o que est£o falando; aqueles que s£o vagos porque
sabem  o que est£o  falando, mas sabem tamb©m  que a linguagem da Alquimia ©
uma linguagem dirigida ao cora§£o, e n£o   raz£o.


     ­ E qual o terceiro tipo? ­ perguntei.
     ­  Aqueles  que jamais ouviram  falar em Alquimia, mas que conseguiram,
atrav©s de suas vidas, descobrir a Pedra Filosofal.
     E com isto, meu  Mestre ­ que pertencia  ao segundo tipo ­ resolveu  me
dar aulas  de  Alquimia. Descobri que a  linguagem simbãlica, que  tanto  me
irritava  e  me desnorteava,  era a ênica maneira  de  se  atingir a Alma do
Mundo,  ou o  que  Jung chamou de "inconsciente coletivo". Descobri a  Lenda
Pessoal, e  os  Sinais de  Deus, verdades que meu racioc­nio intelectual  se
recusava a aceitar  por causa  de  sua simplicidade. Descobri que atingir  a
Grande  Obra n£o © tarefa de poucos, mas de todos os seres  humanos  sobre a
face da Terra. ‰ claro que  nem sempre a  Grande Obra vem sob a  forma de um
ovo e de um  frasco com l­quido, mas todos nãs podemos ­ sem qualquer sombra
de dêvida ­ mergulhar na Alma do Mundo.
     Por isso, "O Alquimista" © tamb©m  um  texto  simbãlico. No decorrer de
suas p¡ginas, al©m de  transmitir tudo  o  que aprendi a  respeito,  procuro
homenagear grandes escritores que conseguiram atingir a Linguagem Universal:
Hemingway,  Blake, Borges (que tamb©m utilizou  a histãria persa  para um de
seus contos), Malba Tahan, entre outros.

     Para  completar este  extenso  pref¡cio,  e  ilustrar  o que meu Mestre
queria  dizer com o terceiro tipo de  alquimistas, vale  a pena recordar uma
histãria que ele mesmo me contou no seu laboratãrio.
     Nossa Senhora, com  o Menino Jesus  em seus bra§os,  resolveu  descer  
Terra e visitar um mosteiro. Orgulhosos, todos os padres  fizeram uma grande
fila, e  cada um  chegava diante  da  Virgem  para prestar sua homenagem. Um
declamou belos  poemas,  outro  mostrou suas  iluminuras  para a  B­blia, um
terceiro  disse  o  nome de todos os  santos. E assim por diante, monge apãs
monge, homenageou Nossa Senhora e o Menino Jesus.
     No êltimo lugar  da  fila,  havia um padre, o mais humilde do convento,
que nunca havia aprendido os s¡bios textos da ©poca. Seus pais eram  pessoas
simples, que trabalhavam num velho  circo das  redondezas, e  tudo  que  lhe
haviam ensinado era atirar bolas para cima e fazer alguns malabarismos.
     Quando  chegou  sua   vez,  os  outros   padres  quiseram  encerrar  as
homenagens, porque  o antigo malabarista n£o  tinha  nada de importante para
dizer, e podia  desmoralizar a imagem do convento. Entretanto, no  fundo  do
seu cora§£o, tamb©m ele sentia uma imensa necessidade de dar alguma coisa de
si para Jesus e a Virgem.
     Envergonhado,  sentindo o olhar reprovador  de seus  irm£os,  ele tirou
algumas  laranjas   do  bolso  e  come§ou  a  jog¡-las  para  cima,  fazendo
malabarismos, que era a ênica coisa que sabia fazer.
     Foi sã neste instante que  o Menino Jesus  sorriu,  e come§ou  a  bater
palmas no colo de Nossa  Senhora.  E foi  para ele que  a Virgem estendeu os
bra§os, deixando que segurasse um pouco o menino.












     Para J.
     Alquimista que conhece e utiliza os segredos da Grande Obra.







     Indo eles pelo caminho, entraram em um certo povoado. E certa mulher,
     chamada Marta, hospedou-o na sua casa.
     Tinha ela uma irm£, chamada Maria, que sentou-se aos p©s do Senhor, e
     ficou ouvindo seus ensinamentos.
     Marta agitava-se de um lado para o outro, ocupada em muitos servi§os.
     Ent£o aproximou-se  de Jesus e disse: ­ Senhor! N£o te importas  de que
eu fique a servir sozinha? Ordena a minha
     irm£ que venha ajudar-me!
     Respondeu-lhe o Senhor:
     ­ Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas.
     "Maria,  entretanto,  escolheu  a  melhor  parte, e  esta n£o lhe  ser¡
tirada."








     O Alquimista  pegou  um livro  que algu©m na  caravana havia trazido. O
volume  estava  sem capa, mas  conseguiu identificar seu autor: Oscar Wilde.
Enquanto folheava suas p¡ginas, encontrou uma histãria sobre Narciso.
     O Alquimista conhecia  a  lenda de  Narciso, um belo rapaz que todos os
dias  ia  contemplar  sua prãpria beleza  num lago. Era t£o fascinado por si
mesmo  que certo  dia  caiu dentro do  lago e morreu  afogado. No lugar onde
caiu, nasceu uma flor, que chamaram de narciso.
     Mas n£o era assim que Oscar Wilde acabava a histãria.
     Ele dizia  que quando  Narciso morreu,  vieram as Or©iades  ­ deusas do
bosque  ­ e viram o lago transformado, de um lago de  ¡gua doce, num c¢ntaro
de l¡grimas salgadas.
     ­ Por que vocª chora? ­ perguntaram as Or©iades.
     ­ Choro por Narciso ­ disse o lago
     ­ Ah, n£o nos espanta que vocª chore por Narciso ­ continuaram  elas. ­
Afinal  de contas,  apesar de  todas  nãs sempre  corrermos atr¡s dele  pelo
bosque, vocª era o ênico que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua
beleza.
     ­ Mas Narciso era belo? ­ perguntou o lago.
     ­ Quem mais do que vocª poderia  saber disso? ­ responderam, surpresas,
as Or©iades.
     ­ Afinal  de contas, era em suas margens que ele se debru§ava todos  os
dias.
     O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse:
     ­  Eu choro  por Narciso,  mas jamais  havia percebido  que Narciso era
belo.
     "Choro  por  Narciso porque,  todas  as vezes que ele  se deitava sobre
minhas margens eu podia ver,  no  fundo dos seus olhos, minha prãpria beleza
refletida".

     "Que bela histãria", disse o Alquimista.





     O rapaz chamava-se Santiago. Estava come§ando a escurecer quando chegou
com  seu  rebanho  diante  de  uma  velha igreja abandonada.  O  teto  tinha
despencado  h¡ muito tempo, e um enorme sicämoro havia crescido no local que
antes abrigava a sacristia.
     Resolveu  passar a noite ali.  Fez  com que todas as ovelhas  entrassem
pela porta em ru­nas, e ent£o colocou  algumas t¡buas de modo  que  elas n£o
pudessem fugir  durante a noite. N£o haviam lobos naquela regi£o,  mas certa
vez  um  animal havia escapado durante  a noite, e  ele gastara  todo o  dia
seguinte procurando a ovelha desgarrada.
     Forrou o ch£o com seu casaco e deitou-se, usando o livro que acabara de
ler como travesseiro.  Lembrou-se, antes de dormir, que precisava come§ar  a
ler livros mais grossos: demoravam mais para acabar e eram travesseiros mais
confort¡veis durante a noite.
     Ainda  estava  escuro  quando acordou. Olhou para  cima,  e viu que  as
estrelas brilhavam atrav©s do teto semidestru­do.
     "Queria  dormir  um pouco mais",  pensou ele. Tivera  o mesmo sonho  da
semana passada, e outra vez acordara antes do final.
     Levantou-se e tomou um gole de vinho. Depois pegou o cajado e come§ou a
acordar as ovelhas  que ainda dormiam. Ele havia  reparado  que,  assim  que
acordava, a maior parte dos  animais  tamb©m come§ava  a despertar. Como  se
houvesse alguma misteriosa energia unindo sua vida    vida daquelas  ovelhas
que h¡  dois anos percorriam com ele a terra, em  busca  de ¡gua e alimento.
"Elas j¡ se acostumaram  tanto  a mim que  conhecem meus hor¡rios", disse em
voz baixa. Refletiu um momento, e pensou que  podia ser  tamb©m o contr¡rio:
ele que havia se acostumado ao hor¡rio das ovelhas.
     Haviam  certas  ovelhas,  por©m,  que  demoravam  um  pouco  mais  para
levantar. O rapaz acordou uma a uma com seu cajado, chamando cada  qual pelo
seu nome. Sempre  acreditara  que as ovelhas  eram capazes de entender o que
ele  falava. Por isso  costumava  s vezes ler para elas os trechos de livros
que o haviam impressionado, ou falar da solid£o e da alegria de um pastor no
campo, ou comentar sobre as êltimas novidades  que  via nas cidades por onde
costumava passar.
     Nos êltimos  dois dias, por©m, seu assunto  tinha  sido praticamente um
sã: a  menina, filha do comerciante, que morava na cidade por onde ia chegar
daqui a  quatro  dias. Tinha estado apenas uma vez l¡,  no  ano  anterior. O
comerciante era dono  de uma loja  de  tecidos, e  gostava sempre de ver  as
ovelhas tosquiadas na sua frente, para evitar falsifica§åes. Um  certo amigo
tinha indicado a loja, e o pastor levou l¡ suas ovelhas.






     "Preciso vender alguma l£", disse para o comerciante.
     A loja do  homem estava  cheia,  e o  comerciante  pediu  que  o pastor
esperasse  at© o entardecer.  Ele sentou-se na  cal§ada da  loja e tirou  um
livro do alforje.
     ­  N£o sabia que os  pastores s£o capazes de ler livros ­ disse uma voz
feminina ao seu lado.


     Era  uma mo§a  t­pica da regi£o de Andaluzia, com  seus cabelos  negros
escorridos, e os olhos  que  lembravam  vagamente os  antigos conquistadores
mouros.
     ­ ‰ porque as ovelhas ensinam mais  que os  livros ­ respondeu o rapaz.
Ficaram  conversando  por  mais de  duas horas.  Ela contou que era filha do
comerciante, e falou da vida na aldeia, onde cada dia era  igual ao outro. O
pastor contou dos  campos de Andaluzia, das  êltimas novidades  que  viu nas
cidades onde visitara. Estava contente por n£o precisar conversar sempre com
as ovelhas.
     ­ Como aprendeu a ler? ­ perguntou a mo§a a certa altura.
     ­ Como todas as outras pessoas ­ respondeu o rapaz. ­ Na escola.
     ­ E, se sabe ler, ent£o por que © apenas um pastor?
     O rapaz  deu uma desculpa  qualquer para n£o responder aquela pergunta.
Ele tinha certeza de que a mo§a  jamais entenderia. Continuou  a contar suas
histãrias  de viagem, e os pequenos olhos mouros abriam-se e fechavam-se  de
espanto  e surpresa.  € medida  que o tempo foi passando, o rapaz  come§ou a
desejar que aquele dia n£o acabasse nunca, que o pai da mo§a ficasse ocupado
por muito  tempo e o mandasse  esperar por trªs dias.  Percebeu  que  estava
sentindo uma coisa  que nunca havia sentido antes:  vontade de ficar morando
numa mesma cidade para sempre. Com a menina de cabelos negros, os dias nunca
seriam iguais.
     Mas  o comerciante finalmente chegou e mandou que ele tosquiasse quatro
ovelhas. Depois,  pagou-lhe o que era  devido, e  pediu  que voltasse no ano
seguinte.





     Agora  faltavam apenas  quatro dias para chegar de novo   mesma aldeia.
Estava excitado  e  ao mesmo  tempo  inseguro: talvez a  menina  j¡  tivesse
esquecido. Por ali passavam muitos pastores para vender l£.
     ­ N£o tem import¢ncia ­ disse o rapaz para as suas ovelhas. ­ Eu tamb©m
conhe§o outras meninas em outras cidades.
     Mas no fundo do seu cora§£o,  ele  sabia  que tinha import¢ncia.  E que
tanto os pastores,  como  os marinheiros, como os caixeiro-viajantes, sempre
conheciam uma cidade onde havia algu©m capaz de fazer com  que esquecessem a
alegria de viajar solto pelo mundo.






     O dia come§ou a raiar e o pastor colocou as ovelhas seguindo em dire§£o
ao sol. "Elas  nunca  precisam tomar uma decis£o",  pensou ele. "Talvez  por
isso fiquem  sempre  juntos  de mim". A  ênica  necessidade  que as  ovelhas
sentiam era de ¡gua e de alimento. Enquanto o  rapaz conhecesse  os melhores
pastos  em Andaluzia,  elas seriam  sempre  suas  amigas. Mesmo que  os dias
fossem  todos iguais, com longas horas se  arrastando entre  o  nascer  e  o
pär-do-sol; mesmo que elas jamais tivessem lido um sã livro  em suas  curtas
vidas, e  n£o conhecessem a l­ngua  dos homens que contavam as novidades nas
aldeias.  Elas  estavam contentes  com ¡gua  e alimento, e isto  bastava. Em
troca, ofereciam generosamente sua l£, sua companhia, e ­ de vez em quando ­
sua carne.
     "Se hoje eu me tornasse um monstro e resolvesse matar uma por uma, elas
sã iam  perceber  depois que quase todo o rebanho tivesse sido exterminado",
pensou o rapaz. "Porque confiam em mim, e se esqueceram  de confiar nos seus
prãprios instintos. Sã porque as conduzo ao alimento e   comida".
     O rapaz come§ou a estranhar seus prãprios pensamentos. Talvez a igreja,
com aquele sicämoro crescendo dentro, fosse  mal-assombrada. Tinha feito com
que  sonhasse um  mesmo  sonho pela  segunda  vez, e  estava  lhe  dando uma
sensa§£o de raiva contra suas companheiras, sempre t£o fi©is. Bebeu um pouco
de vinho que  havia sobrado do jantar na noite anterior, e apertou  contra o
corpo o seu casaco. Ele sabia que daqui a algumas horas, com o sol a pino, o
calor seria t£o forte que n£o ia poder
     conduzir as ovelhas pelo campo. Era a hora que toda a Espanha dormia no
ver£o. O calor durava at©  a noite, e  durante todo este tempo ele tinha que
ficar carregando  o casaco. Entretanto, quando pensava em reclamar do  peso,
sempre lembrava que por causa dele n£o havia sentido frio de manh£.
     "Temos que estar sempre preparados para as surpresas do tempo", pensava
ent£o ele, e sentia-se grato pelo peso do casaco.
     O  casaco  tinha  um motivo,  e  o  rapaz  tamb©m.  Em dois anos  pelas
plan­cies de Andaluzia ele j¡ sabia  de  cor todas as  cidades  da regi£o, e
esta  era a  grande raz£o de sua vida;  viajar. Estava  planejando  explicar
desta vez   menina porque um  simples  pastor  sabe ler: havia estado at© os
dezesseis anos  num semin¡rio.  Seus  pais queriam  que  ele fosse  padre, e
motivo de orgulho para  uma simples fam­lia camponesa, que trabalhava apenas
para comida e ¡gua, como suas ovelhas. Estudou latim, espanhol, e  teologia.
Mas  desde  crian§a  sonhava  em conhecer o  mundo,  e isto era  muito  mais
importante do que conhecer Deus ou os  pecados  dos homens.  Certa tarde, ao
visitar a fam­lia, havia tomado coragem  e dito para seu  pai que n£o queria
ser padre. Queria viajar.




     ­ Homens de todo o  mundo j¡ passaram por esta aldeia, filho ­ disse  o
pai. ­ Vªm em busca de  coisas novas, mas continuam as  mesmas pessoas.  V£o
at©  o morro conhecer o castelo e  acham  que  o passado  era  melhor que  o
presente.  Tªm cabelos louros ou pele escura, mas s£o iguais  aos  homens de
nossa aldeia.
     ­ Mas n£o conhe§o  os castelos das terras de onde eles vªm ­ retrucou o
rapaz.
     ­ Estes  homens, quando conhecem nossos campos e nossas mulheres, dizem
que gostariam de viver para sempre aqui ­ continuou o pai.
     ­ Quero conhecer as mulheres e as  terras de onde eles vieram ­ disse o
rapaz. ­ Porque eles nunca ficam por aqui.
     ­ Os homens  trazem a bolsa cheia de dinheiro  ­ disse mais  uma  vez o
pai. ­ Entre nãs, sã os pastores viajam.
     ­ Ent£o serei pastor.
     O pai n£o disse mais nada.  No dia seguinte deu-lhe uma bolsa  com trªs
antigas moedas de ouro espanholas.
     ­ Achei certo  dia no campo.  Iam ser da Igreja, como  seu dote. Compre
seu rebanho  e  corra  o  mundo  at©  aprender que  nosso  castelo © o  mais
importante, e nossas mulheres s£o as mais belas.
     E o aben§oou. Nos olhos do pai ele  leu  tamb©m  a vontade de  correr o
mundo. Uma vontade  que  ainda vivia, apesar das dezenas de  anos que ele  a
tentou sepultar com ¡gua, comida, e o mesmo lugar para dormir toda noite.






     O horizonte  se  tingiu  de vermelho, e depois  apareceu o sol. O rapaz
lembrou-se da  conversa com  o pai e sentiu-se  alegre;  tinha j¡  conhecido
muitos castelos e muitas mulheres (mas nenhuma igual  quela  que o  esperava
em  dois dias). Tinha um  casaco, um livro  que podia trocar por outro, e um
rebanho de ovelhas. O mais importante, entretanto, © que todo dia  realizava
o grande sonho de sua vida; viajar. Quando cansasse dos campos de Andaluzia,
podia  vender suas ovelhas e tornar-se marinheiro. Quando  cansasse  do mar,
teria conhecido muitas cidades, muitas mulheres, muitas oportunidades de ser
feliz.
     "N£o sei  como buscam Deus no semin¡rio", pensou, enquanto olhava o sol
que nascia. Sempre que  poss­vel, buscava  um  caminho diferente para andar.
Nunca  havia estado  naquela igreja antes, apesar de  haver  passado  tantas
vezes por ali. O mundo  era grande e inesgot¡vel, e se  ele deixasse que  as
ovelhas o  guiassem apenas um pouquinho, ia terminar descobrindo mais coisas
interessantes. "O problema © que elas n£o se d£o conta  de que est£o fazendo
caminhos novos cada dia. N£o percebem que os pastos mudaram, que as esta§åes
s£o diferentes ­ porque est£o apenas ocupadas com ¡gua e comida."
     "Talvez seja assim com todos nãs" ­ pensou o pastor. "Mesmo comigo, que
n£o  penso em outras  mulheres desde que conheci a  filha  do  comerciante".
Olhou  o c©u,  e pelos seus c¡lculos estaria antes do almo§o em  Tarifa.  L¡
poderia trocar  seu  livro por  um  volume mais grosso, encher a  garrafa de
vinho, e fazer a barba e o cabelo; tinha que estar pronto  para  encontrar a
menina, e n£o  queria pensar  na possibilidade de  outro pastor ter  chegado
antes dele, com mais ovelhas, para pedir sua m£o.
     "‰  justamente  a possibilidade de realizar um  sonho que torna a  vida
interessante", refletiu enquanto olhava novamente o c©u e apressava o passo.
Tinha  acabado  de  se  lembrar  que  em  Tarifa  morava  uma velha capaz de
interpretar sonhos. E ele tinha tido um sonho repetido aquela noite.




     A  velha conduziu o rapaz at© um quarto no  fundo da casa,  separado da
sala  por uma cortina feita  de tiras de pl¡stico colorido. L¡  dentro tinha
uma mesa, uma imagem do Sagrado Cora§£o de Jesus, e duas cadeiras.
     A velha  sentou-se  e pediu  que ele fizesse o mesmo. Depois segurou as
duas m£os do rapaz e rezou baixo.
     Parecia uma reza cigana. O  rapaz  j¡  havia encontrado muitos  ciganos
pelo caminho; eles viajavam e entretanto n£o cuidavam de ovelhas. As pessoas
diziam que  a vida de um cigano era sempre enganar aos outros. Diziam tamb©m
que eles tinham pacto com demänios, e que raptavam crian§as para servirem de
escravas em seus  misteriosos  acampamentos.  Quando  era  pequeno,  o rapaz
sempre tinha morrido  de medo  de ser raptado  pelos ciganos,  e  este temor
antigo voltou enquanto a velha segurava suas m£os.
     "Mas  existe  a  imagem  do  Sagrado  Cora§£o  de Jesus",  pensou  ele,
procurando ficar mais calmo. N£o queria que sua m£o come§asse  a tremer  e a
velha percebesse seu medo . Rezou um pai-nosso em silªncio.
     ­ Que interessante ­ disse a velha, sem tirar os olhos da m£o do rapaz.
E voltou a ficar quieta.
     O rapaz estava ficando nervoso. Suas m£os come§aram involuntariamente a
tremer, e a velha percebeu. Ele puxou as m£os rapidamente.
     ­ N£o vim aqui para ler as m£os ­ disse, j¡ arrependido de  ter entrado
naquela casa. Pensou por  um momento que era melhor pagar a consulta e ir-se
embora  sem saber  de  nada. Estava  dando  import¢ncia demais  a  um  sonho
repetido.
     ­  Vocª veio saber de  sonhos ­ respondeu a velha. ­ E os sonhos  s£o a
linguagem  de  Deus.  Quando  ele  fala  a  linguagem  do  mundo,  eu  posso
interpretar.  Mas  se  ele  falar a linguagem  de  sua alma,  sã  vocª  pode
entender. E vou cobrar a consulta de qualquer maneira.
     Mais  um  truque, pensou  o rapaz. Entretanto,  resolveu  arriscar.  Um
pastor  corre  sempre o risco dos  lobos  ou  da seca,  e  isto © que faz  a
profiss£o de pastor mais excitante.
     ­ Tive  o mesmo sonho  duas vezes seguidas ­ disse. ­ Sonhei que estava
num  pasto  com  minhas  ovelhas  quando aparecia uma crian§a, e come§ava  a
brincar  com os animais. N£o gosto que mexam  nas minhas ovelhas, elas ficam
com medo de estranhos. Mas as crian§as sempre conseguem mexer com os animais
sem que  eles se assustem. N£o  sei porquª. N£o sei como os  animais sabem a
idade dos seres humanos.
     ­ Volte  para  seu sonho  ­ disse  a velha. ­ Tenho uma panela no fogo.
Al©m disso vocª tem pouco dinheiro e n£o pode tomar todo o meu tempo.
     ­ A crian§a  continuava a  brincar com  as ovelhas  por  algum tempo  ­
continuou o rapaz, um  pouco  constrangido. ­  E de repente, me pegava pelas
m£os e me levava at© as Pir¢mides do Egito.
     O  rapaz  esperou um  pouco  para ver se  a velha sabia o  que eram  as
Pir¢mides do Egito. Mas a velha continuou quieta.
     ­ Ent£o, nas Pir¢mides do  Egito, ­ ele falou as trªs êltimas  palavras
lentamente,  para que a velha pudesse entender bem ­ a crian§a me dizia: "se
vocª vier at© aqui, vai encontrar um tesouro escondido". E quando ela foi me
mostrar o local exato, eu acordei. Nas duas vezes.


     A velha continuou em silªncio por algum tempo. Depois tornou a pegar as
m£os do rapaz e estud¡-las atentamente.
     ­ N£o vou lhe cobrar nada agora ­ disse a velha. Mas quero um d©cimo do
tesouro, se vocª encontr¡-lo.
     O rapaz riu. De felicidade. Ent£o iria economizar o pouco  dinheiro que
tinha, por causa de  um sonho que  falava  em  tesouros escondidos! A  velha
devia ser mesmo uma cigana ­ os ciganos s£o burros.
     ­ Ent£o interprete o sonho ­ pediu o rapaz.
     ­ Antes jure. Jure que vocª vai me dar a d©cima parte do seu tesouro em
troca do que eu lhe disser.
     O rapaz jurou. A velha pediu para que ele repetisse o juramento olhando
para a imagem do Sagrado Cora§£o de Jesus.
     ­ ‰ um sonho da Linguagem do Mundo ­ disse ela. ­  Posso interpret¡-lo,
e © uma interpreta§£o muito dif­cil. Por isso acho que mere§o minha parte no
seu achado.
     "E a interpreta§£o  © esta:  vocª deve ir  at© as Pir¢mides  do  Egito.
Nunca  ouvi falar  delas, mas se  foi uma crian§a  que lhe mostrou, © porque
existem. L¡ vocª encontrar¡ um tesouro que lhe far¡ rico".
     O  rapaz ficou surpreso, e depois irritado. N£o precisava ter procurado
a velha para isto.
     Finalmente lembrou-se de que n£o estava pagando nada.
     ­ Para isto eu n£o precisava perder meu tempo ­ disse.
     ­ Por isso lhe falei que seu sonho era dif­cil. As coisas  simples  s£o
as mais extraordin¡rias, e sã os s¡bios conseguem vª-las. J¡ que n£o sou uma
s¡bia, tenho que conhecer outras artes, como a leitura de m£os.
     ­ E como eu vou chegar at© o Egito?
     ­  Eu  sã interpreto sonhos. N£o  sei transform¡-los em  realidade. Por
isso tenho que viver do que minhas filhas me d£o.
     ­ E se eu n£o chegar at© o Egito?
     ­ Eu fico sem pagamento. N£o ser¡ a primeira vez.
     E a velha n£o disse mais nada. Pediu para que o rapaz sa­sse,  pois  j¡
tinha perdido muito tempo com ele.




     O rapaz saiu decepcionado e decidido a nunca mais  acreditar em sonhos.
Lembrou-se de que tinha v¡rias providªncias a tomar: foi ao armaz©m arranjar
alguma comida,  trocou  seu livro por um livro mais grosso, e sentou-se  num
banco da pra§a para saborear  o  vinho novo que  havia comprado. Era um  dia
quente,  e  o vinho, por um destes mist©rios insond¡veis, conseguia resfriar
um pouco seu corpo. As ovelhas estavam na entrada  da cidade, no est¡bulo de
um novo amigo  seu. Conhecia muita  gente por aquelas  bandas ­  e  por isso
gostava de viajar. A gente sempre acaba  fazendo amigos novos, e n£o precisa
ficar com eles dia apãs dia. Quando a gente vª  sempre as mesmas pessoas ­ e
isto acontecia no semin¡rio ­ terminamos fazendo com que elas passem a fazer
parte de  nossas  vidas. E como  elas fazem parte de  nossas  vidas,  passam
tamb©m a querer modificar nossas vidas. Se a gente n£o for como elas esperam
ficar,  chateadas. Porque todas as pessoas tem a no§£o exata de como devemos
viver nossa vida.
     E  nunca  tªm no§£o de como devem viver  as suas prãprias vidas. Como a
mulher dos sonhos, que n£o sabia transform¡-los em realidade.
     Resolveu  esperar  o  sol descer  um pouco,  antes  de seguir com  suas
ovelhas em  dire§£o ao campo. Daqui a trªs  dias  iria estar com a filha  do
comerciante.
     Come§ou a  ler o livro que tinha conseguido com o padre de  Tarifa. Era
um  livro grosso,  que falava de um  enterro  logo na primeira  p¡gina. Al©m
disso, o nome dos personagens eram complicad­ssimos. Se algum dia escrevesse
um livro, pensou ele, ia colocar um  personagem aparecendo de cada vez, para
que os leitores n£o tivessem que ficar decorando nomes.
     Quando conseguiu concentrar-se um pouco na leitura, ­ e era boa, porque
falava  de um  enterro na neve,  o que lhe transmitia  uma sensa§£o de  frio
debaixo daquele imenso sol ­  um velho sentou-se  ao seu  lado e  come§ou  a
puxar conversa.
     ­  O  que eles est£o  fazendo? ­ perguntou  o velho, apontando  para as
pessoas da pra§a.
     ­ Trabalhando ­ respondeu o  rapaz, secamente, e  voltou a  fingir  que
estava concentrado  na leitura.  Na verdade, estava  pensando em tosquiar as
ovelhas na frente  da filha do  comerciante, para ela  atestar como  ele era
capaz de fazer coisas interessantes. J¡ havia imaginado esta cena uma por§£o
de vezes;  em todas elas, a menina ficava deslumbrada  quando ele come§ava a
lhe explicar que as ovelhas devem ser tosquiadas de tr¡s para frente. Tamb©m
tentava  se lembrar  de  algumas  boas  histãrias para contar a ela enquanto
tosquiava  as ovelhas.  A  maior parte ele  tinha lido nos  livros, mas iria
contar  como se tivesse vivido pessoalmente. Ela nunca ia saber a diferen§a,
porque n£o sabia ler livros.
     O  velho, entretanto,  insistiu. Falou que estava cansado, com sede,  e
pediu um gole  de vinho  ao rapaz. O  rapaz ofereceu sua  garrafa;  talvez o
velho ficasse quieto.
     Mas o velho queria conversar de qualquer maneira. Perguntou que livro o
rapaz  estava  lendo.  Ele pensou em ser rude e mudar de banco,  mas seu pai
havia lhe ensinado o respeito pelos mais velhos. Ent£o estendeu o livro para
o  velho, por duas razåes: a primeira © que n£o sabia pronunciar o t­tulo. E
a segunda era que, se o velho n£o soubesse ler, ia ele mesmo  mudar de banco
para n£o sentir-se humilhado.
     ­ Humm... ­ disse o velho, olhando o volume por todos os lados, como se
fosse um objeto estranho. ­ ‰ um livro importante, mas © muito chato.
     O rapaz ficou surpreso.  O velho  tamb©m lia, e j¡ lera aquele livro. E
se o livro era chato como ele dizia, ainda dava tempo de trocar por outro.


     ­ ‰ um livro que fala  o que quase todos os livros falam ­  continuou o
velho. ­ Da incapacidade que as pessoas tªm de escolher seu prãprio destino.
E termina fazendo com que todo mundo acredite na maior mentira do mundo.


     ­ Qual © a maior mentira do mundo? ­ indagou surpreso o rapaz.
     ­  ‰  esta: em  determinado  momento de  nossa  existªncia,  perdemos o
controle de nossas vidas, e ela passa a ser governada pelo destino. Esta © a
maior mentira do mundo.
     ­ Comigo n£o aconteceu isto ­  disse o rapaz. ­  Queriam  que  eu fosse
padre, e eu resolvi ser pastor.
     ­ Assim © melhor ­ disse o velho. ­ Porque vocª gosta de viajar.
     "Ele adivinhou  meu pensamento", refletiu o rapaz. O velho, entretanto,
folheava  o livro grosso, sem a  menor inten§£o de devolvª-lo. O rapaz notou
que ele  vestia  uma roupa estranha; parecia um ¡rabe,  o  que n£o  era raro
naquela regi£o. A frica ficava a apenas algumas  horas da Tarifa; e  era sã
cruzar  o pequeno  estreito  num  barco.  Muitas vezes  apareciam  ¡rabes na
cidade, fazendo compras e rezando ora§åes estranhas v¡rias vezes por dia.
     ­ De onde © o senhor? ­ perguntou.
     ­ De muitas partes.
     ­ Ningu©m pode ser de muitas partes ­ o rapaz falou. ­ Eu sou um pastor
e estou em muitas partes, mas sou de um ênico lugar, de uma  cidade perto de
um castelo antigo. Ali foi onde nasci.
     ­ Ent£o podemos dizer que eu nasci em Sal©m.
     ­  O rapaz n£o sabia onde era  Sal©m,  mas n£o quis  perguntar para n£o
sentir-  se humilhado  com  a  prãpria  ignor¢ncia. Ficou  mais  algum tempo
olhando a pra§a. As pessoas iam e vinham, e pareciam muito ocupadas.
     ­ Como est¡ Sal©m? ­ perguntou o rapaz, procurando alguma pista.
     ­ Como sempre esteve.
     Ainda n£o era uma pista. Mas sabia  que Sal©m n£o  estava em Andaluzia.
Sen£o, ele j¡ a teria conhecido.
     ­ E o que vocª faz em Sal©m? ­ insistiu.
     ­ O que fa§o  em Sal©m? ­  o  velho pela  primeira vez  deu uma gostosa
gargalhada. ­ Ora, eu sou o Rei de Sal©m!
     As  pessoas dizem  coisas muito estranhas, pensou o  rapaz. €s vezes  ©
melhor estar com as ovelhas, que  s£o caladas, e apenas  procuram alimento e
¡gua. Ou © melhor estar com os livros, que contam  estãrias incr­veis sempre
nas horas que a gente quer ouvir. Mas quando a gente fala  com pessoas, elas
dizem certas coisas e ficamos sem saber como continuar a conversa.
     ­ Meu nome © Melquisedec ­ disse o velho. ­ Quantas ovelhas vocª tem?
     ­  O  suficiente  ­ respondeu  o rapaz. O velho  estava querendo  saber
demais sobre sua vida.
     ­ Ent£o estamos diante de um problema. N£o posso ajud¡-lo enquanto vocª
achar que tem ovelhas suficientes.
     O  rapaz  se irritou. N£o estava pedindo  ajuda. O  velho ©  que  tinha
pedido vinho, conversa, e livro.
     ­  Me devolva o  livro ­ disse. ­ Tenho que  ir buscar minhas ovelhas e
seguir adiante.


     ­  Me dª um  d©cimo de suas ovelhas ­ disse o velho. ­  E eu lhe ensino
como chegar at© o tesouro escondido.

     O rapaz  tornou ent£o a lembrar-se do  sonho, e  de  repente tudo ficou
claro.  A velha  n£o tinha  cobrado  nada, mas  o velho ­ que era talvez seu
marido  ­  ia  conseguir arrancar  muito  mais  dinheiro  em  troca  de  uma
informa§£o que n£o existia. O velho devia ser cigano tamb©m.
     Antes que o  rapaz dissesse  qualquer coisa, por©m, o velho abaixou-se,
pegou um  graveto, e  come§ou a escrever na areia  da pra§a. Quando  ele  se
abaixou, alguma coisa brilhou dentro do seu peito, com tanta intensidade que
quase  cegou o rapaz.  Mas num movimento  r¡pido demais para  algu©m de  sua
idade, tornou a cobrir o  brilho com o  manto. Os olhos do rapaz voltaram ao
normal e ele pode enxergar o que o velho estava escrevendo.
     Na areia da  pra§a  principal da  pequena cidade, ele leu o nome do seu
pai e de sua m£e.
     Leu  a histãria  de  sua  vida  at© aquele  momento, as brincadeiras de
inf¢ncia, as noites frias do semin¡rio. Leu o nome da filha  do comerciante,
que n£o sabia. Leu coisas que jamais contara para algu©m, como o dia  em que
roubou a  arma do  seu pai para  matar veados, ou sua primeira  e  solit¡ria
experiªncia sexual.





     "Sou o Rei de Sal©m", dissera o velho.
     ­  Por  que  um  rei conversa  com  um  pastor? ­  perguntou  o  rapaz,
envergonhado e admirad­ssimo.
     ­ Existem  v¡rias razåes. Mas vamos dizer que  a mais importante  © que
vocª tem sido capaz de cumprir sua Lenda Pessoal.
     O rapaz n£o sabia o que era Lenda Pessoal.
     ­  ‰ aquilo  que vocª sempre desejou fazer. Todas as pessoas, no come§o
da juventude, sabem qual © sua Lenda Pessoal.
     "Nesta altura da  vida,  tudo  © claro, tudo © poss­vel, e elas n£o tªm
medo de sonhar  e desejar tudo aquilo que  gostariam de ver  fazer  em  suas
vidas.  Entretanto,    medida  em  que o  tempo vai passando, uma misteriosa
for§a come§a a tentar provar que © imposs­vel realizar a Lenda Pessoal.
     O que o velho estava dizendo n£o fazia muito sentido para o  rapaz. Mas
ele queria saber o que eram "for§as misteriosas"; a filha  do comerciante ia
ficar boquiaberta com isto.
     ­ S£o  as  for§as que  parecem ruins, mas na  verdade est£o ensinando a
vocª como  realizar  sua Lenda Pessoal. Est£o preparando seu esp­rito  e sua
vontade, porque existe uma grande verdade neste planeta: seja vocª  quem for
ou o que  fa§a, quando quer com vontade alguma  coisa, ©  porque este desejo
nasceu na alma do Universo. ‰ sua miss£o na Terra.
     ­ Mesmo que  seja apenas viajar? Ou casar com a filha de um comerciante
de tecidos?
     ­ Ou  buscar um tesouro. A Alma  do Mundo © alimentada pela  felicidade
das pessoas. Ou pela infelicidade, inveja, ciême. Cumprir sua Lenda  Pessoal
© a ênica obriga§£o dos homens. Tudo © uma coisa sã.
     "E quando vocª  quer alguma coisa, todo  o Universo  conspira  para que
vocª realize seu desejo".

     Durante algum tempo ficaram em silªncio, olhando a pra§a  e as pessoas.
Foi o velho quem falou primeiro.
     ­ Por que vocª cuida de ovelhas?
     ­ Porque gosto de viajar.
     Ele apontou um pipoqueiro, com  sua carrocinha vermelha, que estava num
canto da pra§a.
     ­ Aquele  pipoqueiro tamb©m  sempre desejou viajar, quando crian§a. Mas
preferiu  comprar uma  carrocinha de pipoca,  juntar dinheiro durante  anos.
Quando estiver velho, vai  passar um  mªs na frica.  Jamais  entendeu que a
gente sempre tem condi§åes para fazer o que sonha.
     ­ Devia ter escolhido ser um pastor ­ pensou em voz alta o rapaz.
     ­ Ele  pensou  nisto ­ disse  o velho. ­ Mas  os  pipoqueiros s£o  mais
importantes  que  os  pastores.  Os  pipoqueiros tªm uma casa,  enquanto  os
pastores dormem  ao  relento.  As  pessoas  preferem  casar  suas filhas com
pipoqueiros do que com pastores.
     O  rapaz  sentiu  uma  pontada  no   cora§£o,  pensando   na  filha  do
comerciante. Em sua cidade devia haver um pipoqueiro.


     ­  Enfim, o que as  pessoas  pensam sobre pipoqueiros e sobre  pastores
passa a ser mais importante para elas que a Lenda Pessoal.
     O  velho folheou  o  livro,  e distraiu-se lendo  uma p¡gina.  O  rapaz
esperou  um  pouco,  e o interrompeu  da  mesma  maneira  como  ele  o havia
interrompido.
     ­ Por que vocª fala estas coisas comigo?
     ­ Porque vocª tenta viver sua Lenda Pessoal. E est¡ a ponto de desistir
dela.
     ­ E vocª aparece sempre nestas horas?
     ­ Nem  sempre  desta forma,  mas jamais deixei  de  aparecer.  €s vezes
apare§o sob a  forma de uma boa  sa­da,  uma boa  id©ia. Outras  vezes,  num
momento crucial, fa§o as coisas ficarem mais f¡ceis. E assim por diante; mas
a maior parte das pessoas n£o nota isto.
     O velho contou que na semana passada ele tinha  sido for§ado a aparecer
para um garimpeiro sob a forma de uma pedra. O garimpeiro tinha largado tudo
para ir  em  busca de esmeraldas. Durante cinco anos trabalhou  num  rio,  e
tinha  quebrado  999.999  pedras em  busca  de uma esmeralda.  Neste ponto o
garimpeiro pensou em desistir, e sã faltava uma pedra  ­ apenas UMA PEDRA  ­
para ele  descobrir sua esmeralda. Como ele tinha  sido  um homem  que havia
apostado em sua Lenda Pessoal, o  velho resolveu interferir.  Transformou-se
numa  pedra  que  rolou  sobre o p© do  garimpeiro.  Este,  com  a  raiva  e
frustra§£o  dos  cinco anos perdidos, atirou  a pedra longe. Mas  atirou com
tanta for§a que ela bateu em outra pedra e esta se quebrou, mostrando a mais
bela esmeralda do mundo.
     ­ As pessoas aprendem muito cedo sua raz£o de viver ­ disse o velho com
uma certa amargura nos olhos. ­  Talvez seja por isso  que elas desistem t£o
cedo tamb©m. Mas assim © o mundo.
     Ent£o  o rapaz se lembrou que a conversa  havia come§ado com o  tesouro
escondido.
     ­  Os  tesouros  s£o  levantados da  terra pela  torrente  de  ¡gua,  e
enterrados  por estas mesmas  enchentes ­ disse  o  velho. ­ Se  vocª quiser
saber sobre seu tesouro, ter¡ que me ceder um d©cimo de suas ovelhas.
     ­ E n£o serve um d©cimo do tesouro?
     O velho ficou decepcionado.
     ­  Se vocª sair prometendo  o que ainda n£o tem, vai perder sua vontade
de consegui-lo.
     O rapaz ent£o contou que tinha prometido um d©cimo   cigana.
     ­ Os  ciganos s£o espertos ­ suspirou o velho. ­ De qualquer maneira  ©
bom vocª aprender que tudo na vida tem um pre§o. ‰ isto que os Guerreiros da
Luz tentam ensinar.
     O velho devolveu o livro ao rapaz.
     ­ Amanh£, nesta mesma  hora, vocª me traz um d©cimo de suas ovelhas. Eu
lhe ensinarei como conseguir o tesouro escondido. Boa tarde.
     E sumiu numa das esquinas da pra§a.


     O rapaz tentou  ler o  livro,  mas  n£o  conseguiu concentrar-se  mais.
Estava agitado e tenso, porque sabia que o velho falava a verdade. Foi at© o
pipoqueiro, comprou  um saco  de pipocas, enquanto  pensava se devia  ou n£o
contar a ele o que o velho dissera. "€s vezes © melhor deixar as coisas como
est£o", pensou  o  rapaz, e ficou  quieto. Se dissesse algo, o pipoqueiro ia
ficar trªs dias pensando em largar tudo, mas estava muito acostumado com sua
carrocinha.


     Ele podia  evitar este sofrimento  ao  pipoqueiro.  Come§ou a andar sem
rumo pela cidade, e  foi at© o porto. Havia um pequeno pr©dio,  e no  pr©dio
havia uma janelinha onde  as pessoas compravam passagens. O Egito  estava na
frica.
     ­ Quer alguma coisa? ­ perguntou o sujeito no guichª.
     ­ Talvez amanh£ ­  disse o rapaz se afastando. Se  vendesse  apenas uma
ovelha podia  chegar  at© o  outro lado  do  estreito.  Era uma id©ia  que o
apavorava.
     ­  Mais  um  sonhador  ­  disse o sujeito do guichª  ao seu assistente,
enquanto o rapaz se afastava. ­ N£o tem dinheiro para viajar.

     Quando estava no guichª,  o  rapaz havia se lembrado de suas ovelhas, e
sentiu medo de voltar para junto  delas. Dois anos haviam passado aprendendo
tudo sobre a arte do pastoreio; sabia tosquiar, cuidar das ovelhas gr¡vidas,
proteger os animais  contra  os lobos.  Conhecia todos os campos e pastos de
Andaluzia.  Conhecia  o  pre§o  justo de comprar e  vender cada  um dos seus
animais.
     Resolveu voltar at© o est¡bulo de seu amigo pelo caminho  mais longo. A
cidade tamb©m tinha um  castelo,  e ele resolveu subir  a rampa  de  pedra e
sentar-se numa de suas muradas.  L¡ de cima ele  podia ver  a frica. Algu©m
certa vez havia lhe  explicado que por ali chegaram os mouros,  que ocuparam
durante tantos anos quase toda a Espanha. O rapaz detestava os mouros.  Eles
© que tinham trazido os ciganos.
     De l¡  podia ver tamb©m quase  toda  a  cidade, inclusive a pra§a  onde
havia conversado com o velho.
     "Maldita  hora em  que encontrei este velho",  pensou  ele.  Tinha  ido
apenas buscar uma mulher que interpretasse sonhos. Nem a mulher nem o  velho
davam qualquer import¢ncia  para  o  fato de  que ele  era  um pastor.  Eram
pessoas solit¡rias, que j¡ n£o acreditavam mais na vida, e n£o entendiam que
os pastores terminam apegados  s suas ovelhas. Ele conhecia em detalhes cada
uma  delas: sabia qual mancava, qual iria  dar  cria daqui  a dois meses,  e
quais eram as  mais pregui§osas.  Sabia  tamb©m  como  tosqui¡-las,  e  como
mat¡-las. Se resolvesse partir, elas sofreriam.
     Um vento come§ou a soprar.  Ele  conhecia  aquele vento:  as pessoas  o
chamavam  de  Levante,  porque com  este vento chegaram  tamb©m as hordas de
infi©is. At©  conhecer Tarifa, nunca havia pensado  que a frica estava  t£o
perto. Isto era um grande perigo: os mouros poderiam invadir novamente.
     O  Levante  come§ou a  soprar mais forte.  "Estou  entre as ovelhas e o
tesouro", pensava o rapaz. Tinha que decidir-se entre alguma coisa que havia
se acostumado  e  alguma coisa  que gostaria de ter. Havia tamb©m a filha do
comerciante, mas  ela n£o era  t£o  importante como as  ovelhas, porque  n£o
dependia dele. Talvez  sequer se lembrasse dele. Teve certeza de que, se n£o
aparecesse  daqui  a dois dias, a menina n£o iria notar: para  ela todos  os
dias eram iguais, e quando todos  os dias ficam iguais,  © porque as pessoas
deixaram de perceber as coisas boas que aparecem em suas vidas sempre  que o
sol cruza o c©u.
     "Eu larguei meu  pai, minha  m£e, e o castelo  da minha cidade. Eles se
acostumaram  e  eu me acostumei.  As ovelhas tamb©m v£o  se acostumar  com a
minha falta", pensou o rapaz.
     De l¡ de cima ele olhou  a pra§a. O pipoqueiro continuava vendendo suas
pipocas. Um  jovem casal sentou-se no banco onde ele havia  conversado com o
velho, e deram um longo beijo.


     "O pipoqueiro", disse para si  mesmo, sem completar  a frase. Porque  o
Levante havia come§ado a soprar com mais for§a, e ele ficou sentindo o vento
no  rosto. Ele  trazia os mouros,  ©  verdade, mas tamb©m trazia o cheiro do
deserto  e das mulheres cobertas com v©u.  Trazia  o  suor e  os  sonhos dos
homens que um dia  haviam partido em  busca  do  desconhecido, de  ouro,  de
aventuras ­ e de pir¢mides. O rapaz come§ou a invejar a liberdade do  vento,
e  percebeu que poderia ser como ele. Nada o impedia, exceto ele prãprio. As
ovelhas,  a  filha  do comerciante,  os campos de  Andaluzia, eram apenas os
passos de sua Lenda Pessoal.







     No dia seguinte  o rapaz  encontrou-se com  o velho ao meio-dia. Trazia
seis ovelhas consigo.
     ­  Estou surpreso ­  disse  ele.  ­ Meu amigo  comprou imediatamente as
ovelhas. Disse que a vida inteira  havia sonhado em ser pastor, e aquilo era
um bom sinal.
     ­ ‰ sempre assim ­ disse o velho. ­ Chamamos de Princ­pio Favor¡vel. Se
vocª for jogar baralho pela primeira vez, com quase toda certeza ir¡ ganhar.
Sorte de principiante.
     ­ E por que?
     ­ Porque a vida quer que vocª viva sua Lenda Pessoal.
     Depois come§ou a examinar as seis ovelhas, e descobriu que uma mancava.
O  rapaz  explicou que isto n£o  tinha import¢ncia, porque  ela era  a  mais
inteligente, e produzia bastante l£.
     ­ Onde est¡ o tesouro? ­ perguntou.
     ­ O tesouro est¡ no Egito, perto das Pir¢mides.
     O rapaz levou um susto. A velha tinha dito a mesma coisa, mas n£o tinha
cobrado nada.
     ­ Para chegar at© ele, vocª ter¡ que seguir os sinais. Deus escreveu no
mundo o caminho que cada homem deve seguir. ‰ sã ler o que ele escreveu para
vocª.
     Antes  que  o  rapaz dissesse  alguma  coisa,  uma  mariposa  come§ou a
esvoa§ar entre ele e o velho. Lembrou-se de seu avä; quando ele era crian§a,
seu avä  lhe dissera  que  as  mariposas eram  sinal de boa  sorte. Como  os
grilos, as esperan§as, as lagartixas, e os trevos de quatro folhas.
     ­  Isto ­ disse o velho,  que  era  capaz  de ler seus  pensamentos.  ­
Exatamente como seu avä lhe ensinou. Estes s£o os sinais.
     Depois o velho  abriu o  manto que  lhe  cobria o peito. O rapaz  ficou
impressionado com o que viu, e  lembrou-se do brilho que havia notado no dia
anterior. O  velho  tinha  um  peitoral  de ouro  maci§o, coberto de  pedras
preciosas.
     Era realmente um rei.  Devia  estar disfar§ado  assim  para  fugir  dos
salteadores.
     ­ Tome ­ disse o velho, tirando  uma pedra branca e uma pedra negra que
estavam presas no centro do peitoral  de ouro.  ­ Chamam-se Urim e  Tumim. A
preta quer dizer "sim", a branca quer dizer "n£o". Quando vocª n£o conseguir
enxergar os sinais, elas servem. Fa§a sempre uma pergunta objetiva.
     "Mas de uma maneira geral, procure tomar suas decisåes.  O tesouro est¡
nas Pir¢mides e isto  vocª j¡  sabia; mas teve que pagar seis ovelhas porque
eu lhe ajudei a tomar uma decis£o".
     O rapaz  guardou as pedras no  alforje . Daqui por diante, tomaria suas
prãprias decisåes.
     ­ N£o  se  esque§a  de que  tudo  ©  uma coisa  sã. N£o  se esque§a  da
linguagem dos  sinais.  E, sobretudo, n£o  se esque§a de ir at© o fim de sua
Lenda Pessoal.
     "Antes, por©m, gostaria de contar-lhe uma pequena histãria.
     "Certo mercador enviou seu filho para aprender o Segredo  da Felicidade
com  o  mais s¡bio de  todos os homens.  O rapaz andou durante quarenta dias
pelo deserto,


     at© chegar a um belo castelo, no alto de uma montanha. L¡ vivia o S¡bio
que o rapaz buscava.
     "Ao inv©s de encontrar um homem santo, por©m, o nosso herãi entrou numa
sala  e viu  uma atividade  imensa;  mercadores  entravam e  sa­am,  pessoas
conversavam pelos cantos, uma pequena  orquestra tocava  melodias  suaves, e
havia uma  farta mesa com os mais deliciosos pratos daquela regi£o do mundo.
O S¡bio conversava  com todos,  e o rapaz teve que esperar  duas  horas  at©
chegar sua vez de ser atendido.
     "O S¡bio ouviu atentamente o motivo  da visita do rapaz,  mas disse-lhe
que naquele momento n£o tinha tempo de explicar-lhe o Segredo da Felicidade.
Sugeriu que  o rapaz desse um passeio por  seu pal¡cio,  e  voltasse daqui a
duas horas.
     "­ Entretanto, quero lhe pedir um favor ­ completou o S¡bio, entregando
ao rapaz uma  colher de ch¡, onde pingou duas gotas de ãleo. ­ Enquanto vocª
estiver  caminhando,  carregue  esta  colher  sem  deixar  que o  ãleo  seja
derramado.
     "O rapaz come§ou a subir  e  descer as escadarias  do pal¡cio, mantendo
sempre os olhos fixos na colher. Ao final de duas horas, retornou   presen§a
do S¡bio.
     "­ Ent£o ­  perguntou  o  S¡bio ­ vocª  viu as tape§arias da P©rsia que
est£o na minha sala de jantar? Viu  o jardim  que o  Mestre dos  Jardineiros
demorou dez  anos  para  criar?  Reparou  nos  belos  pergaminhos  de  minha
biblioteca?
     "O rapaz, envergonhado, confessou  que n£o havia visto nada. Sua  ênica
preocupa§£o  era  n£o  derramar  as  gotas  de ãleo  que o S¡bio  lhe  havia
confiado.
     "­  Pois  ent£o volte  e conhe§a as maravilhas  do  meu mundo ­ disse o
S¡bio. ­ Vocª n£o pode confiar num homem se n£o conhece sua casa.
     "J¡ mais  tranqìilo,  o  rapaz  pegou a colher e  voltou a passear pelo
pal¡cio, desta vez reparando em todas as obras de arte que pendiam do teto e
das paredes. Viu os jardins, as montanhas ao redor, a delicadeza das flores,
o  requinte com que cada obra de arte estava colocada em seu lugar. De volta
  presen§a do S¡bio, relatou pormenorizadamente tudo que havia visto.
     "­ Mas onde est£o as duas gotas de ãleo que  lhe confiei? ­ perguntou o
S¡bio.
     "Olhando para a colher, o rapaz percebeu que as havia derramado.
     "­  Pois este © o ênico conselho que  eu tenho  para lhe dar ­ disse  o
mais S¡bio dos  S¡bios. ­  O  segredo da  felicidade  est¡ em olhar todas as
maravilhas do mundo, e nunca se esquecer das duas gotas de ãleo na colher".
     O rapaz ficou em silªncio.  Havia compreendido a histãria do velho rei.
Um pastor gosta de viajar, mas jamais esquece suas ovelhas.
     O  velho olhou  para o rapaz, e com  as duas m£os espalmadas fez alguns
gestos  estranhos  em sua  cabe§a. Depois,  pegou  os animais e  seguiu  seu
caminho.





     No alto da  pequena  cidade de Tarifa existe um  velho forte constru­do
pelos mouros, e quem senta em suas muralhas consegue enxergar uma pra§a,  um
pipoqueiro, e um peda§o da frica. Melquisedec, o Rei de Sal©m, sentou-se na
murada  do forte aquela tarde, e sentiu o vento Levante no rosto. As ovelhas
esperneavam ao seu lado, com medo


     do novo dono,  e excitadas com tantas mudan§as. Tudo que  elas  queriam
era apenas comida e ¡gua.
     Melquisedec  olhou  o pequeno navio que estava zarpando do porto. Nunca
mais tornaria  a ver  o rapaz, da  mesma  maneira como jamais  tornou  a ver
Abra£o, depois de lhe ter cobrado o d­zimo. Entretanto, esta era a sua obra.
     Os  deuses n£o  devem  ter  desejos,  porque  os deuses  n£o tªm  Lenda
Pessoal.  Entretanto,  o Rei de Sal©m torceu intimamente  para  que  o rapaz
tivesse ªxito.
     "Pena que ele  vai esquecer logo meu nome", pensou. "Devia ter repetido
mais de uma vez. Assim,  quando  falasse  a  meu  respeito,  diria  que  sou
Melquisedec, o Rei de Sal©m."
     Depois  olhou para o  c©u  meio arrependido:  "sei  que  ©  vaidade das
vaidades, como Tu disseste, Senhor. Mas um velho rei  s vezes tem que sentir
orgulho de si mesmo".




     "Como © estranha a frica", pensou o rapaz.
     Estava sentado numa esp©cie de  bar igual a outros bares que ele  havia
encontrado  nas ruelas  estreitas  da  cidade.  Algumas  pessoas fumavam  um
cachimbo  gigante, que era passado de  boca em boca. Em poucas  horas  havia
visto homens  de  m£os dadas, mulheres com o rosto coberto, e sacerdotes que
subiam em longas torres e come§avam a cantar ­ enquanto todos   sua volta se
ajoelhavam e batiam com a cabe§a no solo.
     "Coisa de infi©is", disse para si mesmo. Quando  crian§a, via sempre na
igreja  da sua  aldeia uma imagem de  S£o Santiago Matamouros em  seu cavalo
branco, com  a espada desembainhada, e figuras como aquelas  debaixo de seus
p©s. O rapaz sentia-se mal e terrivelmente  sã.  Os infi©is  tinham um olhar
sinistro.
     Al©m  disso, na pressa de viajar, ele havia se esquecido de um detalhe,
um ênico detalhe, que podia  afast¡-lo  do  seu  tesouro  por  muito  tempo:
naquele pa­s todos falavam ¡rabe.
     O dono do  bar se aproximou e o rapaz apontou para uma bebida que tinha
sido servida em outra mesa. Era um ch¡ amargo. O rapaz preferia beber vinho.
     Mas n£o devia  preocupar-se com isto agora. Tinha que  pensar apenas no
seu  tesouro,  e  a maneira de  consegui-lo. A venda das ovelhas  lhe  havia
deixado com  bastante dinheiro  no bolso, e o rapaz sabia que o dinheiro era
m¡gico: com ele ningu©m jamais est¡ sozinho. Daqui a pouco, talvez em alguns
dias, estaria junto das Pir¢mides. Um  velho, com todo aquele ouro no peito,
n£o precisava mentir para ganhar seis ovelhas.
     O velho  lhe  havia falado  de  sinais. Enquanto atravessava o mar, ele
havia pensado nos sinais. Sim,  sabia do que  ele estava  falando: durante o
tempo em que estivera nos campos de Andaluzia,  havia se acostumado a ler na
terra  e nos c©us as condi§åes do caminho  que  devia seguir. Aprendera  que
certo p¡ssaro  indicava uma cobra  por perto,  e que determinado arbusto era
sinal de ¡gua daqui  a  alguns quilämetros.  As ovelhas  lhe haviam ensinado
isto.
     "Se  Deus  conduz  t£o  bem  as  ovelhas,  tamb©m conduzir¡  o  homem",
refletiu, e ficou mais tranqìilo. O ch¡ parecia menos amargo.
     ­ Quem © vocª? ­ ouviu uma voz em espanhol.
     O rapaz ficou imensamente aliviado.  Estava pensando em sinais e algu©m
tinha aparecido.
     ­ Como  vocª fala espanhol? ­ perguntou.  O rec©m-chegado era  um rapaz
vestido   maneira dos ocidentais, mas a cor de sua pele indicava  que  devia
ser daquela cidade. Tinha mais ou menos sua altura e sua idade.
     ­ Quase todo mundo aqui fala espanhol. Estamos h¡ apenas duas  horas da
Espanha.
     ­ Sente-se e  pe§a alguma coisa por minha conta  ­ disse o rapaz.  ­  E
pe§a um vinho para mim. Detesto este ch¡.
     ­  N£o h¡  vinho no pa­s  ­  disse  o rec©m-chegado. ­ A  religi£o  n£o
permite.
     O  rapaz disse ent£o  que precisava chegar  at©  as Pir¢mides. Quase ia
falando do tesouro, mas resolveu  ficar calado. Sen£o era bem capaz do ¡rabe
querer uma parte para lev¡-lo at©  l¡. Lembrou-se do que o velho lhe dissera
a respeito de ofertas.
     ­ Gostaria que me levasse at© l¡, se puder. Posso lhe pagar como guia.
     ­ Vocª tem id©ia de como chegar at© l¡?


     O rapaz reparou que o dono do bar estava por perto, ouvindo atentamente
a  conversa. Sentia-se incomodado  com a presen§a dele. Mas tinha encontrado
um guia, e n£o ia perder esta oportunidade.
     ­  Vocª  tem  que  atravessar  todo  o  deserto  de  Saara  ­  disse  o
rec©m-chegado. ­ E para isto precisamos de dinheiro. Quero saber se vocª tem
dinheiro suficiente.
     O rapaz achou estranha a pergunta. Mas confiava no velho, e o velho lhe
falara que quando se quer uma coisa, o universo sempre conspira a favor.
     Tirou  seu dinheiro do bolso e mostrou ao  rec©m-chegado. O dono do bar
aproximou-se e olhou  tamb©m. Os  dois trocaram algumas palavras em ¡rabe. O
dono do bar parecia irritado.
     ­ Vamos embora ­ disse o rec©m-chegado.
     ­ Ele n£o quer que continuemos aqui.
     O rapaz ficou aliviado.  Levantou-se  para pagar a  conta, mas o dono o
agarrou e  come§ou  a falar  sem parar. O rapaz  era  forte, mas estava numa
terra estrangeira. Foi  seu  novo  amigo que empurrou o dono para o  lado  e
puxou o rapaz para fora.
     ­  Ele queria seu dinheiro  ­ disse. ­ T¢nger n£o  © igual ao resto  da
frica. Estamos num porto e os portos tªm sempre muito ladråes.
     Ele podia confiar em seu  novo  amigo. Tinha  lhe ajudado numa situa§£o
cr­tica. Tirou o dinheiro do bolso e contou.
     ­  Podemos chegar  amanh£ nas  Pir¢mides  ­ disse o  outro,  pegando  o
dinheiro. ­ Mas preciso comprar dois camelos.
     Sa­ram andando pelas ruas  estreitas  de  T¢nger.  Em todo canto haviam
barracas de coisas  para vender. Chegaram enfim no meio de uma grande pra§a,
onde  funcionava o mercado. Haviam milhares de pessoas discutindo, vendendo,
comprando, hortali§as misturadas com  adagas, tapetes junto com todo tipo de
cachimbos. Mas o  rapaz  n£o  tirava o olho de  seu  novo amigo.  Afinal  de
contas,  ele  estava com todo o seu dinheiro nas  m£os. Pensou em pedi-lo de
volta, mas achou que seria indelicado. Ele n£o conhecia o costume das terras
estranhas que estava pisando.
     "Basta vigi¡-lo", disse para si mesmo. Era mais forte que o outro.
     De repente, no  meio de toda aquela confus£o, estava a mais bela espada
que  seus olhos  j¡ haviam  visto. A bainha era  prateada, e o  cabo  negro,
cravejado  de pedras. O  rapaz prometeu a  si mesmo que, quando voltasse  do
Egito, ia comprar aquela espada.
     ­ Pergunte ao dono  da barraca quanto  custa  ­ disse ele ao amigo. Mas
percebeu que tinha ficado dois segundos distra­do, olhando a espada.
     Seu  cora§£o  ficou  pequeno,  como  se  o  peito  tivesse  subitamente
encolhido. Teve medo de olhar para o lado, porque sabia  o que ia encontrar.
Os  olhos continuaram fixos na bela espada por mais alguns momentos, at© que
o rapaz tomou coragem e se virou.
     Em volta dele o mercado, as pessoas indo e vindo, gritando e comprando,
os tapetes misturados com avel£s, as  alfaces junto  s bandejas de cobre, os
homens de m£os  dadas pelas ruas, as  mulheres  de  v©u, o cheiro  de comida
estranha,  e  em  nenhum lugar, mas em  nenhum lugar mesmo, o rosto  de  seu
companheiro.

     O rapaz ainda  quis  pensar que  haviam se perdido por  acaso. Resolveu
ficar ali mesmo, esperando que  o  outro  voltasse.  Pouco  tempo depois  um
sujeito subiu numa  daquelas  torres e  come§ou a cantar;  todas as  pessoas
ajoelharam-se no ch£o,  bateram com  a  cabe§a no  solo,  e cantaram tamb©m.
Depois, como um bando de formigas  trabalhadoras,  desfizeram  as barracas e
foram embora.


     O  sol come§ou a ir embora  tamb©m.  O rapaz olhou o  sol durante muito
tempo, at© que  ele se escondeu atr¡s das casas brancas que davam a volta na
pra§a. Lembrou-se  que quando  aquele sol nascera  de manh£, ele  estava  em
outro continente,  era  um pastor,  tinha  sessenta  ovelhas,  e um encontro
marcado  com uma mo§a. De manh£ ele sabia tudo  que iria acontecer  enquanto
andava pelos campos.
     Entretanto, agora que o sol se escondia, ele estava num pa­s diferente,
um estranho numa terra estranha, onde nem sequer podia entender a l­ngua que
falavam.  J¡ n£o  era um pastor, e  n£o tinha mais nada  na  vida, nem mesmo
dinheiro para voltar e come§ar tudo de novo.
     "Tudo isto entre o nascente e o poente do mesmo sol" ­ pensou o  rapaz.
E sentiu pena de si mesmo, porque  s vezes as coisas mudam na vida no espa§o
de um simples grito, antes que as pessoas possam se acostumar com elas.
     Tinha  vergonha  de chorar. Jamais  havia chorado  na  frente  de  suas
prãprias  ovelhas. Entretanto, o mercado estava vazio e  ele estava longe da
p¡tria.
     O  rapaz chorou.  Chorou porque  Deus era  injusto,  e retribu­a  desta
maneira  s  pessoas que  acreditavam  em seus  prãprios sonhos.  "Quando  eu
estava  com  as ovelhas eu era feliz,  e espalhava sempre felicidade   minha
volta. As pessoas me viam chegar e me recebiam bem.
     "Mas agora estou  triste  e infeliz. O que farei? Vou ser mais amargo e
n£o  vou confiar  nas pessoas, porque uma pessoa me traiu. Vou odiar aqueles
que encontraram  tesouros escondidos, porque eu n£o encontrei o  meu.  E vou
sempre procurar  manter o  pouco que tenho, porque  sou pequeno demais  para
abra§ar o mundo".

     Abriu  seu  alforje para  ver o  que  tinha  l¡  dentro; talvez tivesse
sobrado  alguma  coisa  do  sandu­che que havia  comido  no  barco.  Mas  sã
encontrou o livro grosso, o casaco, e as duas pedras que o velho lhe dera.
     Ao olhar as pedras, sentiu uma imensa sensa§£o de al­vio. Tinha trocado
seis ovelhas por duas pedras preciosas, sa­das de um peitoral de ouro. Podia
vender as pedras e comprar a passagem de volta. "Agora serei mais  esperto",
pensou  o  rapaz, tirando as  pedras  do alforje para escondª-las dentro  do
bolso. Ali era um  porto, e esta  era a ênica verdade que  aquele  homem lhe
dissera; um porto est¡ sempre cheio de ladråes.
     Agora entendia tamb©m  o  desespero  do  dono do  bar: estava  tentando
dizer- lhe para n£o confiar naquele homem. "Sou como  todas as pessoas: vejo
o mundo da maneira que desejava que as coisas acontecessem, e n£o da maneira
que as coisas acontecem".
     Ficou olhando  as  pedras.  Tocou  com  cuidado cada  uma,  sentindo  a
temperatura e a superf­cie lisa. Elas  eram seu tesouro. O simples toque das
pedras lhe deu mais tranqìilidade. Elas lhe lembravam do velho.
     "Quando vocª quer uma coisa,  todo o  Universo conspira para que  possa
consegui-la", dissera-lhe o velho.
     Queria entender como aquilo podia ser  verdade.  Estava ali num mercado
vazio, sem um centavo no bolso, e sem ovelhas para guardar aquela noite. Mas
as pedras eram a prova de que  tinha encontrado  um rei ­ um rei que sabia a
sua histãria, sabia da arma do seu pai e da sua primeira experiªncia sexual.
     "As pedras  servem para adivinha§£o.  Chamam-se Urim e  Tumim". O rapaz
colocou  de novo as pedras dentro do  saco e resolveu experimentar. O  velho
havia falado que fizesse perguntas claras, porque as pedras sã  serviam para
quem sabe o que quer.


     O rapaz ent£o perguntou se a bªn§£o do velho continuava ainda com ele.
     Tirou uma das pedras. Era "sim".
     "Vou encontrar meu tesouro?" perguntou o rapaz.
     Enfiou a  m£o no alforje e  ia  pegando  uma  das  pedras, quando ambas
escorregaram por buraco no  tecido. O  rapaz nunca havia  percebido  que seu
alforje estava rasgado. Abaixou-se para pegar o Urim e o Tumim, e coloc¡-los
de novo dentro do saco. Ao  vª-las no ch£o, por©m, uma outra frase surgiu em
sua cabe§a.
     "Aprenda a respeitar e seguir os sinais", havia falado o velho rei.
     Um sinal.  O rapaz riu para si mesmo. Depois apanhou as duas  pedras no
ch£o e as recolocou no  alforje.  N£o pensava  costurar o buraco ­ as pedras
poderiam  escapar  por ali  sempre que desejassem. Ele havia  entendido  que
certas coisas  a  gente  n£o devia  perguntar ­  para  n£o  fugir do prãprio
destino. "Prometi tomar minhas prãprias decisåes", disse para si mesmo.
     Mas  as pedras tinham dito que o velho, continuava com  ele, e isto lhe
deu  mais  confian§a.  Olhou de novo para o  mercado  vazio, e n£o  sentiu o
desespero de antes. N£o era um mundo estranho; era um mundo novo.
     Pois, afinal de  contas,  tudo  que ele  queria  era  exatamente  isto:
conhecer mundos novos. Mesmo que ele jamais  chegasse  at© as Pir¢mides, ele
j¡ tinha  ido muito mais longe do que  qualquer pastor que conhecia. "Ah, se
eles  soubessem que  a apenas  duas horas  de  barco  existem tantas  coisas
diferentes".
     O  mundo novo aparecia  na sua frente sob a forma  de um mercado vazio,
mas ele j¡  vira aquele mercado cheio de vida,  e nunca mais ia se esquecer.
Lembrou-se da espada ­ foi um pre§o caro  contempl¡-la um pouco,  mas tamb©m
nunca  tinha visto nada igual antes. Sentiu de repente que ele podia olhar o
mundo como uma pobre v­tima de um ladr£o, ou como um aventureiro em busca de
um tesouro.
     "Sou um aventureiro  em  busca de  um tesouro", pensou,  antes  de cair
exausto no sono.


     Acordou com um sujeito lhe cutucando. Tinha dormido no meio do mercado,
e a vida daquela pra§a estava prestes a recome§ar de novo.
     Olhou em volta, procurando suas ovelhas, e percebeu que estava em outro
mundo. Ao inv©s de sentir-se triste, ficou feliz. N£o  tinha mais que seguir
em busca de ¡gua e comida; podia seguir em busca de um tesouro. N£o tinha um
centavo no bolso, mas tinha f© na vida. Havia  escolhido, na noite anterior,
ser um aventureiro igual aos personagens dos livros que costumava ler.
     Come§ou a andar  sem pressa  pela pra§a. Os mercadores colocaram em  p©
suas barracas; ajudou um doceiro a  montar a sua. Havia um sorriso diferente
no rosto  daquele  doceiro: estava alegre, desperto para a vida, pronto para
come§ar um bom  dia de trabalho. Era um sorriso que lembrava alguma coisa do
velho, aquele velho  e misterioso rei que havia conhecido. "Este doceiro n£o
est¡  fazendo doces porque quer viajar,  ou porque quer casar com a filha de
um comerciante. "Este doceiro faz doce porque gosta disto", pensou o  rapaz,
e notou que podia fazer a mesma coisa que o velho ­ saber se uma pessoa est¡
prãxima ou distante de sua  Lenda Pessoal. Sã em olhar para ela. "‰ f¡cil, e
eu nunca havia percebido isto."
     Quando acabaram de montar a barraca, o doceiro  lhe estendeu o primeiro
doce que  havia  feito. O rapaz comeu  satisfeito, agradeceu,  e seguiu  seu
caminho. Quando j¡


     havia se afastado um pouco, lembrou-se que a barraca havia sido montada
com uma pessoa falando ¡rabe e a outra, espanhol.
     E tinham se entendido perfeitamente.
     "Existe uma linguagem que est¡ al©m das palavras", pensou o  rapaz. "Eu
j¡ experimentei  isto com  as ovelhas, e agora  estou  experimentando com os
homens."
     Estava  aprendendo  v¡rias  coisas  novas.  Coisas  que  ele  j¡  havia
experimentado, e que no  entanto  eram novas, porque tinham passado  por ele
que  tivesse percebido. E  n£o tinha percebido, porque estava acostumado com
elas.  "Se  eu  aprender a  decifrar esta  linguagem  sem  palavras,  eu vou
conseguir decifrar o mundo".
     "Tudo © uma coisa sã", falava o velho.
     Resolveu  andar  sem pressa  e  sem  ansiedade  pelas pequenas  ruas de
T¢nger: sã desta maneira ia conseguir perceber os sinais. Isto exigia  muita
paciªncia, mas esta © a primeira virtude que um pastor aprende. Mais uma vez
percebeu que estava aplicando  naquele mundo  estranho as mesmas li§åes  que
suas ovelhas lhe ensinaram.
     "Tudo © uma coisa sã", havia falado o velho.




     O  Mercador de Cristais viu o dia nascer, e sentiu a mesma angêstia que
experimentava  todas as manh£s. Estava h¡ quase  trinta anos  naquele  mesmo
lugar, uma loja no alto de uma ladeira, onde raramente passava um comprador.
Agora era tarde para mudar qualquer  coisa: tudo que havia aprendido na vida
era vender e  comprar  cristais. Houve um tempo em que  muita gente conhecia
sua loja: mercadores ¡rabes, geãlogos franceses e ingleses, soldados alem£es
sempre com dinheiro no  bolso. Naquela ©poca era uma grande  aventura vender
cristais, e ele pensava como ia  ficar rico, e como ia ter belas mulheres em
sua velhice.
     Depois  o tempo foi passando, e a cidade tamb©m. Ceuta cresceu mais que
T¢nger, e o com©rcio mudou de rumo. Os vizinhos mudaram-se, e ficaram apenas
algumas lojas  na ladeira. Ningu©m ia subir  uma ladeira por  causa  de umas
poucas lojas.
     Mas o Mercador de Cristais n£o tinha escolha.  Tinha vivido trinta anos
de sua vida comprando e vendendo pe§as de cristal, e  agora era tarde demais
para mudar de rumo.
     Durante a manh£ inteira ficou olhando o pequeno movimento da rua. Fazia
aquilo h¡ anos, e j¡ sabia o hor¡rio de cada pessoa. Quando  faltavam alguns
minutos para o almo§o, um  rapaz estrangeiro parou diante  de  sua  vitrine.
Estava vestido  normalmente,  mas os  olhos  experimentados  do  Mercador de
Cristais conclu­ram que ele n£o tinha dinheiro. Mesmo  assim resolveu entrar
e esperar alguns instantes, at© que o rapaz fosse embora.






     Havia um  cartaz na porta dizendo  que ali se falavam v¡rias l­nguas. O
rapaz viu um homem aparecer atr¡s do balc£o.
     ­ Posso limpar estes vasos se vocª quiser ­ disse o rapaz. ­ Assim como
eles est£o, nenhum comprador vai querer comprar.
     O homem olhou sem dizer nada
     ­ Em troca, vocª me paga um prato de comida.
     O homem continuou em silªncio, e o rapaz sentiu que precisava tomar uma
decis£o. Dentro de seu alforje havia o casaco ­ n£o ia precisar mais dele no
deserto.  Tirou  o casaco e  come§ou a limpar os  vasos.  Durante  meia hora
limpou todos os vasos da vitrine; neste meio tempo entraram dois fregueses e
compraram cristais do homem.
     Quando acabou de limpar tudo, ele pediu ao homem um prato de comida.
     ­ Vamos comer ­ disse o Mercador de Cristais.
     Colocou uma tabuleta na porta, e  foram at© um minêsculo bar no alto na
ladeira. Assim que sentaram na ênica mesa  existente, o Mercador de Cristais
sorriu.
     ­ N£o era preciso limpar nada ­ disse. ­ A  lei do Alcor£o obriga a dar
de comer a quem tem fome.
     ­ Ent£o por que me deixou fazer isto? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Porque os cristais  estavam sujos. E  tanto vocª como eu precis¡vamos
limpar as cabe§as dos maus pensamentos.
     Quando acabaram de comer, o Mercador virou-se para o rapaz:
     ­  Queria que  vocª trabalhasse na  minha  loja  . Hoje  entraram  dois
fregueses enquanto vocª limpava os vasos, e isto © um bom sinal.
     "As pessoas falam muito em sinais", pensou o pastor. "Mas  n£o percebem
o que est£o dizendo. Da mesma maneira que eu n£o percebia que h¡ muitos anos
falava com minhas ovelhas uma linguagem sem palavras".
     ­ Quer trabalhar para mim? ­ insistiu o Mercador.
     ­ Posso trabalhar o resto do dia ­ respondeu o rapaz. ­ Limparei at© de
madrugada  todos os cristais  da  loja. Em  troca, preciso  de dinheiro para
estar amanh£ no Egito.
     O velho riu de novo.
     ­ Mesmo que vocª  limpasse meus cristais  durante um ano inteiro, mesmo
que vocª ganhasse uma boa comiss£o de vendas  em cada um deles, ainda ia ter
que  arranjar  dinheiro  emprestado para ir  ao Egito.  Existem  milhares de
quilämetros de deserto entre T¢nger e as Pir¢mides.

     Houve  um momento de  silªncio t£o  grande,  que a  cidade  parecia ter
adormecido. J¡ n£o haviam mais  os bazares, as discussåes dos mercadores, os
homens que subiam em minaretes e cantavam, as belas espadas  com seus punhos
cravejados. J¡ n£o havia mais a esperan§a e a aventura, velhos reis e Lendas
Pessoais,  o tesouro  e  as  pir¢mides.  Era como se todo o mundo  estivesse
quieto, porque a alma do rapaz estava em silªncio. N£o  havia. nem  dor, nem
sofrimento,  nem decep§£o: apenas um olhar vazio atrav©s da pequena porta do
bar,  e  uma  vontade  imensa  de morrer,  de que tudo  acabasse para sempre
naquele minuto.



     O Mercador olhou espantado para o rapaz. Era como se toda a alegria que
tinha visto aquela manh£ houvesse subitamente desaparecido.
     ­ Posso lhe dar  dinheiro para voltar    sua terra, meu filho ­ disse o
Mercador de Cristais.
     O rapaz continuou em silªncio. Depois levantou-se, ajeitou as roupas, e
pegou seu alforje.
     ­ Vou trabalhar com o senhor ­ disse.
     E depois de outro silªncio demorado, concluiu:
     ­ Preciso de dinheiro para comprar algumas ovelhas.









     H¡ quase um mªs o rapaz estava trabalhando para o Mercador de Cristais,
e n£o  era  exatamente o  tipo de  emprego que lhe  fazia feliz.  O Mercador
passava  o  dia  inteiro  resmungando  atr¡s do balc£o, pedindo que  tomasse
cuidado com as pe§as, que n£o deixasse quebrar nada.
     Mas continuava no emprego porque o Mercador era um velho rabujento, mas
n£o era injusto; o rapaz recebia uma boa comiss£o em cada pe§a vendida, e j¡
havia  conseguido  juntar algum dinheiro.  Naquela manh£  havia feito certos
c¡lculos: se continuasse  a trabalhar todos os dias como estava trabalhando,
ia precisar de um ano inteiro para poder comprar algumas ovelhas.
     ­  Gostaria  de fazer uma estante para os cristais  ­  disse o rapaz ao
Mercador.  ­  Ela pode  ser colocada do  lado  de  fora, e  atrair quem est¡
passando l¡ embaixo da ladeira.
     ­  Nunca fiz uma estante antes  ­ respondeu o  Mercador.  ­ As  pessoas
passam e esbarram. Os cristais se quebram.
     ­ Quando  eu  andava pelo  campo com  as ovelhas, elas podiam morrer se
encontrassem uma  cobra.  Mas isto  faz  parte  da  vida das  ovelhas e  dos
pastores.
     O  Mercador atendeu  um freguªs  que desejava trªs  vasos  de  cristal.
Estava vendendo  melhor do  que nunca,  como  se o  mundo tivesse voltado no
tempo, para a ©poca em que a rua era uma das principais atra§åes de T¢nger.
     ­ O movimento j¡ melhorou bastante ­ disse  ao  rapaz, quando o freguªs
saiu.  ­  O dinheiro  permite que  eu viva melhor, e  lhe devolver¡  as suas
ovelhas em pouco tempo. Para que exigir mais da vida?
     ­ Porque  temos que seguir os sinais ­ falou o rapaz, quase sem querer;
e arrependeu-se do que dissera, porque o Mercador nunca havia  encontrado um
rei.
     "Chama-se Princ­pio Favor¡vel,  sorte  de  principiante.  Porque a vida
quer que vocª viva sua Lenda Pessoal", falara o velho.
     O  Mercador,  entretanto, estava entendendo o  que  o rapaz  falava.  A
simples presen§a dele na loja era  um  sinal, e com o passar dos dias, com o
dinheiro entrando na caixa, ele n£o estava arrependido de haver contratado o
espanhol. Mesmo que o  rapaz estivesse ganhando mais do que  devia; como ele
sempre havia achado  que  as vendas n£o  mudavam  mais, tinha oferecido  uma
comiss£o alta,  e sua intui§£o dizia que em breve o garoto estaria de  volta
 s suas ovelhas.
     ­  Por que vocª queria conhecer as Pir¢mides? ­ perguntou, para mudar o
assunto da estante.
     ­ Porque sempre me falaram nelas ­ disse o rapaz, evitando falar no seu
sonho. Agora o  tesouro era uma lembran§a sempre dolorosa, e o rapaz evitava
pensar nisto.
     ­ Eu n£o conhe§o ningu©m aqui que queira atravessar  o deserto sã  para
conhecer as Pir¢mides ­ disse o  Mercador.  ­ S£o apenas um monte de pedras.
Vocª pode construir uma no seu quintal.
     ­ Vocª nunca teve  sonhos de viajar ­ disse o rapaz, atendendo mais  um
freguªs que entrava na loja.





     Dois dias depois o velho procurou o rapaz para falar da estante.
     ­  N£o  gosto de mudan§as ­ disse o  Mercador. ­ Nem eu nem  vocª somos
como Hassan, o  rico  comerciante. Se ele erra numa compra, isto n£o o afeta
muito. Mas nãs dois temos sempre que conviver com nossos erros.
     "‰ verdade", pensou o rapaz.
     ­ Para que vocª quer a estante? ­ disse o Mercador.
     ­  Quero voltar mais r¡pido para minhas ovelhas.  Temos  que aproveitar
quando a sorte  est¡ do  nosso lado, e fazer  tudo  para ajud¡-la  da  mesma
maneira que ela  est¡ nos ajudando.  Chama-se Princ­pio Favor¡vel. Ou "sorte
de principiante".
     O velho ficou calado por algum tempo. Depois disse:
     ­  O Profeta nos deu o Alcor£o,  e  nos deixou apenas  cinco obriga§åes
para serem seguidas em nossa existªncia. A mais  importante © a seguinte: sã
existe um Deus. As outras s£o: rezar cinco vezes por dia, fazer jejum no mªs
de Ramad£, fazer caridade com os pobres.
     Parou  de falar. Seus olhos ficaram cheios de ¡gua ao falar do Profeta.
Era um homem fervoroso,  e mesmo com toda a sua impaciªncia, procurava viver
sua vida de acordo com a lei mu§ulmana.
     ­ E qual a quinta obriga§£o? ­ perguntou o rapaz.
     ­ H¡ dois dias  atr¡s vocª disse que eu nunca  tive  sonhos de viajar ­
respondeu o Mercador.  ­ A quinta obriga§£o de todo mu§ulmano ©  uma viagem.
Devemos ir, pelo menos uma vez na vida,   cidade sagrada de Meca.
     "Meca © muito mais longe que as Pir¢mides. Quando eu era jovem, preferi
juntar o pouco dinheiro que  tinha para  come§ar  esta loja.  Pensava em ser
rico  algum  dia, para ir  a Meca. Passei a  ganhar dinheiro, mas n£o  podia
deixar  ningu©m  cuidando  dos  cristais,  porque  os  cristais  s£o  coisas
delicadas.  Ao mesmo tempo, via  passar defronte a minha loja muitas pessoas
que seguiam na dire§£o de  Meca. Haviam alguns peregrinos ricos, que iam com
um s©quito de criados e de camelos, mas a maior  parte das pessoas era muito
mais pobre do que eu era".
     "Todas iam  e voltavam contentes, e colocavam na porta de suas casas os
s­mbolos da peregrina§£o.  Uma delas, um sapateiro que vivia de  remendar as
botas alheias,  me disse que havia caminhado quase  um ano pelo deserto, mas
que  ficava sempre mais cansado quando tinha que caminhar alguns quarteiråes
em T¢nger para comprar couro".
     ­ Por que n£o vai a Meca agora? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Porque Meca © o que  me mant©m  vivo.  ‰ o  que me faz agìentar todos
estes dias iguais, estes vasos  calados nas prateleiras, o almo§o e o jantar
naquele restaurante horr­vel. Tenho medo de realizar meu sonho, e depois n£o
ter mais motivos para continuar vivo.
     "Vocª  sonha com  ovelhas e com pir¢mides. ‰  diferente de mim,  porque
deseja  realizar seus sonhos. Eu quero apenas sonhar com  Meca. J¡  imaginei
milhares de vezes a travessia do deserto, minha chegada na pra§a onde est¡ a
Pedra Sagrada, as sete voltas que  devo dar em torno dela antes de  toc¡-la.
J¡  imaginei quais  pessoas estar£o  do  meu lado,  na  minha frente,  e  as
conversas e ora§åes que compartilharemos juntos. Mas tenho medo que seja uma
grande decep§£o, ent£o prefiro apenas sonhar".
     Neste dia, o Mercador deu permiss£o  ao rapaz para construir a estante.
Nem todos podem ver os sonhos da mesma maneira.








     Mais dois meses se passaram, e a estante trouxe muitos fregueses   loja
dos cristais. O rapaz  calculou que, se trabalhasse mais seis meses, poderia
voltar   Espanha e comprar sessenta  ovelhas,  e  mais  sessenta ovelhas. Em
menos de um ano  ele teria duplicado seu rebanho, e ia poder negociar com os
¡rabes,  porque j¡ conseguia  falar aquela  l­ngua  estranha. Depois daquela
manh£ no mercado, ele  n£o  havia mais utilizado o Urim e o  Tumim, porque o
Egito  passou a ser apenas um sonho t£o distante  para ele como era a cidade
de Meca para o  Mercador. Entretanto, o  rapaz agora estava contente com seu
trabalho, e pensava a todo momento no dia  em que iria desembarcar em Tarifa
como um vencedor.
     "Lembre-se de saber  sempre o que  quer", havia falado o velho  rei.  O
rapaz sabia, e estava trabalhando para isto. Talvez seu tesouro tivesse sido
chegar  quela terra estranha, encontrar um assaltante, e dobrar  o nêmero de
seu rebanho sem ter gasto um centavo sequer.
     Estava orgulhoso de si mesmo. Havia aprendido coisas importantes,  como
o  com©rcio  de cristais, linguagem sem palavras, e os sinais. Uma tarde viu
um homem  no alto  da ladeira,  reclamando que  era imposs­vel encontrar  um
lugar decente para beber alguma  coisa depois  de toda a subida. O rapaz  j¡
conhecia a linguagem dos sinais, e chamou o velho para conversar.
     ­ Vamos vender ch¡ para as pessoas que sobem a ladeira ­ disse ele.
     ­ Muitas pessoas vendem ch¡ por aqui ­ respondeu o Mercador.
     ­  Podemos vender ch¡ em vasos  de cristal. Assim as pessoas v£o gostar
do ch¡, e v£o querer comprar os cristais. Porque o que mais seduz  os homens
© a beleza.
     O Mercador olhou para o rapaz durante algum tempo.  N£o respondeu nada.
Mas naquela  tarde, depois de  fazer suas ora§åes e fechar a loja, sentou-se
na cal§ada com ele e convidou-o a fumar narguil©  ­ aquele estranho cachimbo
que os ¡rabes usavam.
     ­ O que vocª est¡ procurando? ­ perguntou o velho Mercador de Cristais.
     ­ J¡  lhe  disse.  Preciso comprar de volta as ovelhas.  E para isto  ©
necess¡rio dinheiro.
     O  velho colocou  algumas  brasas  novas no  narguil©,  e deu uma longa
tragada.
     ­ H¡ trinta anos  tenho  esta loja. Conhe§o o bom  e  o mau cristal,  e
conhe§o  todos os detalhes  do seu funcionamento.  Estou  acostumado com seu
tamanho  e seu movimento.  Se  vocª  colocar  ch¡  em cristais, a  loja  ir¡
crescer. Ent£o eu vou ter que mudar minha maneira de vida.
     ­ E isto n£o © bom?
     ­ Estou acostumado com minha  vida. Antes de vocª, eu pensava que havia
perdido  tanto tempo  no  mesmo lugar,  enquanto meus amigos todos  mudavam,
quebravam,  ou progrediam Isto me deixava com  uma imensa tristeza. Agora eu
sei que n£o era bem assim: a loja tem o exato tamanho que eu sempre quis que
ela tivesse. N£o  quero mudar,  porque  n£o sei  como mudar.  J¡ estou muito
acostumado comigo mesmo.
     O rapaz n£o sabia o que dizer. O velho ent£o continuou:
     ­ Vocª foi uma bªn§£o para mim. E hoje estou entendendo uma coisa: toda
bªn§£o que n£o © aceita, transforma-se numa  maldi§£o. Eu n£o  quero mais da
vida.  E vocª est¡  me for§ando  a  ver  riquezas e  horizontes que eu nunca
conheci. Agora que os conhe§o, e  que conhe§o minhas possibilidades imensas,
vou me sentir pior do que me  sentia antes. Porque sei que posso ter tudo, e
n£o quero.


     "Ainda bem que eu n£o disse nada ao pipoqueiro", pensou o rapaz.
     Continuaram fumando  o  narguil©  por algum tempo,  enquanto  o  sol se
escondia. Estavam conversando em ¡rabe, e o rapaz estava  satisfeito consigo
mesmo, porque falava ¡rabe. Houve uma ©poca em  que ele achou que as ovelhas
podiam ensinar tudo sobre o mundo. Mas as ovelhas n£o sabiam ensinar ¡rabe.
     "Devem ter outras  coisas no mundo  que as ovelhas n£o sabem  ensinar",
pensou  o  rapaz, enquanto  olhava o Mercador  em silªncio. "Porque elas  sã
est£o em busca de ¡gua e comida.
     "Acho que n£o s£o elas que ensinam: eu © que aprendo".
     ­ Maktub ­ disse finalmente o mercador.
     ­ O que © isto?
     ­ Vocª precisaria ter nascido ¡rabe para compreender ­ respondeu ele. ­
Mas a tradu§£o seria algo como "est¡ escrito".
     E  enquanto  apagava as brasas  do narguil©,  disse  que o  rapaz podia
come§ar a vender ch¡ nos vasos. €s vezes, © imposs­vel deter o rio da vida.


     Os homens subiam a ladeira e ficavam  cansados. Ent£o, l¡ no seu  topo,
havia uma loja  de belos  cristais  com  ch¡ de menta refrescante. Os homens
entravam para beber o ch¡, que era servido em lindos vasos de cristal.
     "Jamais minha  mulher pensou nisto", lembrava  um,  e  comprava  alguns
cristais,  porque ia  ter  visitas naquela  noite: seus convidados  ficariam
impressionados com a riqueza das ta§as. Outro  homem passou a garantir que o
ch¡  era  sempre mais gostoso quando servido em recipientes de cristal, pois
conservavam melhor o  aroma. Um  terceiro  disse  ainda  que era tradi§£o no
Oriente utilizar  vasos  de cristal junto com ch¡, por causa de seus poderes
m¡gicos.
     Em  pouco tempo, a novidade se espalhou, e muitas  pessoas  passaram  a
subir at© o topo da ladeira para conhecer a loja que estava fazendo algo  de
novo num com©rcio t£o antigo. Outras  lojas de ch¡ em copos de cristal foram
abertas, mas  n£o ficavam em cima de uma ladeira, e por isso estavam  sempre
vazias.
     Em  pouco tempo, o  Mercador teve que contratar  mais dois  empregados.
Passou a  importar, junto com os  cristais, quantidades  enormes de ch¡, que
eram  diariamente  consumidas  pelos homens e mulheres  com  sede de  coisas
novas.
     E assim transcorreram seis meses.






     O  rapaz acordou antes do  sol nascer. Tinham-se passado  onze meses  e
nove  dias  desde  que  ele havia  pisado pela  primeira vez  no  continente
africano.
     Vestiu sua  roupa  ¡rabe, de linho branco, comprada especialmente  para
aquele  dia.  Colocou o len§o na cabe§a, fixo por  um anel feito de  pele de
camelo. Cal§ou as sand¡lias novas, e desceu sem fazer qualquer ru­do.
     A cidade ainda dormia. Ele fez  um  sandu­che de  gergelim, e bebeu ch¡
quente  no vaso de cristal. Depois  sentou-se  na soleira da porta,  fumando
sozinho o narguil©.
     Fumou em silªncio, sem pensar em nada, escutando  apenas o ru­do sempre
constante  do  vento  que  soprava  trazendo o cheiro do deserto. Depois que
acabou de  f'umar, enfiou  a m£o  num dos bolsos  do traje, e  ficou  alguns
instantes contemplando o que havia retirado l¡ de dentro.
     Havia um  grande  ma§o de dinheiro. O suficiente para comprar  cento  e
vinte  ovelhas, uma  passagem de  volta, e uma licen§a de com©rcio entre seu
pa­s e o pa­s onde estava.
     Esperou pacientemente que o velho acordasse e  abrisse  a loja. Os dois
ent£o foram juntos tomar mais ch¡.
     ­ Vou embora hoje ­ disse o rapaz. ­ Tenho dinheiro para comprar minhas
ovelhas. Vocª tem dinheiro para ir   Meca.
     O velho n£o disse nada.
     ­ Pe§o sua bªn§£o ­ insistiu o rapaz. ­ Vocª me ajudou.
     O  velho continuou  a  preparar o ch¡ em silªncio.  Depois de  um certo
tempo, por©m, virou-se para o rapaz.
     ­ Tenho orgulho de vocª ­ disse. ­ Vocª  trouxe alma para a  minha loja
de cristais.  Mas sabe que  eu n£o vou    Meca. Como sabe que n£o  voltar¡ a
comprar ovelhas.
     ­ Quem lhe disse isto? ­ perguntou o rapaz, assustado.
     ­ Maktub ­ disse simplesmente o velho Mercador de Cristais.
     E o aben§oou.


     O rapaz  foi at© seu quarto e juntou tudo que tinha. Eram  trªs sacolas
cheias. Quando j¡ estava saindo, notou  que,  num canto do quarto, havia seu
velho alforje de pastor. Estava  todo amassado, e ele quase nem  se lembrava
mais dele. L¡ dentro estava ainda o mesmo livro e o casaco. Quando ele tirou
o casaco, pensando  em dar de presente para um rapaz na  rua, as duas pedras
rolaram pelo ch£o. O Urim e o Tumim.
     O rapaz  ent£o se lembrou do velho rei, e ficou surpreso em perceber h¡
quanto tempo n£o pensava  mais nisto.  Durante  um ano havia  trabalhado sem
parar, pensando apenas em conseguir dinheiro para n£o voltar de cabe§a baixa
para a Espanha.
     "Nunca  desista  dos seus sonhos", havia falado o  velho  rei. "Siga os
sinais".
     O  rapaz pegou o  Urim e  o  Tumim no  ch£o, e  teve  novamente  aquela
estranha sensa§£o de que o rei estava perto. Trabalhara duro durante um ano,
e os sinais indicavam que agora era o momento de partir.
     "Vou  voltar exatamente  a ser o que era antes", pensou o rapaz. "E  as
ovelhas n£o me ensinaram a falar ¡rabe".


     As   ovelhas,   entretanto,  tinham   ensinado  uma  coisa  muito  mais
importante: que havia uma linguagem no mundo que todos compreendiam, e que o
rapaz tinha utilizado durante todo aquele tempo para fazer a loja progredir.
Era a linguagem do entusiasmo, das coisas feitas com  amor e com vontade, em
busca  de algo que se  desejava ou em que se  acreditava.  T¢nger j¡ n£o era
mais  uma  cidade  estranha, e ele  sentiu que  da  mesma maneira  que tinha
conquistado aquele lugar, poderia conquistar o mundo.
     "Quando vocª deseja  uma coisa, todo o Universo conspira para que possa
realiz¡-la", havia falado o velho rei.
     Mas o velho rei n£o falara de assaltos, de desertos imensos, de pessoas
que conhecem os seus  sonhos mas n£o desejam  realiz¡-los.  O velho rei  n£o
havia falado que as Pir¢mides eram apenas  um monte de pedras, e qualquer um
podia fazer um monte de pedras em seu quintal. E tinha se esquecido de dizer
que,  quando se tem  dinheiro  para comprar um rebanho  maior do  que o  que
possu­a, deve-se comprar este rebanho.
     O  rapaz pegou o  alforje  e  juntou com seus outros  sacos.  Desceu as
escadas; o velho estava atendendo um casal estrangeiro, enquanto dois outros
fregueses  andavam pela  loja, tomando  ch¡ em vasos de cristal. Era um  bom
movimento para  aquela  hora  da manh£.  Do  lugar  onde estava,  notou pela
primeira vez que o cabelo do Mercador lembrava muito  o cabelo do velho rei.
Lembrou-se  do  sorriso do  doceiro, no primeira dia  em  T¢nger, quando n£o
tinha para onde ir  nem o  que comer; tamb©m aquele sorriso lembrava o velho
rei.
     "Como se ele tivesse passado por aqui e  deixado uma marca", pensou. "E
cada  pessoa  n£o tivesse j¡ conhecido  este rei  em algum  momento de  suas
existªncias. Afinal de  contas, ele disse que sempre aparecia para quem vive
sua Lenda Pessoal".

     Saiu sem se despedir do Mercador de  Cristais. N£o queria chorar porque
as  pessoas podiam ver. Mas  ia ter saudade de todo aquele tempo, e de todas
as coisas boas que havia aprendido.  Estava  mais confiante  em si  e  tinha
vontade de conquistar o mundo.
     "Mas  estou indo para os campos que  j¡ conhe§o,  conduzir de  novo  as
ovelhas". E n£o estava mais contente com sua decis£o.  Tinha  trabalhado  um
ano inteiro para realizar um sonho, e este sonho, a cada minuto, ia perdendo
sua import¢ncia. Talvez porque n£o fosse seu sonho.
     "Quem sabe © melhor ser como o Mercador de Cristais: nunca ir   Meca, e
viver  da  vontade de conhecª-la". Mas estava segurando o Urim e o Tumim nas
m£os, e estas pedras lhe  traziam a for§a e a vontade  do velho rei. Por uma
coincidªncia  ­ ou  um  sinal, pensou o rapaz ­ ele chegou ao bar onde havia
entrado no primeiro dia. N£o havia mais o  ladr£o,  e o dono lhe  trouxe uma
x­cara de ch¡.
     "Sempre poderei voltar a ser pastor", pensou o rapaz. "Aprendi a cuidar
das ovelhas, e nunca  mais me  esquecerei  de como elas  s£o. Mas talvez n£o
tenha outra  oportunidade de chegar at© as Pir¢mides do Egito. O velho tinha
um peitoral de ouro, e sabia minha histãria.  Era um rei  de verdade, um rei
s¡bio".
     Estava apenas a  duas  horas de  barco das plan­cies de Andaluzia,  mas
havia um  deserto  inteiro  entre ele as  Pir¢mides. O rapaz percebeu talvez
esta maneira de pensar a mesma situa§£o:  na verdade, ele  estava duas horas
mais  perto do seu  tesouro.  Mesmo  que,  para caminhar  estas duas  horas,
tivesse demorado quase um ano inteiro.
     "Sei porque quero voltar para minhas ovelhas. Eu j¡ conhe§o as ovelhas;
n£o d£o muito trabalho, e podem ser  amadas. N£o sei  se o deserto  pode ser
amado,  mas  © o deserto  que esconde  o meu tesouro.  Se  eu n£o  conseguir
encontr¡-lo, poderei sempre voltar


     para casa. Mas de repente a vida me deu dinheiro suficiente, e eu tenho
todo o tempo que preciso; por que n£o?"
     Sentiu uma alegria  imensa naquele momento.  Sempre podia  voltar a ser
pastor de  ovelhas. Sempre podia voltar a ser vendedor de cristais. Talvez o
mundo tivesse muitos outros tesouros escondidos, mas ele havia tido um sonho
repetido e encontrado um rei. N£o acontecia com qualquer pessoa.
     Estava  contente  quando  saiu do bar. Havia se  lembrado  que  um  dos
fornecedores  do Mercador trazia  os cristais em  caravanas  que  cruzavam o
deserto. Manteve o Urim e o Tumim nas m£os; por causa daquelas  duas pedras,
estava de volta ao caminho de seu tesouro.
     "Sempre estou  perto dos que vivem a  Lenda Pessoal",  dissera  o velho
rei.
     N£o custava  nada ir at© o armaz©m, saber se as Pir¢mides eram  de fato
muito longe.







     O Inglªs estava sentado numa constru§£o  cheirando a animais,  suor,  e
poeira.  N£o podia chamar  aquilo de armaz©m;  era apenas um curral. "Toda a
minha  vida  para ter  que passar por  um lugar  como este", pensou enquanto
folheava distra­do uma revista de qu­mica. "Dez anos de estudo me conduzem a
um curral".
     Mas  era preciso seguir adiante. Tinha que acreditar em sinais.  Toda a
sua vida, todos os  seus estudos foram  em  busca  da linguagem ênica  que o
Universo  falava. Primeiro  havia se  interessado por  Esperanto, depois por
religiåes,  e  finalmente  por Alquimia.  Sabia  falar  Esperanto,  entendia
perfeitamente as diversas  religiåes, mas ainda n£o era um Alquimista. Tinha
conseguido decifrar  coisas  importantes,  ©  verdade.  Mas  suas  pesquisas
chegaram a  um ponto onde n£o conseguia progredir mais. Tinha tentado em v£o
entrar em  contato  com  algum alquimista. Mas os alquimistas  eram  pessoas
estranhas, que  sã pensavam neles mesmos, e  quase sempre  recusavam  ajuda.
Quem sabe, n£o haviam descoberto o segredo da Grande Obra ­ chamada de Pedra
Filosofal ­ e por isso se fechavam no silªncio.
     J¡  havia  gasto parte  da  fortuna que seu pai  lhe  deixara, buscando
inutilmente a Pedra Filosofal.  Tinha freqìentado as melhores bibliotecas do
mundo, e  comprado  os livros mais importantes e mais raros sobre  alquimia.
Num  deles  descobriu que h¡ muitos  anos atr¡s, um famoso alquimista  ¡rabe
havia  visitado a  Europa. Diziam  que ele tinha mais de duzentos anos,  que
havia descoberto a Pedra  Filosofal e o Elixir da Longa Vida. O Inglªs ficou
impressionado com a  histãria. Mas tudo n£o teria passado de mais uma lenda,
se um amigo  seu ­ voltando de  uma expedi§£o arqueolãgica  no deserto ­ n£o
lhe tivesse contado sobre um ¡rabe que tinha poderes excepcionais.
     ­ Mora  no o¡sis de Al-Fayoum ­ disse seu  amigo. ­ E as pessoas contam
que tem duzentos anos, e que © capaz de transformar qualquer metal em ouro.
     O  Inglªs n£o coube  em  si de tanta excita§£o.  Imediatamente cancelou
todos os seus compromissos,  juntou  os  livros  mais importantes,  e  agora
estava  ali,  naquele armaz©m parecido com um  curral, enquanto l¡ fora  uma
imensa caravana se preparava  para cruzar o  Saara.  A caravana  passava por
Al-Fayoum.
     "Tenho  que  conhecer  este maldito Alquimista", pensou o  Inglªs.  E o
cheiro dos animais tornou-se um pouco mais toler¡vel.




     Um  jovem ¡rabe,  tamb©m carregado de  malas, entrou no  lugar  onde  o
Inglªs estava e o cumprimentou.
     ­ Aonde vocª vai? ­ perguntou o jovem ¡rabe.
     ­ Para o deserto ­ respondeu o Inglªs, e voltou para a sua leitura. N£o
queria conversar agora. Precisava recordar  tudo que havia  aprendido em dez
anos, pois o Alquimista deveria submetª-lo a alguma esp©cie de prova.
     O jovem ¡rabe tirou um livro e come§ou a ler. O livro estava escrito em
espanhol. "Ainda  bem", pensou  o  Inglªs. Sabia falar espanhol  melhor  que
¡rabe, e se este rapaz  fosse  at©  Al-Fayoum, ia  ter algu©m para conversar
quando n£o estivesse ocupado com coisas importantes.


     "Que coisa  engra§ada"  ­ pensou o rapaz enquanto tentava mais  uma vez
ler a cena  do  enterro que  iniciava o livro.  ­  "Faz quase dois  anos que
comecei a ler, e n£o consigo  passar destas p¡ginas".  Mesmo sem um rei para
interrompª-lo,  ele  n£o  conseguia  se concentrar.  Ainda  estava em dêvida
quanto     sua  decis£o. Mas  estava  percebendo  uma coisa  importante:  as
decisåes  eram  apenas o  come§o de  alguma coisa.  Quando algu©m tomava uma
decis£o, na verdade estava mergulhando numa  correnteza poderosa, que levava
a pessoa para um lugar que jamais havia sonhado na hora de decidir.
     "Quando  resolvi ir  em busca do meu  tesouro, nunca imaginei trabalhar
numa loja  de cristais", pensou o rapaz, para confirmar seu racioc­nio.  "Da
mesma maneira, esta  caravana pode ser  uma decis£o minha,  mas seu percurso
ser¡ sempre um mist©rio".
     Na sua  frente havia  um europeu tamb©m lendo um  livro.  O europeu era
antip¡tico, e tinha olhado com desprezo quando ele entrou. Podiam at© ter se
tornado bons amigos, mas o europeu havia interrompido a conversa.
     O  rapaz fechou o livro. N£o queria fazer nada que o deixasse  parecido
com aquele europeu. Tirou o Urim e o Tumim do bolso, e come§ou a brincar com
eles.
     O estrangeiro deu um grito:
     ­ Um Urim e um Tumim!
     O rapaz, mais que depressa, guardou as pedras no bolso.
     ­ N£o est£o   venda ­ disse.
     ­ N£o valem muito ­ disse o Inglªs. ­ S£o cristais de rocha, nada mais.
H¡  milhåes de cristais de rocha na terra, mas para  quem entende, estes s£o
Urim e Tumim. N£o sabia que eles existiam nesta parte do mundo.
     ­ Foi o presente de um rei ­ disse o rapaz.
     O estrangeiro  ficou mudo.  Depois enfiou  a  m£o  no bolso e  retirou,
tremendo, duas pedras iguais.
     ­ Vocª falou em um rei ­ disse.
     ­ E  vocª  n£o acredita que os reis  conversem  com  pastores ­ disse o
rapaz, desta vez querendo encerrar a conversa.
     ­ Ao contr¡rio. Os pastores foram os primeiros a reconhecer um rei  que
o resto  do mundo recusou-se a conhecer.  Por isso ©  muito prov¡vel que  os
reis conversem com pastores.
     E completou, com medo que o rapaz n£o estivesse entendendo:


     ­  Est¡ na B­blia. No mesmo livro  que me ensinou a  fazer este  Urim e
este Tumim.  Estas pedras  eram a ênica  forma de adivinha§£o  permitida por
Deus. Os sacerdotes as carregavam num peitoral de ouro.
     O rapaz ficou contente de estar naquele armaz©m.
     ­ Talvez isto seja um sinal ­ disse o Inglªs, como quem pensa alto.
     ­ Quem lhe  falou  em  sinais?  ­ o interesse  do rapaz crescia a  cada
momento.
     ­  Tudo  na vida s£o  sinais ­  disse o  Inglªs,  desta vez fechando  a
revista que estava lendo.  O Universo ©  feito por uma l­ngua que todo mundo
entende,  mas que j¡ se esqueceu. Estou procurando esta Linguagem Universal,
al©m de outras coisas.
     "Por isso estou aqui. Porque  tenho que  encontrar um homem que conhece
esta Linguagem Universal. Um Alquimista."
     A conversa foi interrompida pelo chefe do armaz©m.
     ­ Vocªs est£o com sorte ­  disse o ¡rabe gordo. ­ Sai hoje    tarde uma
caravana para Al-Fayoum.
     ­ Mas eu vou ao Egito ­ disse o rapaz.
     ­ Al-Fayoum © no Egito ­ disse o dono.
     ­ Que tipo de ¡rabe vocª ©?
     O  rapaz  disse  que  era  espanhol. O  Inglªs ficou  satisfeito: mesmo
vestido como ¡rabe, o rapaz pelo menos era europeu.
     ­ Ele chama  de "sorte" os sinais  ­ disse o Inglªs, depois que o gordo
¡rabe saiu. ­ Se eu pudesse, escreveria uma gigantesca enciclop©dia sobre as
palavras  "sorte" e "coincidªncia". ‰ com estas palavras  que  se  escreve a
Linguagem Universal.
     Depois  comentou  com  o  rapaz   que  n£o  havia  sido  "coincidªncia"
encontr¡-lo com o Urim e o Tumim na m£o. Perguntou se ele tamb©m estava indo
em busca do Alquimista.
     ­ Estou indo em busca  de um tesouro  ­ disse o  rapaz, e arrependeu-se
imediatamente. Mas o Inglªs pareceu n£o dar import¢ncia.
     ­ De certa forma, eu tamb©m estou, disse.
     ­ E nem  sei  o que quer dizer Alquimia  ­ completou  o rapaz, quando o
dono do armaz©m come§ou a cham¡-los para fora.





     ­ Eu sou o L­der da Caravana ­ disse  um senhor de barba longa  e olhos
escuros. ­  Tenho poder de vida e  de  morte sobre  cada pessoa que carrego.
Porque o deserto © uma mulher caprichosa, e  s vezes deixa os homens loucos.
     Haviam  quase duzentas pessoas, e  o  dobro  de  animais. Eram camelos,
cavalos, burros, aves. O Inglªs tinha v¡rias malas, cheias de livros. Haviam
mulheres,  crian§as,  e  v¡rios  homens  com espadas  na  cintura  e  longas
espingardas nos ombros. Um imenso burburinho enchia o local, e o  L­der teve
que repetir v¡rias vezes suas palavras para que todos entendessem.
     ­  H¡ v¡rios homens e deuses diferentes  no cora§£o destes  homens. Mas
meu  ênico Deus © Allah, e por ele eu juro que  farei  o poss­vel e o melhor
para  vencer mais  uma vez  o deserto. Agora quero que cada um de vocªs jure
pelo Deus em que acredita, no fundo


     do seu  cora§£o, de que  ir¡ me obedecer em  qualquer circunst¢ncia. No
deserto, a desobediªncia significa a morte.
     Um murmêrio correu baixo por todas as  pessoas. Estavam  jurando em voz
baixa diante de seu Deus. O rapaz jurou  por Jesus Cristo. O Inglªs ficou em
silªncio. O murmêrio se estendeu um tempo maior do que uma simples  jura; as
pessoas tamb©m estavam pedindo prote§£o aos c©us.
     Ouviu-se um longo toque de  clarim,  e cada um montou em seu  animal. O
rapaz  e  o  Inglªs  haviam  comprado  camelos,  e  subiram  com  uma  certa
dificuldade. O rapaz ficou  com pena do camelo do  Inglªs: estava  carregado
com as pesadas sacolas de livros.
     ­  N£o  existem  coincidªncias ­ disse o Inglªs,  tentando  continuar a
conversa que haviam iniciado no armaz©m.  ­ Foi um amigo  que me trouxe  at©
aqui, porque conhecia um ¡rabe, que...
     Mas a  caravana  come§ou  a andar, e ficou  imposs­vel escutar o  que o
Inglªs  estava dizendo.  Entretanto,  o rapaz  sabia  exatamente do  que  se
tratava: a cadeia misteriosa que vai  unindo uma coisa  com  a outra,  que o
tinha levado a ser pastor, a ter o mesmo sonho, e estar numa cidade perto da
frica, e encontrar na pra§a um rei, e ser roubado para conhecer um mercador
de cristais, e...
     "Quanto mais  se  chega perto  do  sonho,  mais a Lenda  Pessoal vai se
tornando a verdadeira raz£o de viver", pensou o rapaz.





     A  caravana come§ou a seguir  em  dire§£o ao poente. Viajavam de manh£,
paravam quando o sol ficava mais forte, e  seguiam de novo ao entardecer.  O
rapaz conversava  pouco com o Inglªs,  que passava a  maior parte  do  tempo
entretido pelos livros.
     Ent£o, passou a  observar em silªncio a marcha de animais e homens pelo
deserto. Agora  tudo  era  muito diferente do  dia  em  que  haviam partido:
naquele dia, confus£o e gritos, choros e crian§as e relinchar de animais, se
misturavam com as ordens nervosas dos guias e dos comerciantes.
     No deserto, por©m,  havia apenas o vento eterno, o silªncio, e o  casco
dos animais. Mesmo os guias conversavam pouco entre si.
     "J¡ cruzei muitas vezes estas areias" ­ disse um cameleiro certa noite.
"Mas o  deserto  © t£o  grande,  os horizontes ficam t£o longe, que  fazem a
gente se sentir pequeno e permanecer em silªncio".
     O rapaz entendeu o que o  cameleiro queria dizer, mesmo  sem ter pisado
antes num deserto. Todas as vezes que olhava o  mar ou o fogo, era  capaz de
ficar horas em silªncio, sem pensar em nada, mergulhado  na imensid£o  e  na
for§a dos elementos.
     "Aprendi com ovelhas e aprendi com cristais", pensou ele. "Posso tamb©m
aprender com o deserto. Ele me parece mais velho e mais s¡bio".
     O vento n£o parava nunca. O  rapaz lembrou-se do dia em que sentiu este
mesmo vento, sentado num forte em Tarifa. Talvez ele agora estivesse ro§ando
de leve pela l£  de suas  ovelhas, que seguiam em busca  de alimento e  ¡gua
pelos campos de Andaluzia.
     "N£o  s£o  mais  minhas  ovelhas",  disse para  si  mesmo,  sem  sentir
saudades. "Devem ter  se acostumado  a um novo  pastor,  e j¡ me esqueceram.
Isto  © bom.  Quem est¡  acostumado  a viajar, como as  ovelhas,  sabe que ©
sempre necess¡rio partir um dia".
     Lembrou-se depois, da filha do comerciante, e teve  certeza de  que ela
j¡  havia casado. Quem sabe com um pipoqueiro, ou com  um pastor  que tamb©m
soubesse ler e contasse histãrias extraordin¡rias; afinal, ele n£o devia ser
o ênico. Mas  ficou  impressionado  com  o  seu  pressentimento: talvez  ele
estivesse aprendendo tamb©m esta histãria de Linguagem Universal, que sabe o
passado e o presente  de todos os  homens. "Pressentimentos",  como sua  m£e
costumava dizer. O rapaz  come§ou  a entender que os pressentimentos eram os
r¡pidos mergulhos que a alma  dava nesta corrente  Universal de vida, onde a
histãria de todos  os  homens  est¡  ligada entre si, e podemos saber  tudo,
porque tudo est¡ escrito.
     "Maktub", disse o rapaz, lembrando-se do Mercador de Cristais.

     O deserto era  s vezes feito de  areia, e  s vezes feito de pedra. Se a
caravana chegava em frente a uma pedra, ela a contornava; se estavam  diante
de um rochedo,  davam  uma  longa volta.  Se a areia era fina  demais para o
casco dos camelos, procuravam um  lugar  onde a areia fosse mais resistente.
€s  vezes o ch£o estava coberto  de  sal, no lugar onde um  lago devia haver
existido.  Os  animais  ent£o  se  queixavam,  e  os  cameleiros  desciam  e
desatolavam  os  animais.  Depois  colocavam  as cargas nas prãprias costas,
passavam pelo ch£o trai§oeiro, e novamente carregavam os animais. Se um guia
ficava doente ou morria, os cameleiros lan§avam a sorte  e escolhiam um novo
guia.
     Mas  tudo  isto acontecia  por uma ênica  raz£o:  n£o importava quantas
voltas  tivesse  que  dar,  a caravana seguia sempre em dire§£o  a um  mesmo
ponto. Depois de vencidos os obst¡culos, ela voltava de novo sua frente para
o astro que indicava a posi§£o


     do o¡sis. Quando as  pessoas  viam aquele astro  brilhando no c©u  pela
manh£, sabiam  que ele  indicava um  lugar  com mulheres,  ¡gua,  t¢maras  e
palmeiras.  Sã o Inglªs  n£o percebia aquilo:  estava a maior parte do tempo
imerso na leitura dos seus livros.
     O rapaz tamb©m tinha um livro, que havia tentado ler nos primeiros dias
de viagem. Mas  achava muito mais interessante olhar a caravana e  escutar o
vento.  Assim  que aprendeu a conhecer melhor seu camelo e a se  afei§oar  a
ele, jogou  o livro fora. Era um peso  desnecess¡rio,  apesar do rapaz haver
criado  a  supersti§£o  de que toda vez que abria o livro, encontrava algu©m
importante.
     Terminou fazendo  amizade  com o  cameleiro  que  viajava sempre ao seu
lado. De noite, quando paravam em volta das fogueiras, costumava contar suas
aventuras como pastor ao cameleiro.
     Numa destas conversas o cameleiro come§ou a falar de sua vida.
     ­ Eu morava num lugar perto de El Cairum ­ contou. ­ Tinha minha horta,
meus filhos e uma vida que n£o ia mudar at© o dia de minha morte. Num ano em
que a colheita  foi melhor, seguimos  todos  para Meca,  e eu cumpri a ênica
obriga§£o que estava faltando na minha vida. Podia morrer  em paz, e gostava
disto.
     "Certo dia a terra come§ou a tremer, e o Nilo subiu al©m do seu limite.
Aquilo que eu pensava  que sã acontecia com os outros,  terminou acontecendo
comigo. Meus vizinhos tiveram medo de perder suas oliveiras com a inunda§£o;
minha mulher  teve receio de que nossos filhos fossem levados pelas ¡guas. E
eu tive pavor de ver destru­do tudo que havia conquistado.
     "Mas n£o houve jeito.  A terra ficou  imprest¡vel  e tive que  arranjar
outro meio de vida.
     Hoje  sou  cameleiro. Mas a­ entendi  a palavra de Allah: ningu©m sente
medo do desconhecido, porque  qualquer pessoa © capaz de conquistar tudo que
quer e necessita.
     "Sã  sentimos medo de perder aquilo que temos,  sejam  nossas  vidas ou
nossas planta§åes. Mas este  medo passa quando entendemos que nossa histãria
e a histãria do mundo foram escritas pela mesma M£o".


     €s vezes as caravanas se encontravam durante a noite.  Sempre uma delas
tinha o que a outra estava precisando ­ como se realmente tudo fosse escrito
por uma  sã M£o. Os cameleiros trocavam informa§åes  sobre as tempestades de
vento, e  se  reuniam em  torno das  fogueiras,  contando  as  histãrias  do
deserto.
     Outras vezes chegavam misteriosos homens encapu§ados; eram bedu­nos que
espionavam a  rota seguida pelas caravanas.  Davam not­cias de assaltantes e
tribos  b¡rbaras. Chegavam  no silªncio e partiam no silªncio, com as roupas
negras deixando apenas os olhos de fora.

     Numa  destas noites o cameleiro veio at©  a fogueira onde  o rapaz  e o
Inglªs estavam sentados.
     ­ H¡ rumores de guerra entre os cl£s ­ disse o cameleiro.
     Os trªs ficaram quietos. O rapaz notou que havia medo no ar, mesmo  que
ningu©m tivesse  dito nenhuma  palavra.  Mais  uma vez  estava percebendo  a
linguagem sem palavras, a Linguagem Universal.
     Depois de certo tempo, o Inglªs perguntou se havia perigo.


     ­ Quem entra no deserto n£o pode voltar  ­  disse o cameleiro. ­ Quando
n£o  se  pode  voltar, sã devemos ficar  preocupado  com a melhor maneira de
seguir em frente. O resto © por conta de Allah, inclusive o perigo.
     E concluiu dizendo a misteriosa palavra: "Maktub".
     ­ Vocª  precisa prestar  mais aten§£o  s caravanas ­  disse  o rapaz ao
Inglªs, depois  que o cameleiro saiu. ­  Elas d£o  muitas  voltas, mas rumam
sempre para o mesmo lugar.
     ­ E vocª devia ler mais sobre o mundo ­ respondeu o Inglªs. ­ Os livros
s£o iguais  s caravanas.

     O imenso grupo de homens e animais come§ou a andar mais r¡pido. Al©m do
silªncio durante o dia, as noites ­ quando as pessoas costumavam  se  reunir
para  conversar  em  torno   das  fogueiras  ­  come§aram  a  ficar   tamb©m
silenciosas. Certo dia o L­der  da Caravana decidiu que nem fogueiras podiam
mais ser acesas, para n£o chamar a aten§£o sobre a caravana.
     Os viajantes passaram  a  fazer uma  roda  de animais, e dormiam  todos
juntos  no centro, tentando  se  proteger do frio noturno. O L­der  passou a
instalar sentinelas armadas em volta do grupo.
     Numa daquelas  noites o Inglªs n£o conseguiu dormir.  Chamou o rapaz  e
come§aram  a  passear pelas dunas em  volta do acampamento. Era uma noite de
lua cheia, e o rapaz contou ao Inglªs toda a sua histãria.
     O  Inglªs ficou fascinado com a loja que havia progredido depois  que o
rapaz come§ou a trabalhar nela.
     ­ Este © o princ­pio que move todas  as coisas ­ disse. ­ Na Alquimia ©
chamado  de Alma  do Mundo. Quando vocª deseja algo de  todo  o seu cora§£o,
vocª est¡ mais prãximo da Alma do Mundo. Ela © sempre uma for§a positiva.
     Disse tamb©m que isto n£o era apenas um dom dos homens: todas as coisas
sobre a face da Terra tinham tamb©m uma alma, n£o importando se era mineral,
vegetal, animal, ou apenas um simples pensamento.
     ­ Tudo  que  est¡ sob e  sobre a  face da Terra  se transforma  sempre,
porque  a Terra  est¡  viva;  e  tem  uma  alma. Somos  parte desta  Alma, e
raramente sabemos que ela  sempre trabalha em  nosso  favor.  Mas  vocª deve
entender que, na loja  dos cristais, at© mesmo  os vasos estavam colaborando
para o seu sucesso.
     O  rapaz ficou em silªncio  por algum tempo, olhando a lua  e  a  areia
branca.
     ­ Tenho  visto a caravana  caminhando  atrav©s  do deserto ­ disse, por
fim. ­ Ela e o deserto falam a mesma l­ngua, e por  isso ele permite que ela
o  atravesse.  Vai testar  cada passo  seu,  para  ver se est¡  em  perfeita
sintonia com ele; e se estiver, ela chegar¡ at© o o¡sis.
     "Se um de  nãs  chegasse aqui com muita coragem, mas  sem entender esta
l­ngua, ia morrer no primeiro dia."
     Continuaram olhando a lua, juntos.
     ­ Esta © a magia dos sinais ­ continuou o rapaz. ­ Tenho  visto como os
guias  lªem os sinais  do deserto, e como a alma da  caravana conversa com a
alma do deserto.
     Depois de algum tempo, foi a vez do Inglªs falar.
     ­ Preciso prestar mais aten§£o   caravana ­ disse, por fim.
     ­ E eu preciso ler seus livros ­ falou o rapaz.






     Eram livros estranhos. Falavam em  mercêrio, sal,  dragåes e reis,  mas
ele n£o  conseguia entender  nada. Entretanto, havia uma  id©ia  que parecia
repetida em quase todos os livros: todas as coisas eram manifesta§åes de uma
coisa sã.
     Num  dos livros  ele descobriu que o texto mais importante  da Alquimia
tinha apenas poucas linhas, e havia sido escrito numa simples esmeralda.
     ­ ‰ a T¡boa da Esmeralda ­ falou o Inglªs, orgulhoso por ensinar alguma
coisa ao rapaz.
     ­ E ent£o, para que tantos livros?
     ­  Para entender estas linhas ­ respondeu  o  Inglªs, sem  estar  muito
convencido da prãpria resposta.

     O livro que mais interessou ao rapaz contava a histãria dos alquimistas
famosos. Eram homens que tinham dedicado sua vida inteira a purificar metais
nos laboratãrios; acreditavam que se um metal fosse cozinhado durante muitos
e muitos  anos,  terminaria  se libertando  de  todas as  suas  propriedades
individuais, e em seu lugar sobrava apenas a Alma do Mundo. Esta Coisa šnica
permitia que  os  alquimistas  entendessem qualquer  coisa  sobre a  face da
Terra, porque ela era  a linguagem pela qual as  coisas se comunicavam. Eles
chamavam esta descoberta de  Grande Obra ­  que era  composta  de  uma parte
l­quida e uma parte sãlida.
     ­ N£o basta  observar os homens e  os  sinais, para  se  descobrir esta
linguagem? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Vocª tem mania de simplificar tudo ­ respondeu o Inglªs irritado. ­ A
Alquimia © um trabalho s©rio. Precisa que cada passo seja seguido exatamente
como os mestres ensinaram.
     O  rapaz descobriu que  a  parte l­quida da Grande Obra era chamada  de
Elixir da Longa  Vida,  e curava todas as  doen§as, al©m  de  evitar  que  o
alquimista ficasse velho. E a parte sãlida era camada de Pedra Filosofal.
     ­  N£o © f¡cil  descobrir a  Pedra  Filosofal  ­  disse o Inglªs. ­  Os
alquimistas ficavam  muitos anos nos  laboratãrios,  olhando aquele fogo que
purificava os metais.  Olhavam tanto o fogo, que aos poucos suas cabe§as iam
perdendo todas as  vaidades do  mundo. Ent£o, um belo dia, descobriam que  a
purifica§£o dos metais havia terminado por purificar a eles mesmos.
     O rapaz se lembrou do  Mercador de Cristais. Ele havia falado que tinha
sido bom  limpar seus vasos,  para que ambos  se libertassem tamb©m dos maus
pensamentos. Estava cada vez mais convencido de  que a Alquimia poderia  ser
aprendida na vida di¡ria.
     ­ Al©m disso ­  falou o Inglªs ­ a  Pedra Filosofal tem uma propriedade
fascinante.  Uma   pequena  lasca  dela  ©  capaz   de  transformar  grandes
quantidades de metal em ouro.
     A  partir  desta  frase, o  rapaz  ficou interessad­ssimo  em Alquimia.
Pensava que, com um  pouco  de paciªncia, poderia transformar  tudo em ouro.
Leu  a  vida de v¡rias  pessoas que  tinham  conseguido:  Helvetius,  Elias,
Fulcanelli, Geber.  Eram histãrias fascinantes: todos estavam  vivendo at© o
fim sua  Lenda  Pessoal.  Viajavam, encontravam  s¡bios,  faziam milagres na
frente dos incr©dulos, possu­am a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida.


     Mas quando queria aprender a maneira de conseguir a Grande Obra, ficava
completamente  perdido. Eram apenas desenhos,  instru§åes  em cãdigo, textos
obscuros.


     ­  Por que eles falam t£o dif­cil? ­ perguntou  certa noite ao  Inglªs.
Notou tamb©m que o Inglªs  andava  meio aborrecido e sentindo  falta de seus
livros.
     ­  Para que sã os que tªm  responsabilidade de entender  que entendam ­
disse ele.  ­ Imagine  se  todo mundo sa­sse  transformando chumbo em  ouro.
Daqui a pouco o ouro n£o ia valer nada.
     "Sã os persistentes, sã aqueles  que pesquisam muito, © que conseguem a
Grande  Obra. Por  isso  estou  no  meio  deste deserto.  Para  encontrar um
verdadeiro Alquimista, que me ajude a decifrar os cãdigos".
     ­ Quando foram escritos estes livros? ­ perguntou o rapaz.
     ­ H¡ muitos s©culos atr¡s.
     ­ Naquela ©poca n£o havia imprensa ­ insistiu o  rapaz. N£o havia jeito
de todo mundo tomar  conhecimento  da Alquimia.  Por  que esta linguagem t£o
estranha, cheia de desenhos?
     O Inglªs  n£o respondeu nada. Disse que h¡ v¡rios dias estava prestando
aten§£o    caravana,  e que n£o conseguia descobrir nada de  novo.  A  ênica
coisa que tinha notado era que os coment¡rios sobre a guerra aumentavam cada
vez mais.


     Um belo dia o rapaz entregou de volta os livros ao Inglªs.
     ­  Ent£o,  aprendeu   muita  coisa?  ­  perguntou  o  outro,  cheio  de
expectativa.  Estava precisando  de algu©m  com quem pudesse  conversar para
esquecer o medo da guerra.
     ­  Aprendi  que  o  mundo tem uma  Alma,  e  quem entender  esta  Alma,
entender¡ a linguagem das coisas. Aprendi que muitos alquimistas viveram sua
Lenda Pessoal e terminaram descobrindo a Alma do Mundo, a Pedra Filosofal, o
Elixir.
     "Mas, sobretudo, aprendi que estas coisas s£o t£o simples que podem ser
escritas numa esmeralda".
     O Inglªs ficou decepcionado. Os anos de estudo, os s­mbolos m¡gicos, as
palavras   dif­ceis,  os   aparelhos  de  laboratãrio,   nada  disso   havia
impressionado  o  rapaz.  "Ele  deve  ter  uma  alma primitiva  demais  para
compreender isto", apensou.
     Pegou seus livros e guardou nos sacos que pendiam do camelo.
     ­ Volte para sua caravana ­ disse. ­ Ela tampouco  me  ensinou qualquer
coisa.
     O rapaz voltou  a contemplar o silªncio do deserto e a areia  levantada
pelos animais. "Cada um tem sua maneira de aprender", repetia consigo mesmo.
"A maneira  dele n£o  © a minha, e  minha maneira  n£o  © a  dele. Mas ambos
estamos em busca de nossa Lenda Pessoal, e eu o respeito por isto".




     A caravana  come§ou  a viajar  dia  e  noite . A toda hora apareciam os
mensageiros  encapu§ados,  e o cameleiro ­ que  haviam se  tornado  amigo do
rapaz  ­ explicou que a guerra entre os  cl£s  havia  come§ado. Teriam muita
sorte se conseguissem chegar ao o¡sis.
     Os animais estavam  exaustos, e os homens cada vez  mais silenciosos. O
silªncio  era mais terr­vel na parte da noite, quando um simples relincho de
camelo ­ que antes n£o passava de um relincho de  camelo ­ agora assustava a
todos e podia ser um sinal de invas£o.
     O cameleiro, por©m, parecia n£o  se impressionar muito com  a amea§a de
guerra.
     ­ Estou vivo ­ disse ao  rapaz, enquanto comia  um prato de  t¢maras na
noite sem fogueiras  e sem lua. ­ Enquanto estou comendo, n£o fa§o nada al©m
de comer. Se estiver caminhando, apenas caminharei. Se tiver que lutar, ser¡
um dia t£o bom para morrer como qualquer outro.
     "Porque n£o vivo  nem no meu passado, nem no meu futuro. Tenho apenas o
presente, e ele  ©  o  que me interessa.  Se vocª puder permanecer sempre no
presente,  ent£o  ser¡ um  homem feliz.  Vai  perceber que no deserto existe
vida, que  o c©u tem estrelas,  e  que  os guerreiros lutam porque  isto faz
parte da ra§a humana. A  vida ser¡ uma festa, um grande festival, porque ela
© sempre e apenas o momento que estamos vivendo."
     Duas noites depois, quando  se preparava para  dormir, o rapaz olhou em
dire§£o ao astro  que seguiam durante a noite. Achou que o  horizonte estava
um pouco mais baixo, porque em cima do deserto haviam centenas de estrelas.
     ­ ‰ o o¡sis ­ disse o cameleiro.
     ­ E porque n£o chegamos l¡ imediatamente?
     ­ Porque precisamos dormir.


     O rapaz abriu os olhos  quando o  sol  come§ava  a surgir no horizonte.
Diante  dele,  onde  as pequenas estrelas  haviam  estado  durante  a noite,
estendia-se uma  fila intermin¡vel de tamareiras, cobrindo toda a frente  do
deserto.
     ­ Conseguimos! ­ disse o Inglªs, que tamb©m tinha acabado de acordar.
     O rapaz, por©m, mantinha-se calado.  Aprendera o silªncio do deserto, e
contentava-se em olhar as tamareiras na sua frente. Ainda tinha que caminhar
muito para chegar at© as  Pir¢mides,  e algum dia aquela manh£ seria  apenas
uma lembran§a. Mas agora  ela  era o momento presente, a festa da qual havia
falado o cameleiro,  e ele  estava procurando vivª-lo  com as  li§åes do seu
passado  e os  sonhos  do seu futuro. Um dia, aquela  vis£o  de milhares  de
tamareiras  seria  apenas  uma  lembran§a.  Mas  para  ele,  neste  momento,
significava sombra, ¡gua, e um refêgio para a guerra. Assim como um relincho
de camelo  podia se  transformar em perigo,  uma  fila de  tamareiras  podia
significar um milagre.
     "O mundo fala muitas linguagens", pensou o rapaz.




     "Quando os tempos andam depressa, as caravanas correm tamb©m", pensou o
Alquimista, enquanto  via chegar centenas de pessoas e  animais ao O¡sis. As
pessoas  gritavam  atr¡s  dos  rec©m-chegados, a  poeira  encobria o sol  do
deserto,  e  as  crian§as  pulavam de  excita§£o  ao  ver  os  estranhos.  O
Alquimista percebeu os chefes tribais se aproximarem do L­der da Caravana, e
conversarem longamente entre si.
     Mas nada daquilo interessava ao  Alquimista. J¡ havia visto muita gente
chegar e partir, enquanto o O¡sis  e o  deserto  permaneciam o  mesmo. Tinha
visto reis e mendigos pisando aquelas areias que sempre mudavam de forma por
causa  do  vento, mas que eram as mesmas que havia conhecido quando crian§a.
Mesmo  assim, n£o conseguia  conter  no fundo  do  seu  cora§£o  um pouco da
alegria  de  vida que  todo viajante experimentava  quando,  depois de terra
amarela  e c©u  azul, o verde das tamareiras aparecia diante de  seus olhos.
"Talvez Deus  tenha criado o deserto para que  o homem pudesse sorrir com as
tamareiras", pensou ele.
     Depois  resolveu  concentrar-se  em assuntos mais  pr¡ticos.  Sabia que
naquela caravana vinha o homem a quem devia  ensinar parte de seus segredos.
Os sinais  lhe haviam contado isto. Ainda n£o conhecia  este homem, mas seus
olhos experimentados o  reconheceriam  quando  o visse.  Esperava que  fosse
algu©m t£o capaz como seu aprendiz anterior.
     "N£o sei  porque estas coisas  tem que  ser  transmitidas de  boca para
ouvido",  pensava ele.  N£o era exatamente  porque as  coisas eram secretas;
Deus revelava prodigamente seus segredos a todas as criaturas.
     Ele sã conhecia uma explica§£o para este fato: as coisas tinham que ser
transmitidas assim  porque elas  seriam feitas de  Vida Pura, e este tipo de
vida dificilmente consegue ser capturado em pinturas ou palavras.
     Porque  as pessoas se fascinam com  pinturas e  palavras, e terminam se
esquecendo da Linguagem do Mundo.






     Os rec©m-chegados  foram trazidos imediatamente     presen§a dos chefes
tribais  de Al-Fayoum.  O rapaz n£o podia acreditar no que estava vendo:  ao
inv©s  de  um  po§o cercado de algumas palmeiras ­ como havia lido certa vez
num livro  de histãria ­ o o¡sis era  muito maior do  que  v¡rias aldeias da
Espanha. Tinha  trezentos po§os, cinqìenta mil  tamareiras, e muitas  tendas
coloridas espalhadas entre elas.
     ­ Parece  as  Mil  e  Uma  Noites  ­ disse  o Inglªs,  impaciente  para
encontrar-se logo com o Alquimista.
     Foram cercados logo pelas crian§as, que olhavam curiosas os animais, os
camelos, e as pessoas que chegavam. Os homens queriam  saber se tinham visto
algum combate, e as mulheres disputavam entre si os tecidos e  pedras que os
mercadores haviam trazido. O silªncio do  deserto parecia um sonho distante;
as pessoas falavam sem parar, riam e gritavam, como se tivessem sa­do de  um
mundo espiritual, para estarem de novo entre  os homens. Estavam contentes e
felizes.
     Apesar  das  precau§åes do dia anterior, o cameleiro explicou ao  rapaz
que os o¡sis no deserto eram sempre considerados terrenos neutros,  porque a
maior parte dos habitantes eram mulheres e crian§as. E haviam o¡sis tanto de
um lado como de outro; assim, os guerreiros iam lutar do deserto, e deixavam
os o¡sis como cidades de refêgio.
     O L­der da Caravana reuniu todos com uma certa dificuldade, e come§ou a
dar as instru§åes. Iam permanecer ali at© que a guerra entre os cl£s tivesse
terminada.   Como  eram  visitantes,   deviam  compartilhar  as  tendas  com
habitantes  do  o¡sis,  que  lhes  dariam   seus  melhores  lugares.  Era  a
hospitalidade  da  Lei.  Depois  pediu que todos,  inclusive  seus  prãprios
sentinelas, entregassem as armas aos homens indicados pelos chefes tribais.
     ­ S£o  as  regras da  Guerra  ­  explicou o  L­der  da Caravana.  Desta
maneira, os o¡sis n£o poderiam abrigar ex©rcitos ou guerreiros.
     Para  surpresa  do  rapaz,  o Inglªs tirou  de  seu  casaco um revãlver
cromado e entregou ao homem que recolhia as armas.
     ­ Para que um revãlver? ­ perguntou.
     ­  Para  aprender  a confiar  nos homens ­ respondeu o  Inglªs.  Estava
contente por haver chegado ao final de sua busca.
     O rapaz, por©m, pensava em seu tesouro. Quanto mais perto ele ficava de
seu sonho, mais as  coisas se tornavam dif­ceis.  N£o funcionava mais aquilo
que  o velho rei havia chamado de "sorte de principiante". O que funcionava,
sabia ele, era o teste da persistªncia  e da coragem de quem busca sua Lenda
Pessoal. Por isso ele n£o podia se apressar, nem ficar impaciente. Se agisse
assim, ia terminar sem ver os sinais que Deus havia posto no seu caminho.
     "Deus colocou no meu caminho", pensou  o rapaz, surpreso consigo mesmo.
At© aquele momento considerava os sinais como uma coisa  do mundo. Algo como
comer ou dormir, algo  como procurar um amor, ou conseguir um emprego. Nunca
tinha  pensado  que  esta  era uma  linguagem que Deus  estava  usando  para
mostrar-lhe o que devia fazer.
     "N£o fique impaciente", repetiu o rapaz para  si  mesmo. "Como disse  o
cameleiro, coma na hora de comer. E caminhe na hora de caminhar".



     No primeiro dia todos dormiram de cansa§o, inclusive o Inglªs. O  rapaz
havia ficado longe dele, numa tenda com outros cinco rapazes de  idade quase
igual a sua. Eram gente do  deserto, e  queriam saber histãrias  das grandes
cidades.
     O  rapaz falou  de  sua  vida  como pastor, e ia come§ar  a contar  sua
experiªncia na loja de cristais, quando o Inglªs entrou na tenda.
     ­ Procurei-o a manh£  inteira ­  disse, enquanto carregava o rapaz para
fora. ­ Preciso que me ajude a descobrir onde mora o Alquimista.
     Primeiro os dois tentaram encontrar sozinhos. Um Alquimista devia viver
de maneira diferente  das outras pessoas  do o¡sis, e em sua tenda era muito
prov¡vel que um forno estivesse sempre  aceso. Andaram bastante, at© ficarem
convencidos que o o¡sis era muito maior do que podiam imaginar, e com muitas
centenas de tendas.
     ­  Perdemos  quase  o dia inteiro ­  disse o  Inglªs, sentando-se com o
rapaz perto de um dos po§os do o¡sis.
     ­ Talvez seja melhor perguntarmos ­ disse o rapaz.
     O Inglªs  n£o queria  contar aos outros sua presen§a no O¡sis,  e ficou
bastante  indeciso. Mas  acabou  concordando e  pediu ao  rapaz, que  falava
melhor o ¡rabe,  para  fazer isto. O rapaz  se  aproximou  de uma mulher que
havia chegado no po§o para encher de ¡gua um saco de pele de carneiro.
     ­ Boa  tarde, senhora. Gostaria de saber onde vive um  Alquimista neste
o¡sis ­ perguntou o rapaz.
     A mulher disse que jamais havia ouvido falar disso, e foi imediatamente
embora. Antes, por©m, avisou ao rapaz que n£o deveria conversar com mulheres
vestidas de preto, porque  eram  mulheres casadas. Ele tinha que respeitar a
Tradi§£o.
     O  Inglªs ficou decepcionad­ssimo. Tinha  feito  toda a  sua viagem por
nada. O rapaz tamb©m ficou triste; seu companheiro tamb©m estava em busca de
sua Lenda Pessoal. E quando algu©m faz isto, o Universo todo se esfor§a para
que a  pessoa consiga o que deseja, dissera o velho rei. Ele n£o podia estar
enganado.
     ­ Eu  nunca tinha ouvido falar antes  de alquimistas ­ disse o rapaz. ­
Sen£o tentaria ajud¡-lo.
     Alguma coisa brilhou nos olhos do Inglªs.
     ­ ‰  isto! Talvez ningu©m aqui saiba o que  © um  alquimista!  Pergunte
pelo homem que cura todas as doen§as da aldeia!
     V¡rias mulheres vestidas de preto vieram buscar ¡gua no po§o, e o rapaz
n£o conversou com elas, por mais que o Inglªs  insistisse. At© que um  homem
se aproximou.
     ­ Conhece algu©m que cura as doen§as da aldeia? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Allah cura todas as doen§as, ­ disse o homem, visivelmente  apavorado
com os estrangeiros. ­ Vocªs est£o em busca de bruxos.
     E depois de dizer alguns vers­culos do Alcor£o, seguiu seu caminho.
     Um outro homem se aproximou. Era mais velho, e trazia apenas um pequeno
balde. O rapaz repetiu a pergunta.
     ­ Por que vocªs querem conhecer este tipo de homem? ­ respondeu o ¡rabe
com outra pergunta.
     ­ Porque  meu amigo  viajou  muitos  meses para  encontr¡-lo ­ disse  o
rapaz.
     ­ Se este homem existe no  o¡sis, deve  ser  muito  poderoso ­  disse o
velho, depois  de  pensar por  alguns  instantes. ­ Nem  os  chefes  tribais
conseguiriam vª-lo quando precisam. Sã quando ele assim determinasse.


     "Esperem o final da guerra. E ent£o partam com a caravana. N£o procurem
entrar na vida do o¡sis", concluiu, se afastando.
     Mas o Inglªs ficou exultante. Estavam na pista certa.
     Finalmente surgiu uma mo§a que  n£o estava vestida de negro.  Trazia um
c¢ntaro  no  ombro,  e a cabe§a  coberta  com  um  v©u,  mas  tinha  o rosto
descoberto. O rapaz aproximou-se para perguntar sobre o Alquimista.

     Ent£o foi como se o tempo parasse, e a  Alma do Mundo surgisse com toda
a for§a  diante  do rapaz.  Quando ele olhou seus  olhos negros, seus l¡bios
indecisos  entre  um  sorriso  e  o  silªncio,  ele  entendeu a  parte  mais
importante e mais s¡bia da Linguagem que  o  mundo  falava,  e que todas  as
pessoas  da terra eram  capazes de  entender  em  seus  cora§åes. E isto era
chamado de  Amor, uma  coisa  mais antiga que  os  homens  e  que  o prãprio
deserto,  e que no entanto ressurgia  sempre com a mesma for§a onde quer que
dois pares de  olhos  se  cruzassem como se  cruzaram aqueles  dois pares de
olhos diante de um  po§o. Os l¡bios finalmente resolveram dar  um sorriso, e
aquilo era um sinal, o sinal que ele esperou  sem saber durante  tanto tempo
em sua vida, que tinha buscado  nas ovelhas e nos  livros, nos cristais e no
silªncio do deserto.
     Ali  estava a pura  linguagem  do  mundo,  sem  explica§åes,  porque  o
Universo  n£o precisava de  explica§åes para continuar seu caminho no espa§o
sem  fim.  Tudo o que o rapaz entendia naquele momento era que estava diante
da mulher de sua  vida, e  sem  nenhuma necessidade  de  palavras, ela devia
saber disto tamb©m.  Tinha mais certeza  disto do que  de  qualquer coisa no
mundo, mesmo que seus pais, e os pais de seus pais dissessem que era preciso
namorar, noivar, conhecer  a pessoa e ter dinheiro antes  de se casar.  Quem
dizia isto talvez  jamais tivesse conhecido a  linguagem  universal,  porque
quando  se  mergulha nela, © f¡cil entender  que sempre existe  no mundo uma
pessoa que espera  a  outra,  seja no  meio de um  deserto, seja no meio das
grandes cidades.  E  quando  estas  pessoas  se  cruzam,  e  seus  olhos  se
encontram, todo  o passado e todo o futuro perde qualquer  import¢ncia, e sã
existe  aquele momento,  e aquela certeza  incr­vel de que  todas  as coisas
debaixo do sol foram escritas pela mesma M£o.  A M£o que  desperta o Amor, e
que  fez  uma alma gªmea  para  cada pessoa  que trabalha, descansa  e busca
tesouros debaixo  do sol. Porque  sem isto n£o haveria qualquer sentido para
os sonhos da ra§a humana.
     "Maktub", pensou o rapaz.

     O Inglªs levantou-se de onde estava sentado e sacudiu o rapaz.
     ­ Vamos, pergunte a ela!
     O rapaz se aproximou da mo§a. Ela tornou a sorrir. Ele sorriu tamb©m.
     ­ Como vocª se chama? ­ perguntou.
     ­ Me chamo F¡tima ­ disse a mo§a, olhando para o ch£o.
     ­ ‰ um nome que algumas mulheres tem na terra de onde venho.
     ­  ‰  o  nome da  filha do Profeta ­  disse F¡tima. ­ Os guerreiros  os
levaram para l¡.
     A mo§a delicada falava de guerreiros com orgulho. Ao  seu lado o Inglªs
insistia, e o rapaz perguntou pelo homem que curava todas as doen§as.
     ­ ‰ um homem que conhece os segredos do mundo. Conversa com os djins do
deserto ­ ela falou.
     Os  djins eram os demänios. E a mo§a apontou para  o  sul, para o lugar
onde aquele estranho homem morava.


     Depois encheu seu c¢ntaro e partiu. O Inglªs partiu tamb©m, em busca do
Alquimista. E o  rapaz  ficou por  muito tempo  sentado  ao  lado  do  po§o,
entendendo  que  algum  dia  o Levante havia deixado em seu rosto o  perfume
daquela mulher, e que j¡ a amava antes mesmo de saber que ela existia, e que
seu amor por ela faria com que encontrasse todos os tesouros do mundo.






     No dia seguinte o rapaz voltou para  o po§o,  para esperar a mo§a. Para
sua surpresa, encontrou l¡ o Inglªs, olhando pela primeira vez o deserto.
     ­ Esperei a tarde e a noite ­ disse o Inglªs. ­ Ele chegou junto com as
primeiras estrelas.  Eu lhe contei o  que  estava  procurando. Ent£o  ele me
perguntou se j¡ havia transformado chumbo em ouro. Eu disse que era isto que
queria aprender.
     "Ele me mandou tentar. Foi tudo que me disse: v¡ tentar".
     O rapaz ficou quieto. O  Inglªs havia viajado tanto para ouvir o que j¡
sabia. A­ ele  se  lembrou de que tinha dado seis ovelhas ao  velho rei pela
mesma raz£o.
     ­ Ent£o tente ­ disse para o Inglªs.
     ­ ‰ isto que vou fazer. E vou come§ar agora.
     Pouco depois que o Inglªs saiu, F¡tima chegou para apanhar ¡gua com seu
c¢ntaro.
     ­ Vim dizer-lhe uma coisa simples  ­ falou o rapaz. ­ Eu quero que vocª
seja minha mulher. Eu te amo.
     A mo§a deixou que seu c¢ntaro derramasse a ¡gua.
     ­  Vou  esper¡-la todos os  dias aqui. Cruzei o deserto  em busca de um
tesouro que se encontra perto  das pir¢mides.  A  guerra foi  para  mim  uma
maldi§£o. Agora ela © uma bªn§£o, porque me deixa perto de vocª.
     ­ A guerra um dia vai acabar ­ disse a mo§a.
     O rapaz olhou as tamareiras do o¡sis. Havia sido pastor. E ali existiam
muitas ovelhas. F¡tima era mais importante que o tesouro.
     ­ Os guerreiros buscam seus  tesouros ­ disse a mo§a, como se estivesse
adivinhando o  pensamento  do rapaz. ­  E as mulheres do deserto tªm orgulho
dos seus guerreiros.
     Depois tornou a encher seu c¢ntaro, e foi embora.

     Todos  os dias o rapaz ia para o po§o esperar F¡tima. Contou-lhe de sua
vida de pastor,  do rei, da loja de  cristais. Ficaram amigos, e com exce§£o
quinze minutos que passava  com ela, o resto  do dia custava infinitamente a
passar. Quando  j¡ estava  h¡  quase um  mªs no o¡sis, o  L­der  da Caravana
convocou a todos para uma reuni£o.
     ­ N£o sabemos quando a guerra vai acabar, e n£o podemos seguir viagem ­
disse.
     ­ Os combates devem durar por  muito tempo, talvez muitos anos. Existem
guerreiros fortes e valentes de ambos os lados, e existe a honra de combater
em ambos os  ex©rcitos. N£o  ©  uma guerra  entre bons e maus. ‰ uma  guerra
entre for§as  que  lutam pelo  mesmo  poder, e quando este  tipo  de batalha
come§a, demora mais que as outras ­ porque Allah est¡ dos dois lados.
     As pessoas se  dispersaram.  O rapaz tornou a  encontrar-se  com F¡tima
aquela tarde, e contou da reuni£o.
     ­ No segundo dia que nos encontramos ­ disse F¡tima ­ vocª me falou  do
seu  amor. Depois me  ensinou  coisas belas, como  a  Linguagem e a Alma  do
Mundo. Tudo isto me faz aos poucos ser parte de vocª.
     O rapaz ouvia  sua  voz, e achava  mais bela que o barulho do vento nas
folhas das tamareiras.


     ­ Faz  muito tempo, que estive aqui neste po§o esperando por vocª.  N£o
consigo me lembrar  do meu  passado, da  Tradi§£o, da maneira  que os homens
esperam  que se comportem as mulheres do deserto. Desde crian§a  eu  sonhava
que o  deserto  ia me trazer o maior presente  de minha vida. Este  presente
chegou afinal, e © vocª.
     O rapaz  pensou  em  tocar sua m£o. Mas  F¡tima  segurava as  al§as  do
c¢ntaro.
     ­ Vocª me falou dos  seus sonhos,  do velho rei, e do  tesouro. Vocª me
falou dos sinais. Ent£o n£o tenho  medo de nada,  porque foram estes  sinais
que me trouxeram vocª.  E eu  sou parte do seu sonho, da sua Lenda  Pessoal,
como vocª costuma chamar.
     "Por isso quero que siga em  dire§£o  ao que  veio buscar. Se tiver que
esperar o final da  guerra, muito  bem. Mas se tiver que seguir antes, v¡ em
dire§£o   sua lenda. As dunas mudam com o vento, mas o deserto  permanece no
mesmo. Assim ser¡ com nosso amor.
     "Maktub" ­ disse. "Se eu for parte de sua Lenda, vocª voltar¡ um dia".

     O rapaz saiu  triste do  encontro com F¡tima. Ele se  lembrava de muita
gente que havia  conhecido.  Os pastores casados tinham muita dificuldade em
convencer suas esposas  de  que precisavam andar pelos campos. O amor exigia
estar junto da pessoa amada.
     No dia seguinte ele contou tudo isto   F¡tima.
     ­  O deserto leva nossos homens e nem  sempre os traz de volta ­  disse
ela. ­  Ent£o nos acostumamos com  isto. E eles passam a existir nas  nuvens
sem chuva,  nos animais que se escondem entre  as pedras, na  ¡gua  que  sai
generosa da terra. Eles passam a fazer parte de tudo, passam a ser a Alma do
Mundo.
     "Alguns  retornam. E  ent£o  todas as  outras mulheres  ficam  felizes,
porque  os  homens que elas  esperam  tamb©m podem voltar  um dia.  Antes eu
olhava estas mulheres, e invejava sua felicidade. Agora vou ter  tamb©m  uma
pessoa para esperar.
     "Sou  uma  mulher do deserto e me  orgulho disto.  Quero que  meu homem
tamb©m caminhe livre como o  vento que move as dunas. Quero tamb©m poder ver
meu homem nas nuvens, nos animais e na ¡gua."

     O rapaz foi procurar o  Inglªs. Queria  contar-lhe  sobre F¡tima. Ficou
surpreso quando  viu que o  Inglªs havia constru­do um pequeno forno ao lado
de  sua tenda. Era  um forno estranho, com um frasco transparente em cima. O
Inglªs alimentava o fogo com lenha, e olhava  o deserto. Seus olhos pareciam
ter mais brilho quando passava o tempo todo lendo livros.
     ­ Esta © a  primeira fase do  trabalho ­  disse o  Inglªs.  ­ Tenho que
separar  o  enxofre impuro. Para isto, nao posso ter  medo  de falhar. O meu
medo de falhar foi que me impediu de tentar a Grande Obra at© hoje.  ‰ agora
que estou come§ando o que podia ter come§ado h¡ dez anos atr¡s. Mas me sinto
feliz de n£o ter esperado vinte anos para isto.
     E continuou a alimentar o  fogo e  a olhar o deserto. O  rapaz ficou ao
seu lado por algum tempo, at© que o deserto come§ou a ficar rosado com a luz
do entardecer. Ent£o ele sentiu uma imensa vontade de ir at© l¡, para ver se
o silªncio conseguia responder suas perguntas.
     Caminhou sem destino por algum tempo, mantendo as tamareiras  do  o¡sis
ao alcance de seus olhos. Escutava o vento, e sentia as pedras sob seus p©s.
€s vezes  encontrava  alguma concha,  e sabia que aquele deserto,  num tempo
remoto,  havia sido um grande mar. Depois  sentou-se  numa pedra e deixou-se
hipnotizar pelo horizonte que existia


     na sua frente. N£o conseguia entender o Amor sem o sentimento de posse;
mas F¡tima era uma mulher do deserto, e se  algu©m  podia lhe ensinar  isto,
era o deserto.
     Ficou assim, sem pensar em nada, at© que pressentiu  um movimento sobre
sua  cabe§a. Olhando para  o  c©u,  viu que eram dois gaviåes,  voando muito
alto.
     O  rapaz  come§ou a olhar os gaviåes, e os desenhos que eles  faziam no
c©u. Parecia uma coisa desordenada, entretanto,  tinham algum sentido para o
rapaz.  Apenas n£o conseguia compreender seu significado. Decidiu  ent£o que
devia acompanhar com os olhos o movimento dos p¡ssaros, e talvez pudesse ler
alguma coisa. Talvez o deserto pudesse lhe explicar o amor sem posse.
     Come§ou  a sentir sono.  Seu  cora§£o pediu para que  n£o  dormisse: ao
inv©s disto, devia  se entregar. "Estava penetrando na Linguagem do Mundo, e
tudo  nesta  terra faz  sentido, at©  mesmo  o  väo  de  gaviåes", disse.  E
aproveitou para  agradecer  pelo fato de estar cheio de amor por uma mulher.
"Quando se ama, as coisas fazem ainda mais sentido", pensou.
     De repente, um gavi£o deu um r¡pido mergulho no  c©u e atacou o  outro.
Quando  fez este  movimento, o  rapaz  teve  uma  sêbita e r¡pida  vis£o: um
ex©rcito, de espadas desembainhadas, entrando no o¡sis. A vis£o logo  sumiu,
mas aquilo lhe deixou  sobressaltado. Havia ouvido falar das  miragens, e j¡
havia  visto algumas: eram desejos que  se  materializavam  sobre a areia do
deserto. Entretanto, ele n£o desejava um ex©rcito invadindo o o¡sis.
     Pensou  em esquecer aquilo e  voltar    sua medita§£o. Tentou novamente
concentrar-se no deserto cär-de-rosa e nas  pedras. Mas  alguma coisa em seu
cora§£o n£o o deixava quieto.
     "Siga  sempre  os sinais", dissera o velho  rei.  E  o rapaz pensou  em
F¡tima. Lembrou-se do que havia  visto,  e pressentiu que  estava prãximo de
acontecer.
     Com  muita  dificuldade,  saiu  do  transe   em   que  havia   entrado.
Levantou-se,  e come§ou  a caminhar  em dire§£o   s tamareiras. Mais uma vez
percebia as muitas linguagens das coisas: desta vez, o deserto era seguro, e
o o¡sis se transformara em perigo.

     O cameleiro  estava sentado aos p©s de  uma tamareira, tamb©m olhando o
pär-do-sol. Viu quando o rapaz surgiu por detr¡s de uma das dunas.
     ­ Um ex©rcito se aproxima ­ disse. ­ Tive uma vis£o.
     ­ O  deserto enche  de  visåes  o cora§£o  de um  homem ­  respondeu  o
cameleiro.
     Mas o rapaz lhe contou dos gaviåes: estava olhando seu väo quando tinha
mergulhado de repente na Alma do Mundo.
     O  cameleiro ficou quieto; entendia o que o rapaz estava falando. Sabia
que  qualquer coisa  na face da  terra  pode  contar a  histãria de todas as
coisas. Se abrisse  um  livro em qualquer  p¡gina,  ou olhasse  as m£os  das
pessoas, ou cartas de baralho, ou väo dos p¡ssaros, ou  seja l¡ o que fosse,
qualquer pessoa  iria encontrar  um la§o  com a coisa que estava vivendo. Na
verdade, n£o eram as coisas que mostravam nada; eram as pessoas que, olhando
para as coisas, descobriam a maneira de penetrar na Alma do Mundo.
     O  deserto  estava  cheio de homens que ganhavam a  vida porque  podiam
penetrar  com facilidade na Alma do  Mundo. Eram conhecidos por Adivinhos, e
temidos  por  mulheres  e velhos.  Os Guerreiros  raramente  os consultavam,
porque era imposs­vel entrar numa batalha  sabendo quando  se vai morrer. Os
Guerreiros preferiam o sabor  da  luta e a emo§£o do  desconhecido; o futuro
havia sido escrito por Allah, e o que quer que Ele


     tivesse escrito, era sempre para o  bem do  homem. Ent£o os  Guerreiros
viviam  apenas o  presente, porque o presente era cheio de surpresas, e eles
tinham  que  prestar  aten§£o em  muitas coisas:  onde  estava  a  espada do
inimigo,  onde estava seu  cavalo,  qual o  prãximo golpe que devia desferir
para salvar a vida.
     O cameleiro n£o era Guerreiro, e  j¡ havia consultado alguns adivinhos.
Muitos disseram coisas certas, outros disseram coisas erradas.
     At© que um  deles, o  mais velho  (e o mais temido), perguntou porque o
cameleiro estava t£o interessado em saber o futuro.
     ­  Para que possa fazer as coisas ­ respondeu o  cameleiro. ­ E mudar o
que n£o gostaria que acontecesse.
     ­ Ent£o deixar¡ de ser seu futuro ­ respondeu o adivinho.
     ­ Talvez ent£o eu queira saber o futuro para me preparar para as coisas
que vir£o.
     ­ Se forem coisas  boas,  isto ser¡ uma  agrad¡vel  surpresa ­ disse  o
adivinho. ­ Se forem coisas ruins, vocª  estar¡  sofrendo muito  antes delas
acontecerem.
     ­ Quero saber o futuro  porque sou  um homem ­ disse o cameleiro para o
adivinho. E os homens vivem em fun§£o do seu futuro.
     O adivinho  ficou quieto por algum tempo. Ele era especialista no  jogo
de varetas, que eram atiradas no ch£o e interpretadas da maneira  que ca­am.
Naquele  dia ele n£o jogou as varetas.  Envolveu-as  num  len§o  e  tornou a
colocar no bolso.
     ­ Ganho a vida  adivinhando o futuro das pessoas ­ disse ele. ­ Conhe§o
a ciªncia das varetas, e sei como utiliz¡-la para penetrar neste espa§o onde
tudo  est¡  escrito.  Ali posso  ler  o passado,  descobrir  o  que  j¡  foi
esquecido, e entender os sinais do presente.
     "Quando as  pessoas me consultam, eu  n£o estou  lendo o  futuro; estou
adivinhando o futuro. Porque o futuro pertence a Deus, e ele sã o revela  em
circunst¢ncias  extraordin¡rias.  E como  consigo adivinhar o  futuro? Pelos
sinais  do presente.  No  presente ©  que  est¡  o segredo; se vocª  prestar
aten§£o no presente, poder¡ melhor¡-lo. E se vocª melhorar o presente, o que
acontecer¡ depois tamb©m ser¡ melhor.  Esque§a o futuro e  viva cada  dia de
sua vida nos  ensinamentos da Lei, e na confian§a de que Deus cuida dos seus
filhos. Cada dia traz em si a Eternidade".
     O cameleiro quis saber quais as circunst¢ncias em que Deus permitia ver
o futuro:
     ­ Quando  Ele mesmo o mostra. E Deus mostra o futuro  raramente, e  por
uma ênica raz£o: © um futuro que foi escrito para ser mudado.

     Deus  tinha  mostrado um futuro  ao rapaz,  pensou  o cameleiro. Porque
queria que o rapaz fosse o Seu instrumento.
     ­  V¡  falar com os chefes  tribais  ­ disse  o  cameleiro. ­ Conte dos
guerreiros que se aproximam.
     ­ Eles v£o rir de mim.
     ­ S£o homens do deserto,  e os homens do deserto est£o  acostumados com
os sinais.
     ­ Ent£o j¡ devem saber.
     ­ N£o est£o preocupados  com  isto. Acreditam que se tiverem que  saber
algo que Allah deseje lhe contar, alguma pessoa lhes dir¡ isto. J¡ aconteceu
muitas vezes antes. Mas hoje, esta pessoa © vocª.
     O rapaz pensou em F¡tima. E resolveu ir ver os chefes tribais.




     ­ Trago sinais  do deserto ­ disse  ao  guarda que ficava  na  porta da
imensa tenda branca no centro do o¡sis. ­ Quero ver os chefes.
     O guarda n£o disse nada. Entrou e  demorou-se muito  l¡  dentro. Depois
saiu com um ¡rabe jovem, vestido de branco e ouro. O rapaz contou ao jovem o
que havia visto. Ele pediu que esperasse um pouco e tornou a entrar.
     A noite caiu. Entraram e sa­ram v¡rios ¡rabes  e mercadores. Aos poucos
as fogueiras  foram se apagando, e  o  o¡sis come§ou a  ficar t£o silencioso
como o deserto. Sã a luz da grande tenda continuava acesa. Durante todo este
tempo,  o  rapaz pensava em F¡tima,  ainda  sem entender a  conversa daquela
tarde.
     Finalmente,  depois de muitas horas  de espera, o  guarda mandou  que o
rapaz entrasse.
     O que viu deixou-o  extasiado. Nunca  poderia imaginar  que, no meio do
deserto, existisse uma tenda como aquela.  O ch£o estava coberto com os mais
belos  tapetes que j¡  havia  pisado,  e do teto  pendiam lustres  de  metal
amarelo  trabalhado,  coberto  de  velas acessas.  Os chefes tribais estavam
sentados no fundo da tenda, em semic­rculo, descansando seus bra§os e pernas
em  almofadas de  seda com  ricos  bordados.  Criados  entravam e  sa­am com
bandejas de prata  cheias  de especiarias e ch¡.  Alguns  se encarregavam de
manter acesas as  brasas dos  narguil©s. Um suave  perfume  de fumo enchia o
ambiente.
     Haviam  oito  chefes,  mas o  rapaz  logo  percebeu  quem  era  o  mais
importante:  um  ¡rabe  vestido  de  branco  e ouro,  sentado no  centro  do
semic­rculo.  Ao  seu  lado estava  o jovem  ¡rabe com quem tinha conversado
antes.
     ­ Quem © o estrangeiro que fala de sinais?  ­ perguntou  um dos chefes,
olhando para ele.
     ­ Eu sou ­ respondeu. E contou o que havia visto.
     ­ E  por que o deserto ia contar  isto a um estranho, quando  sabe  que
estamos h¡ v¡rias gera§åes aqui? ­ disse outro chefe tribal.
     ­ Porque meus olhos ainda n£o se acostumaram com o  deserto ­ respondeu
o rapaz. ­  E  eu posso  ver  coisas  que  os  olhos habituados  demais  n£o
conseguem mais ver.
     "‰ porque eu sei da Alma do Mundo", pensou consigo mesmo. Mas n£o falou
nada, porque os ¡rabes n£o acreditam nestas coisas.
     ­  O  O¡sis  © um  terreno neutro. Ningu©m  ataca um  O¡sis  ­ disse um
terceiro chefe.
     ­ Eu conto apenas o que vi. Se n£o quiserem acreditar, n£o fa§am nada.
     Um completo  silªncio  abateu-se sobre a tenda, seguido de uma exaltada
conversa entre os chefes tribais. Falavam num dialeto ¡rabe que o rapaz  n£o
entendia,  mas  quando ele  fez  men§£o  de  ir embora, um guarda disse para
ficar.  O  rapaz come§ou a sentir  medo; os sinais diziam que  havia  alguma
coisa errada. Lamentou haver conversado com o cameleiro a respeito.
     De  repente,  o  velho  que estava  no  centro  deu  um  sorriso  quase
impercept­vel, e o rapaz  tranqìilizou-se.  O velho n£o havia participado da
discuss£o, e n£o  dissera uma  palavra  at© aquele momento.  Mas o rapaz  j¡
estava acostumado com a  Linguagem do Mundo,  e pode sentir uma vibra§£o  de
Paz cruzando a tenda de ponta  a ponta. Sua  intui§£o dizia que havia  agido
corretamente em vir.


     A  discuss£o  acabou. Ficaram em  silªncio  por algum tempo,  ouvindo o
velho. Depois, ele se virou para o rapaz: desta vez seu rosto estava frio  e
distante.
     ­  H¡ dois mil anos,  numa terra distante, jogaram num  po§o e venderam
como  escravo um homem que  acreditava em sonhos ­ disse o  velho.  ­ Nossos
mercadores o compraram e o trouxeram  para o Egito. E todos nãs sabemos que,
quem acredita em sonhos, tamb©m sabe interpret¡-los.
     "Embora nem sempre consiga realiz¡-los", pensou  o  rapaz, lembrando-se
da velha cigana.
     ­  Por causa dos sonhos do faraã com vacas magras e  gordas, este homem
livrou o Egito da fome.  Seu nome era Jos©.  Era tamb©m um  estrangeiro numa
terra estrangeira, como vocª, e devia ter mais ou menos a sua idade.
     O silªncio continuou. Os olhos do velho se mantinham frios.
     ­ Sempre seguimos a Tradi§£o. A Tradi§£o salvou o Egito da fome naquela
©poca, e o fez o mais rico entre os povos. A Tradi§£o ensina  como os homens
devem atravessar o deserto e  casar suas filhas. A Tradi§£o diz que um O¡sis
© um terreno neutro, porque ambos os lados tem O¡sis, e s£o vulner¡veis.
     Ningu©m disse qualquer palavra enquanto o velho falava.
     ­ Mas a Tradi§£o diz tamb©m para acreditarmos nas mensagens do deserto.
Tudo que sabemos foi o deserto que nos ensinou.
     O velho fez um  sinal e todos os ¡rabes se levantaram. A reuni£o estava
para terminar. Os narguil©s foram  apagados, e  os guardas  se  colocaram em
posi§£o de sentido. O rapaz preparou-se para sair,  mas o  velho falou ainda
mais uma vez:
     ­ Amanh£  nãs vamos romper um acordo que diz que ningu©m no  o¡sis pode
portar  armas. Durante o dia inteiro  aguardaremos os inimigos. Quando o sol
descer  no  horizonte,  os  homens  me devolver£o as armas.  Para  cada  dez
inimigos mortos, vocª receber¡ uma moeda de ouro.
     "Entretanto, as armas n£o podem sair  do seu lugar sem experimentarem a
batalha. S£o caprichosas  como o deserto,  e se as acostumamos com  isto, da
prãxima vez podem  ter pregui§a de disparar.  Se nenhuma  delas  tiver  sido
utilizada amanh£, pelo menos uma ser¡ usada em vocª."




     O o¡sis estava  iluminado  apenas pela  lua  cheia quando o rapaz saiu.
Eram vinte minutos de caminhada at© sua tenda, e ele come§ou a andar.
     Estava  assustado  com  tudo que havia  acontecido. Tinha mergulhado na
Alma do  Mundo, e o pre§o  por  acreditar naquilo era a sua vida. Uma aposta
alta. Mas tinha apostado alto desde o dia  em que havia vendido suas ovelhas
para seguir sua  Lenda  Pessoal. E como dizia o cameleiro, morrer amanh£ era
t£o bom  como  morrer em  qualquer outro  dia.  Todo dia  era feito para ser
vivido  ou  para  abandonar  o  mundo. Tudo dependia apenas de  uma palavra:
"Maktub".
     Caminhou em silªncio. N£o estava arrependido. Se morresse amanh£, seria
porque Deus  n£o  estava com  vontade de mudar o  futuro.  Mas teria morrido
depois  de  haver cruzado  o  estreito, trabalhado em uma  loja de cristais,
conhecido  o  silªncio  do  deserto  e  os olhos  de  F¡tima.  Tinha  vivido
intensamente cada um dos seus dias,  desde que havia sa­do de casa, h¡ tanto
tempo atr¡s. Se morresse amanh£, seus  olhos teriam visto  muito mais coisas
do que os olhos dos outros pastores, e o rapaz tinha orgulho disto.
     De repente ouviu um estrondo, e foi jogado subitamente por terra, com o
impacto de um vento que n£o conhecia. O lugar encheu-se de poeira, que quase
cobriu  a lua. Na sua frente, um enorme  cavalo branco empinou  soltando  um
relincho aterrador.
     O rapaz mal podia ver o que se passava, mas quando a poeira assentou um
pouco, sentiu  um pavor que jamais havia sentido  antes.  Em  cima do cavalo
estava  um  cavaleiro todo  vestido  de  negro,  com um falc£o em seu  ombro
esquerdo. Usava um turbante e um len§o que lhe cobria todo o rosto, deixando
apenas os olhos  de fora. Parecia  o mensageiro do deserto, mas sua presen§a
era mais forte do que todas as pessoas que havia conhecido na vida.
     O  estranho  cavaleiro puxou a enorme espada curva  que trazia presa   
sela. O a§o brilhou com a luz da lua.
     ­ Quem ousou ler o väo  dos gaviåes?  ­ perguntou com uma voz t£o forte
que pareceu ecoar entre as cinqìenta mil tamareiras do Al-fayoum.
     ­  Eu ousei  ­ disse o  rapaz.  Lembrou-se imediatamente da  imagem  de
Santiago Matamouros do seu cavalo branco  com  os infi©is sob as patas.  Era
exatamente assim. Sã que agora a situa§£o estava invertida.
     ­ Eu  ousei ­ repetiu  o rapaz, e abaixou a cabe§a para receber o golpe
da espada. ­ Muitas vidas ser£o salvas, porque vocªs n£o contavam com a Alma
do Mundo.
     A espada, por©m,  n£o  desceu r¡pido.  A m£o do  estranho foi abaixando
lentamente, at©  que a ponta  da l¢mina  tocou na testa  do  rapaz. Era  t£o
afiada que saiu uma gota de sangue.
     O cavaleiro estava  completamente imãvel. O rapaz tamb©m. N£o pensou um
minuto  sequer em fugir. Dentro  do seu cora§£o,  uma estranha alegria tomou
conta dele: ia  morrer por  sua Lenda Pessoal. E  por F¡tima. Os sinais eram
verdadeiros, enfim.  Ali  estava  o  Inimigo,  e por  causa  disto  ele  n£o
precisava se preocupar com a morte, porque havia uma Alma do Mundo. Daqui  a
pouco ele estaria  fazendo parte dela. E amanh£  o Inimigo faria  parte dela
tamb©m.
     O estranho, por©m, apenas mantinha a espada em sua testa.
     ­ Por que vocª leu o väo dos p¡ssaros?
     ­  Li apenas  o que os  p¡ssaros queriam contar. Eles  querem  salvar o
o¡sis, e vocªs morrer£o. O o¡sis tem mais homens que vocªs.
     A espada continuava em sua testa.


     ­ Quem © vocª para mudar o destino de Allah?
     ­ Allah fez os ex©rcitos, e fez tamb©m os  p¡ssaros. Allah me mostrou a
linguagem dos p¡ssaros. Tudo foi escrito  pela mesma  M£o,  ­ disse o rapaz,
lembrando as palavras do cameleiro.
     O estranho  finalmente retirou a  espada  da  testa. O rapaz  sentiu um
certo al­vio. Mas n£o podia fugir.
     ­ Cuidado com  as adivinha§åes ­ disse  o estranho. ­  Quando as coisas
est£o escritas, n£o h¡ como evit¡-las.
     ­  Apenas vi  um ex©rcito ­ disse o rapaz. ­ N£o  vi o resultado de uma
batalha.
     O cavaleiro parecia contente com a resposta. Mas mantinha a  espada  na
sua m£o.
     ­ O que faz um estrangeiro numa terra estrangeira?
     ­ Busco minha Lenda Pessoal. Algo que vocª n£o entender¡ nunca.
     O cavaleiro colocou a espada na bainha, e o falc£o no seu  ombro deu um
grito estranho. O rapaz come§ou a relaxar.
     ­ Precisava testar sua coragem ­ disse o estranho. ­ A coragem ©  o dom
mais importante para quem busca a Linguagem do Mundo.
     O rapaz ficou surpreso. Aquele homem estava falando em coisas que pouca
gente conhecia.
     ­  ‰ preciso  n£o  relaxar  nunca, mesmo  tendo  chegado  t£o  longe  ­
continuou ele.  ­ ‰ preciso amar o deserto, mas jamais confiar  inteiramente
nele. Porque o deserto © uma prova para todos os homens: testa cada passo, e
mata quem se distrai.
     Suas palavras lembravam as palavras do velho rei.
     ­ Se os guerreiros chegarem, e sua cabe§a ainda estiver sobre o pesco§o
depois que o sol morrer, me procure ­ disse o estranho.
     A mesma m£o que havia segurado a espada, empunhou  um chicote. O cavalo
empinou de novo, levantando uma nuvem de poeira.
     ­ Onde vocª mora? ­ gritou o rapaz, enquanto o cavaleiro se afastava.
     A m£o com chicote apontou em dire§£o ao sul.
     O rapaz tinha encontrado o Alquimista.






     Na manh£ seguinte haviam dois mil homens armados entre as tamareiras de
Al-Fayoum. Antes que  o  sol chegasse ao topo do c©u, quinhentos  guerreiros
apareceram no horizonte.  Os cavaleiros  entraram no o¡sis pela parte norte;
parecia uma expedi§£o de paz,  mas haviam  armas  escondidas sobre os mantos
brancos. Quando chegaram  perto da  grande tenda  que  ficava  no centro  de
Al-Fayoum, puxaram as  cimitarras  e as  espingardas. E  atacaram uma  tenda
vazia.
     Os homens do o¡sis cercaram  os  cavaleiros do  deserto.  Em meia  hora
haviam  quatrocentos  e noventa  e  nove  corpos  espalhados  pelo ch£o.  As
crian§as estavam no outro extremo do bosque de tamareiras, e n£o viram nada.
As  mulheres rezavam por seus maridos nas tendas, e tamb©m  n£o viram  nada.
N£o fosse pelos corpos espalhados, o o¡sis parecia viver um dia normal.
     Apenas um guerreiro foi poupado, o comandante do batalh£o. De tarde ele
foi conduzido diante dos  chefes  tribais,  que lhe perguntaram porque havia
rompido a Tradi§£o. O comandante  disse que seus  homens estavam  com fome e
sede,  exaustos por tantos dias de batalha, e haviam decidido tomar um o¡sis
para poder recome§ar a luta.
     O chefe tribal disse que sentia pelos guerreiros, mas a Tradi§£o jamais
pode ser rompida. A  ênica coisa  que  muda no  deserto s£o as dunas, quando
sopra o vento.
     Depois condenou o comandante a uma  morte sem honra. Ao inv©s do a§o ou
da bala de fuzil, ele foi enforcado  numa  tamareira tamb©m morta. Seu corpo
balan§ou com o vento do deserto.
     O chefe tribal chamou o estrangeiro e lhe deu cinqìenta moedas de ouro.
Depois tornou a recordar a histãria de Jos© no Egito, e pediu para que fosse
o Conselheiro do O¡sis.






     Quando  o sol se päs por completo, e as primeiras estrelas come§aram  a
aparecer (n£o brilhavam muito, porque a lua cheia continuava), o rapaz andou
em  dire§£o  ao  sul. Havia apenas  uma tenda,  e alguns ¡rabes que passavam
diziam que  o  lugar  era  cheio de djins.  Mas o rapaz sentou-se e  esperou
durante muito tempo.
     O Alquimista apareceu quando a lua  j¡ estava alto no c©u.  Trazia dois
gaviåes mortos no ombro.
     ­ Aqui estou ­ disse o rapaz.
     ­ N£o devia  estar ­ respondeu o Alquimista. ­ Ou sua Lenda Pessoal era
chegar at© aqui?
     ­ Existe uma guerra entre os cl£s. N£o © poss­vel cruzar o deserto.
     O Alquimista  desceu do seu cavalo,  e fez um sinal  para que  o  rapaz
entrasse com  ele na tenda. Era uma tenda igual a todas as  outras que havia
conhecido no o¡sis ­ exceto a grande  tenda central,  que tinha o  luxo  dos
contos de fada. ­ Ele  procurou os aparelhos  e fornos de alquimia, mas  n£o
encontrou  nada. Havia apenas  uns poucos  livros empilhados,  um fog£o para
cozinhar, e os tapetes cheios de desenhos misteriosos.
     ­ Sente-se, que vou preparar um ch¡  ­ disse o Alquimista.  E comeremos
juntos estes gaviåes.
     O rapaz  suspeitou  que  eram os mesmos p¡ssaros que havia visto no dia
anterior, mas  n£o disse nada. O Alquimista acendeu o fogo, e em pouco tempo
um  delicioso cheiro de carne  enchia a tenda. Era melhor que o perfume  dos
narguil©s.
     ­ Por que quis me ver? ­ disse o rapaz.
     ­ Por causa dos sinais ­ respondeu o Alquimista ­ O vento me contou que
vocª viria. E que ia precisar de ajuda.
     ­  N£o sou eu. ‰ o  outro estrangeiro, o  Inglªs.  Ele  © que  o estava
buscando.
     ­  Ele tem que encontrar outras coisas antes  de me encontrar. Mas est¡
no caminho certo. Passou a olhar o deserto.
     ­ E eu?
     ­ Quando se quer uma coisa,  todo o Universo conspira para que a pessoa
consiga  realizar seu  sonho ­ disse o  Alquimista, repetindo as palavras do
velho  rei.  O  rapaz entendeu.  Outro  homem estava  no seu  caminho,  para
conduzi-lo at© sua Lenda Pessoal.
     ­ Ent£o vocª vai me ensinar?
     ­ N£o. Vocª j¡ sabe de tudo que precisa. Vou apenas lhe fazer seguir em
dire§£o ao seu tesouro.
     ­ Existe uma guerra entre os cl£s. ­ repetiu o rapaz.
     ­ Eu conhe§o o deserto.
     ­  J¡ encontrei meu tesouro. Tenho um camelo,  o dinheiro  das lojas de
cristais,  e  cinqìenta moedas  de ouro.  Posso  ser um homem rico  na minha
terra.
     ­ Mas nada disto est¡ perto das Pir¢mides ­ disse o Alquimista.
     ­ Tenho F¡tima. ‰ um tesouro maior que todo este que consegui juntar.
     ­ Tamb©m ela n£o est¡ perto das Pir¢mides.
     Comeram os  gaviåes  em  silªncio. O  Alquimista  abriu  uma  garrafa e
derramou um  l­quido vermelho  no copo do rapaz. Era vinho, um dos  melhores
vinhos que havia tomado em sua vida. Mas o vinho era proibido pela lei.


     ­ O  mal n£o ©  o que entra na boca do  homem ­ disse o Alquimista. ­ O
mal © o que sai dela.
     O rapaz come§ou  a sentir-se alegre com  o vinho. Mas o  Alquimista lhe
inspirava  medo. Sentaram-se do lado de fora da  tenda, olhando o  brilho da
lua, que ofuscava as estrelas.
     ­ Beba e se distraia um pouco ­ disse o Alquimista, notando que o rapaz
come§ava a ficar cada vez mais  alegre.  ­ Repouse como um guerreiro  sempre
repousa antes do combate. Mas n£o esque§a que o seu cora§£o est¡ onde est¡ o
seu tesouro.  E que  seu tesouro precisa ser encontrado, para  que tudo isto
que vocª descobriu no caminho possa fazer sentido.
     "Amanh£  venda   seu  camelo  e  compre  um   cavalo.  Os  camelos  s£o
trai§oeiros: andam  milhares de passos, e n£o d£o qualquer sinal de cansa§o.
De repente, por©m, ajoelham e morrem. Os cavalos v£o se cansando aos poucos.
E  vocª poder¡ saber sempre o quanto pode pedir deles, ou a ©poca em que v£o
morrer".


     Na  noite  seguinte  o  rapaz  apareceu  com  um  cavalo  na  tenda  do
Alquimista.  Esperou um pouco e ele apareceu, montado em seu animal, e com o
falc£o no ombro esquerdo.
     ­ Mostre-me  a  vida no  deserto  ­ disse o  Alquimista. ­ Sã quem acha
vida, pode encontrar tesouros.
     Come§aram a caminhar pelas areias, com a lua  ainda brilhando sobre  os
dois. "N£o sei se vou conseguir encontrar vida  no deserto", pensou o rapaz.
"N£o conhe§o ainda o deserto".
     Quis virar-se e dizer isto ao Alquimista, mas tinha medo dele. Chegaram
ao lugar de pedras, onde o rapaz havia visto os gaviåes no  c©u; entretanto,
tudo era silªncio e vento.
     ­  N£o consigo encontrar  vida no  deserto ­ disse o rapaz. Sei que ela
existe, mas n£o consigo encontr¡-la.
     ­ A vida atrai a vida ­ respondeu o Alquimista.
     E  o rapaz entendeu. Na mesma hora soltou as r©deas de seu cavalo e ele
saiu livremente pelas pedras e  areia. O Alquimista seguia  em silªncio, e o
cavalo do  rapaz  andou  por quase meia-hora.  J¡  n£o  podiam mais  ver  as
tamareiras do o¡sis, apenas  a lua gigantesca no c©u, e as  rochas brilhando
com a cor  prata. De  repente, num lugar  onde  jamais havia estado antes, o
rapaz notou que seu cavalo parava.
     ­ Aqui existe vida ­ respondeu o rapaz ao  Alquimista. ­ N£o conhe§o  a
linguagem do deserto, mas meu cavalo conhece a linguagem da vida.
     Desmontaram.  O Alquimista n£o disse nada.  Come§ou a olhar  as pedras,
caminhando devagar. De repente, ele parou,  e abaixou-se com  todo  cuidado.
Havia um buraco no ch£o, entre as pedras;  o Alquimista enfiou a m£o  dentro
do buraco,  e depois enfiou o  bra§o at© o ombro.  Alguma coisa se  mexeu l¡
dentro, e os olhos do Alquimista ­ ele sã podia ver os olhos ­ se encolherem
de esfor§o e tens£o.  O  bra§o  parecia  lutar com  o que estava  dentro  do
buraco. Mas num salto que  assustou o rapaz, o Alquimista retirou o bra§o  e
ficou imediatamente de p©. Sua m£o trazia unia serpente agarrada pelo rabo.
     O rapaz tamb©m  deu um salto, sã que  para tr¡s. A cobra debatia-se sem
cessar, emitindo  ru­dos e silvos que feriam o silªncio do  deserto. Era uma
naja, cujo veneno podia matar um homem em poucos minutos.


     "Cuidado com o veneno", chegou a pensar o rapaz. Mas o Alquimista havia
colocado a m£o no buraco, e  j¡ devia  ter  sido mordido.  Seu rosto, por©m,
estava tranqìilo. "O Alquimista tem duzentos anos", havia falado o Inglªs.
     J¡ devia saber como lidar com cobras no deserto.
     O  rapaz viu quando seu companheiro  foi  at© o cavalo e puxou  a longa
espada em forma de meia-lua. Com ela, tra§ou um c­rculo no ch£o  e colocou a
cobra no meio. O animal aquietou-se imediatamente
     ­ Pode ficar tranqìilo ­ disse o Alquimista. ­ Ela n£o vai sair dali. E
vocª descobriu a vida no deserto, o sinal que eu estava precisando.
     ­ Por que isto era t£o importante?
     ­ Porque as Pir¢mides est£o cercadas de deserto.
     O rapaz n£o queria ouvir falar nas Pir¢mides. Seu cora§£o estava pesado
e  triste, desde a  noite anterior. Porque seguir em busca  do  seu tesouro,
significava ter que abandonar F¡tima.
     ­ Vou gui¡-lo pelo deserto ­ falou o Alquimista.
     ­ Quero ficar no  o¡sis ­ respondeu  o rapaz. ­  J¡ encontrei F¡tima. E
ela, para mim, vale mais que o tesouro.
     ­ F¡tima © uma mulher do  deserto ­ disse  o Alquimista. ­ Sabe  que os
homens devem  partir,  para poderem  voltar. Ela  j¡  encontrou seu tesouro:
vocª. Agora espera que vocª encontre o que busca.
     ­ E se eu resolver ficar?
     ­ Ser¡ o Conselheiro do O¡sis. Tem  ouro suficiente para comprar muitas
ovelhas e  muitos camelos. Vai  casar-se com  F¡tima  e  viver£o  felizes  o
primeiro  ano.  Aprender¡  a  amar  o  deserto e vai  conhecer cada uma  das
cinqìenta mil tamareiras. Perceber¡  como  elas  crescem, mostrando um mundo
que muda sempre. E ir¡  cada vez entender mais os sinais, porque o deserto ©
um mestre melhor que todos os mestres.
     "No segundo  ano  vocª  se lembrar¡ que existe um  tesouro.  Os  sinais
come§ar£o  a falar insistentemente  sobre  isto,  e vocª tentar¡ ignor¡-los.
Usar¡  seu  conhecimento  apenas  para  o  bem-estar  do  o¡sis  e dos  seus
habitantes. Os chefes tribais lhe agradecer£o por isto.  Os seus camelos lhe
trar£o riqueza e poder.
     "No terceiro ano os sinais continuar£o a falar sobre seu  tesouro e sua
Lenda Pessoal. Vocª vai ficar noites  e noites andando pelo o¡sis, e  F¡tima
ser¡ uma mulher triste, porque fez  com  que seu caminho fosse interrompido.
Mas vocª lhe dar¡ amor, e ser¡ correspondido.  Vocª  vai se lembrar  que ela
jamais  pediu que ficasse,  porque uma mulher do  deserto  sabe  esperar seu
homem. Por isso n£o vai culp¡-la. Mas  vai andar muitas  noites pelas areias
do  deserto, e por entre as tamareiras, pensando que talvez pudesse  ter ido
adiante, ter confiado mais no seu amor por F¡tima. Porque o que o manteve no
o¡sis  foi seu prãprio medo  de n£o voltar nunca. E a esta altura, os sinais
lhe indicar£o que seu tesouro est¡ enterrado para sempre.
     No quarto ano, os  sinais o abandonar£o, porque vocª n£o quis ouvi-los.
Os Chefes Tribais ir£o entender isto,  e vocª ser¡ destitu­do do Conselho. A
esta  altura   ser¡  um  rico  comerciante,  com  muitos  camelos  e  muitas
mercadorias. Mas passar¡ o resto dos seus dias vagando entre as tamareiras e
o  deserto, sabendo que n£o cumpriu sua  Lenda  Pessoal, e que agora © tarde
demais para isto.
     "Sem jamais compreender que o Amor nunca impede  um homem de seguir sua
Lenda  Pessoal. Quando isto  acontece, ©  porque n£o era o verdadeiro  Amor,
aquele que fala a Linguagem do Mundo".


     O Alquimista desfez o c­rculo  no  ch£o, e a cobra correu e desapareceu
entre as pedras. O rapaz  lembrava o mercador de cristais que sempre quis ir
  Meca, e o Inglªs que buscava um Alquimista. O rapaz lembrava de uma mulher
que confiou no deserto, e o deserto  um dia lhe trouxe a pessoa que desejava
amar.
     Montaram  em  seus  cavalos, e  desta vez  foi  o  rapaz  que seguiu  o
Alquimista. O vento trazia os ru­dos do o¡sis,  e  ele tentava identificar a
voz de F¡tima. Naquele dia n£o tinha ido ao po§o por causa da batalha.
     Mas esta  noite,  enquanto olhavam uma  cobra dentro de um  c­rculo,  o
estranho  cavaleiro  com  seu  falc£o no ombro havia  falado  de  amor  e de
tesouros, das mulheres do deserto e da sua Lenda Pessoal.
     ­  Vou  com  vocª  ­ disse o rapaz.  E  imediatamente sentiu paz no seu
cora§£o.
     ­  Partimos  amanh£ antes que  o sol nas§a ­ foi  a ênica  resposta  do
Alquimista.




     O rapaz passou a noite inteira em claro. Duas horas antes do amanhecer,
acordou  um  dos  rapazes que  dormia na sua tenda, e pediu para lhe mostrar
onde morava F¡tima. Sa­ram juntos, e foram at© l¡. Em troca, o rapaz lhe deu
dinheiro para comprar uma ovelha.
     Depois pediu  que descobrisse onde F¡tima dormia, e que lhe acordasse e
dissesse que o rapaz a estava esperando. O jovem ¡rabe  fez isto, e em troca
ganhou dinheiro para comprar outra ovelha.
     ­ Agora deixe-nos  a  sãs ­ disse o rapaz ao jovem  ¡rabe, que voltou  
sua tenda para dormir, orgulhoso  de haver ajudado o Conselheiro do O¡sis; e
contente por ter dinheiro para comprar ovelhas.
     F¡tima  apareceu na  porta da tenda. Os dois sa­ram para andar entre as
tamareiras.  O rapaz sabia  que era contra a  Tradi§£o,  mas  isto n£o tinha
nenhuma import¢ncia agora.
     ­ Vou  partir  ­ disse. E quero  que saiba  que  vou voltar.  Eu te amo
porque...
     ­ N£o  diga nada ­ interrompeu F¡tima. ­ Ama-se porque  se  ama. N£o h¡
qualquer raz£o para amar.
     Mas o rapaz continuou:
     ­ Eu  te amo porque tive  um  sonho,  encontrei um rei, vendi cristais,
cruzei  o deserto,  os cl£s declararam guerra,  e estive num po§o para saber
onde morava um Alquimista. Eu te  amo  porque todo o Universo conspirou para
que eu chegasse at© vocª.
     ­ Os  dois  se  abra§aram. Era a primeira  vez que um  corpo tocava  no
outro.
     ­ Voltarei ­ repetiu o rapaz.
     ­ Antes  eu olhava o deserto com desejo ­  disse F¡tima. Agora ser¡ com
esperan§a.  Meu pai  um  dia partiu,  mas  voltou para minha m£e, e continua
voltando sempre.
     E  n£o disseram mais nada.  Andaram um pouco entre  as  tamareiras, e o
rapaz a deixou na porta da tenda.
     ­ Voltarei como seu pai voltou para a sua m£e ­ disse.
     Reparou que os olhos de F¡tima estavam cheios d'¡gua.
     ­ Vocª chora?


     ­  Sou uma mulher  do  deserto ­ disse  ela, escondendo o  rosto. ­ Mas
acima de tudo, sou uma mulher.

     F¡tima  entrou na tenda. Daqui a pouco o  sol ia aparecer. Quando o dia
chegasse, ela  ia sair  e fazer aquilo que havia feito durante  tantos anos;
mas  tudo  havia mudado. O rapaz j¡ n£o  estava mais no o¡sis, e o o¡sis n£o
teria mais o significado que  tinha at© pouco tempo antes. N£o seria mais  o
lugar  com cinqìenta mil  tamareiras e trezentos  po§os, onde os  peregrinos
chegavam contentes  depois  de  uma longa  viagem.  O o¡sis, daquele dia  em
diante, seria um lugar vazio para ela.
     A partir daquele dia, o deserto ia ser mais importante. Iria olhar para
ele sempre, tentando saber qual estrela o  rapaz estava seguindo em busca do
tesouro. Haveria de mandar seus beijos pelo  vento,  na esperan§a de que ele
tocasse o rosto do rapaz, e lhe contasse que estava viva, esperando por ele,
como  uma mulher espera um homem de coragem, que segue em busca  de sonhos e
tesouros. A partir  daquele dia,  o  deserto  ia  ser apenas  uma  coisa:  a
esperan§a de sua volta.







     ­ N£o  pense  no  que ficou para  tr¡s  ­ disse  o  Alquimista,  quando
come§aram a cavalgar pelas areias do deserto. ­ Tudo est¡ gravado na Alma do
Mundo, e ali permanecer¡ para sempre.
     ­ Os  homens  sonham mais com a volta do que  com a partida  ­ disse  o
rapaz, que j¡ estava se acostumando de novo com o silªncio do deserto.
     ­ Se o que vocª encontrou © feito de mat©ria pura, jamais apodrecer¡. E
vocª poder¡ voltar um dia. Se foi apenas um momento de luz, como a  explos£o
de uma estrela, ent£o n£o  vai encontrar nada  quando voltar. Mas ter¡ visto
uma explos£o de luz. E sã isto j¡ valeu a pena.
     O  homem  falava  em linguagem de  alquimia.  Mas o rapaz sabia que ele
estava se referindo   F¡tima.
     Era dif­cil n£o pensar no  que havia ficado  para tr¡s. O  deserto, com
sua paisagem  quase sempre igual,  costumava  encher-se  de sonhos. O  rapaz
ainda via as tamareiras, os po§os,  e  o rosto da mulher amada. Via o Inglªs
com seu laboratãrio, e o cameleiro que era um mestre e n£o sabia. "Talvez  o
Alquimista jamais tenha amado", pensou o rapaz.
     O Alquimista cavalgava na sua frente, com o falc£o nos ombros. O falc£o
conhecia bem a linguagem do deserto, e quando paravam, ele sa­a do ombro  do
Alquimista e  voava em busca de alimento. No  primeiro dia trouxe uma lebre.
No segundo dia trouxe dois p¡ssaros.
     De noite, estendiam seus cobertores e n£o acendiam fogueiras. As noites
do deserto eram frias,  e foram ficando escuras   medida que a lua come§ou a
diminuir no c©u. Durante uma semana andaram em silªncio,  conversando apenas
sobre as precau§åes  necess¡rias  para evitar os  combates entre  os cl£s. A
guerra continuava,  e o vento  s vezes trazia o cheiro adocicado  de sangue.
Alguma batalha havia  sido travada por perto, e o vento  recordava ao  rapaz
que havia  a  Linguagem  dos Sinais,  sempre pronta para mostrar o  que seus
olhos n£o conseguiam ver.
     Quando completaram sete dias de viagem,  o  Alquimista resolveu acampar
mais cedo do que  de costume. O falc£o saiu  em busca de ca§a, e ele tirou o
cantil de ¡gua e ofereceu ao rapaz.
     ­ Vocª agora est¡ quase no final da viagem ­ disse o Alquimista. ­ Meus
parab©ns por haver seguido sua Lenda Pessoal.
     ­ E vocª est¡ me guiando em silªncio ­ disse o rapaz. ­ Pensei  que  ia
me ensinar  aquilo que sabe. Faz algum  tempo  que  estive no deserto com um
homem que tinha livros de Alquimia. Mas n£o consegui aprender nada.
     ­  Sã  existe  uma maneira de aprender  ­  respondeu o Alquimista  ­  ‰
atrav©s da a§£o.  Tudo que vocª precisava saber, a viagem lhe ensinou. Falta
apenas uma coisa.
     O rapaz quis  saber o que era, mas o Alquimista  manteve os olhos fixos
no horizonte, esperando pela volta do falc£o.
     ­ Por que o chamam de Alquimista?
     ­ Porque sou.


     ­ E o que havia de errado com os outros alquimistas, que buscaram  ouro
e n£o conseguiram?
     ­  Buscavam  apenas  ouro  ­  respondeu seu companheiro.  ­ Buscavam  o
tesouro de sua Lenda Pessoal, sem desejarem viver a prãpria Lenda.
     ­ O que me falta saber? ­ insistiu o rapaz.
     Mas o Alquimista continuou olhando o horizonte. Depois de algum tempo o
falc£o retornou  com a  comida. Cavaram  um  buraco e  acenderam a  fogueira
dentro dele, para que ningu©m pudesse ver a luz das chamas.
     ­  Sou um Alquimista porque  sou  um Alquimista ­  disse ele,  enquanto
preparavam a  comida. ­ Aprendi a ciªncia de  meus avãs, que  aprenderam  de
seus avãs, e assim at© a cria§£o do  mundo. Naquela ©poca, toda a ciªncia da
Grande  Obra  podia ser  escrita numa simples esmeralda.  Mas os  homens n£o
deram import¢ncia   s coisas  simples,  e  come§aram  a  escrever  tratados,
interpreta§åes, e estudos filosãficos.  Come§aram tamb©m a dizer  que sabiam
melhor o caminho que os outros.
     "Mas a T¡boa da Esmeralda continua viva at© hoje".
     ­ O que estava escrito na T¡boa da Esmeralda? ­ quis saber o rapaz.
     O  Alquimista come§ou a desenhar  na areia, e  n£o demorou mais  do que
cinco minutos. Enquanto ele desenhava, o rapaz lembrou-se do velho rei, e da
pra§a onde haviam se encontrado um dia; parecia que tinham se passado muitos
e muitos anos.
     ­  Isto  estava  escrito na T¡boa  da  Esmeralda ­ disse o  Alquimista,
quando acabou de escrever.
     O rapaz aproximou-se e leu as palavras na areia.
     ­  ‰ um  cãdigo  ­  disse o rapaz, um pouco decepcionado com a T¡boa da
Esmeralda. ­ Parece com os livros do Inglªs.
     ­ N£o ­ respondeu  o Alquimista. ­ ‰ como  o väo dos  gaviåes; n£o deve
ser compreendida  simplesmente  pela  raz£o.  A T¡boa  da  Esmeralda  ©  uma
passagem direta para a Alma do Mundo.
     "Os s¡bios entenderam que este mundo natural © apenas uma imagem e  uma
cãpia do Para­so.  A simples existªncia  deste  mundo ©  a garantia  de  que
existe um mundo mais perfeito  que ele. Deus o criou  para  que, atrav©s das
coisas   vis­veis,   os   homens  pudessem   compreender  seus  ensinamentos
espirituais, e as maravilhas de sua sabedoria. Isto © que eu chamo de A§£o".
     ­ Devo entender a T¡boa da Esmeralda? ­ perguntou o rapaz.
     ­ "Talvez, se vocª estivesse num laboratãrio de Alquimia, agora seria o
momento  certo  para  estudar  a  melhor  maneira  de  entender  a T¡boa  da
Esmeralda. Entretanto, vocª est¡ no  Deserto. Ent£o mergulhe no deserto. Ele
serve para compreender  o mundo tanto como qualquer outra coisa sobre a face
da  terra. Vocª  nem  precisa  de entender o  deserto: basta  contemplar  um
simples gr£o de areia, e ver¡ nele todas as maravilhas da Cria§£o".
     ­ Como fa§o para mergulhar no deserto?
     ­ Escute seu cora§£o.  Ele conhece todas as coisas, porque veio da Alma
do Mundo, e um dia retornar¡ para ela.


     Andaram  em silªncio mais dois  dias. O  Alquimista  estava muito  mais
cauteloso,  porque se aproximavam da zona  de combates  mais violentos. E  o
rapaz procurava escutar seu cora§£o.


     Era  um  cora§£o dif­cil; antes  estava  acostumado a  partir sempre, e
agora queria chegar a  todo custo. €s vezes, seu cora§£o ficava muitas horas
contando histãrias de saudades, outras vezes se  emocionava com  o nascer do
sol  no  deserto, e fazia  o  rapaz chorar escondido. O  cora§£o  batia mais
r¡pido quando falava para  o rapaz sobre o tesouro  e  ficava mais  vagaroso
quando os  olhos  do  rapaz se perdiam no horizonte sem fim do  deserto. Mas
nunca estava em silªncio, mesmo que  o  rapaz n£o trocasse uma palavra com o
Alquimista.
     ­  Por  que  temos  que escutar  o cora§£o? ­  perguntou o rapaz quando
acamparam aquele dia.
     ­ Porque, onde ele estiver, © onde estar¡ o seu tesouro.
     ­  Meu cora§£o © agitado ­ disse o  rapaz. ­ Tem sonhos, se emociona, e
est¡ apaixonado por uma mulher do deserto. Ele me pede coisas e n£o me deixa
dormir muitas noites, quando penso nela.
     ­ ‰ bom. Seu  cora§£o  est¡ vivo.  Continue a  ouvir o que ele tem para
dizer.
     Nos trªs dias seguintes os dois passaram por alguns guerreiros, e viram
outros guerreiros no  horizonte.  O cora§£o do rapaz come§ou a falar sobre o
medo.  Contava para  o rapaz histãrias que  tinha ouvido da  Alma  do Mundo,
histãrias  de  homens  que  foram em  busca  de  seus  tesouros  e jamais  o
encontraram. €s vezes assustava o rapaz com o pensamento de que  poderia n£o
conseguir o tesouro, ou poderia morrer no deserto. Outras vezes dizia para o
rapaz  que j¡  estava satisfeito,  que j¡  havia encontrado um amor e muitas
moedas de ouro.
     ­ Meu cora§£o © trai§oeiro ­  disse o rapaz ao Alquimista,  quando eles
pararam para descansar um pouco os cavalos. ­ N£o quer que eu continue.
     ­ Isto © bom ­  respondeu o Alquimista.  ­ Prova que  seu  cora§£o est¡
vivo.  ‰  natural  ter  medo  de trocar por um  sonho  tudo aquilo que j¡ se
conseguiu.
     ­ Ent£o, para que devo escutar meu cora§£o?
     ­  Porque vocª n£o vai  conseguir jamais  mantª-lo calado. E mesmo  que
finja n£o escutar o que ele diz, ele estar¡  dentro do  seu peito, repetindo
sempre o que pensa sobre a vida e o mundo.
     ­ Mesmo que ele seja trai§oeiro?
     ­  A trai§£o ©  o golpe que  vocª n£o espera.  Se vocª conhecer bem seu
cora§£o, ele  jamais conseguir¡ isto. Porque  vocª conhecer¡  seus  sonhos e
seus desejos, e saber¡ lidar com eles.
     "Ningu©m consegue fugir do seu cora§£o. Por isso © melhor escutar o que
ele fala. Para que jamais venha um golpe que vocª n£o espera".

     O  rapaz  continuou  a  escutar  seu cora§£o, enquanto caminhavam  pelo
deserto.  Passou  a  conhecer suas  artimanhas  e  seus truques,  e passou a
aceit¡-lo como  era.  Ent£o o rapaz  deixou de ter medo,  e  deixou  de  ter
vontade de voltar, porque certa tarde o seu  cora§£o  lhe disse  que  estava
contente. "Mesmo  que eu reclame um pouco", dizia seu cora§£o, "© porque sou
um cora§£o de homem, e os cora§åes de homens s£o assim. Tªm medo de realizar
seus  maiores  sonhos,   porque  acham  que  n£o  o  merecem,  ou   n£o  v£o
consegui-los. Nãs, os cora§åes,  morremos de medo sã de pensar em amores que
partiram para  sempre, em  momentos que  poderiam  ter sido  bons e que  n£o
foram, em tesouros que  poderiam ter sido descobertos e ficaram  para sempre
escondidos  na  areia. Porque  quando  isto  acontece,  terminamos  sofrendo
muito".


     ­ Meu cora§£o tem medo de sofrer ­ disse o rapaz para o Alquimista, uma
noite em que olhavam o c©u sem lua.
     ­  Diga  para  ele  que  o  medo de sofrer  ©  pior  do  que  o prãprio
sofrimento. E que nenhum cora§£o  jamais sofreu quando foi em busca  de seus
sonhos, porque cada momento de busca © um momento de encontro com Deus e com
a Eternidade.
     "Cada momento de busca © um momento de encontro", disse o rapaz  ao seu
cora§£o. "Enquanto procurei meu tesouro, todos os dias foram dias luminosos,
porque eu  sabia que cada hora fazia parte  do sonho  de encontrar. Enquanto
procurei  este meu  tesouro, descobri  no  caminho  coisas  que jamais teria
sonhado  encontrar,   se  n£o  tivesse  tido  a  coragem  de  tentar  coisas
imposs­veis aos pastores".
     Ent£o seu cora§£o ficou quieto por uma tarde inteira. De noite, o rapaz
dormiu tranqìilo, e  quando acordou,  o seu  cora§£o come§ou a lhe contar as
coisas  da Alma do Mundo. Disse que todo homem feliz era um homem que trazia
Deus  dentro de  si. E que a felicidade  poderia  ser encontrada num simples
gr£o de areia do deserto, como  o Alquimista havia falado. Porque um gr£o de
areia  ©  um momento da Cria§£o, e o Universo demorou milhares de milhåes de
anos para  cri¡-lo. "Cada  homem na  face da Terra tem  um tesouro que  est¡
esperando por  ele",  disse seu cora§£o.  Nãs, os cora§åes, costumamos falar
pouco destes tesouros, porque os  homens j¡ n£o querem mais encontr¡-los. Sã
falamos dele  para as crian§as. Depois deixamos que a vida encaminhe cada um
em  dire§£o ao seu  destino.  Mas, infelizmente, poucos seguem o caminho que
lhes  est¡ tra§ado,  e  que © o caminho da Lenda Pessoal, e  da  felicidade.
Acham o  mundo uma coisa amea§adora ­ e por causa disto o mundo se torna uma
coisa amea§adora.
     "Ent£o nãs, os cora§åes, vamos falando cada vez mais baixo, mas n£o nos
calamos nunca. E torcemos para que nossas palavras  n£o  sejam  ouvidas: n£o
queremos que os homens sofram porque n£o seguiram seus cora§åes".
     ­  Por que  os cora§åes n£o  contam  aos  homens  que  devem  continuar
seguindo seus sonhos? ­ perguntou o rapaz ao Alquimista.
     ­  Porque, neste caso, o cora§£o  © o que sofre mais. E os cora§åes n£o
gostam de sofrer.
     O rapaz entendeu seu cora§£o a partir daquele dia. Pediu que nunca mais
o deixasse. Pediu  que, quando estivesse  longe de  seus  sonhos,  o cora§£o
apertasse no peito e desse o sinal  de alarme. O rapaz jurou que sempre  que
escutasse este sinal, tamb©m o seguiria.
     Naquela noite  conversou tudo com o Alquimista. E o Alquimista entendeu
que o cora§£o do rapaz havia voltado para a Alma do Mundo .
     ­ O que fa§o agora? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Siga em dire§£o   s  Pir¢mides ­ disse  o Alquimista.  ­  E  continue
atento aos sinais. Seu cora§£o j¡ © capaz de lhe mostrar o tesouro.
     ­ Era isto que estava faltando saber?
     ­  N£o. ­  respondeu o Alquimista.  ­  O que  est¡  faltando saber ©  o
seguinte:
     "Sempre antes de realizar um sonho, a Alma do Mundo resolve testar tudo
aquilo que foi aprendido durante a caminhada. Ela  faz isto n£o  porque seja
m¡, mas  para que  possamos, junto com  o  nosso sonho, conquistar tamb©m as
li§åes  que aprendemos seguindo em dire§£o a ele. ‰ o momento em que a maior
parte das pessoas desiste.  ‰ o  que chamamos,  em linguagem  do deserto, de
`morrer de sede quando as tamareiras j¡ apareceram no horizonte' ".


     "Uma busca come§a sempre  com a Sorte de Principiante. E termina sempre
com a Prova do Conquistador".
     O rapaz lembrou-se de um velho prov©rbio de sua terra. Dizia que a hora
mais escura era a que vinha antes do sol nascer.




     No  dia seguinte apareceu o  primeiro sinal concreto  de  perigo.  Trªs
guerreiros  se  aproximaram e perguntaram o que os dois estavam  fazendo por
ali.
     ­ Vim ca§ar com o meu falc£o ­ respondeu o Alquimista.
     ­  Precisamos revist¡-los  para ver se n£o  levam armas ­ disse  um dos
guerreiros.
     O Alquimista desceu devagar de seu cavalo. O rapaz fez o mesmo.
     ­ Para quª tanto dinheiro? ­ perguntou o guerreiro, quando viu  a bolsa
do rapaz.
     ­ Para chegar ao Egito ­ disse ele.
     O guarda que estava revistando o Alquimista encontrou um pequeno frasco
de cristal cheio de l­quido,  e um ovo de vidro amarelado, pouco maior que o
ovo de uma galinha.
     ­ Que s£o estas coisas? ­ perguntou o guarda.
     ­ ‰  a Pedra Filosofal e  o Elixir  da Longa  Vida. ‰ a grande obra dos
Alquimistas. Quem tomar este elixir  jamais ficar¡ doente, e uma lasca desta
pedra transforma qualquer metal em ouro.
     Os guardas riram pra valer,  e o Alquimista riu com eles. Tinham achado
a  resposta muito engra§ada,  e os deixaram partir sem maiores contratempos,
com todos os seus pertences.
     ­  Vocª est¡ louco? ­ perguntou o rapaz ao Alquimista, quando j¡ haviam
se distanciado bastante. ­ Para que vocª fez isto?
     ­  Para  mostrar  a vocª  uma  simples  lei  do  mundo  ­  respondeu  o
Alquimista.  ­  Quando temos  os  grandes  tesouros  diante  de  nãs,  nunca
percebemos. E sabe por quª? Porque os homens n£o acreditam em tesouros.
     Continuaram andando  pelo deserto. A cada dia que passava, o cora§£o do
rapaz ia ficando mais silencioso. J¡ n£o queria saber das coisas passadas ou
das  coisas futuras; contentava-se em contemplar  tamb©m o deserto, e  beber
junto com o rapaz da  Alma do  Mundo. Ele e seu cora§£o  tornaram-se grandes
amigos ­ um passou a ser incapaz de trair o outro.
     Quando o cora§£o falava, era para dar est­mulo e for§a ao rapaz, que  s
vezes achava terrivelmente ma§ante os dias de silªncio. O cora§£o contou-lhe
pela  primeira  vez  suas grandes qualidades:  sua coragem  ao abandonar  as
ovelhas, ao viver sua Lenda Pessoal, e seu entusiasmo na loja de cristais.
     Contou-lhe tamb©m mais uma coisa,  que o rapaz nunca  havia notado:  os
perigos  que  passaram perto e que  ele nunca  tinha percebido.  Seu cora§£o
disse que certa vez havia escondido  a pistola que ele havia roubado do pai,
pois havia uma grande chance de que se ferisse com ela. E lembrou um dia que
o rapaz  havia passado mal em  pleno  campo,  vomitado, e depois dormido por
muito tempo: haviam  dois assaltantes mais adiante,  que  estavam planejando
roubar  suas  ovelhas,  e  assassin¡-lo.  Mas  como  o  rapaz  n£o aparecia,
resolveram ir embora, achando que ele tinha mudado de rota.
     ­  Os  cora§åes  sempre  ajudam  os  homens?  ­ perguntou  o  rapaz  ao
Alquimista.
     ­ Sã os que vivem sua Lenda Pessoal. Mas  ajudam muito  as crian§as, os
bªbados, e os velhos.
     ­ Quer dizer ent£o que n£o h¡ perigo?


     ­ Quer dizer apenas que os cora§åes se esfor§am ao m¡ximo ­ respondeu o
Alquimista.
     Certa tarde passaram  pelo acampamento de um dos cl£s. Haviam ¡rabes em
vistosas roupas brancas, com armas ensilhadas  em todos os cantos. Os homens
fumavam narguil©  e  conversavam sobre  os combates. Ningu©m  prestou  maior
aten§£o aos dois viajantes.
     ­ N£o h¡ qualquer perigo  ­ disse o rapaz, quando j¡ tinham se afastado
um pouco do acampamento.
     O Alquimista ficou furioso.
     ­ Confie em seu cora§£o ­ disse, mas n£o se esque§a de que vocª est¡ no
deserto. Quando os homens est£o em guerra, a Alma do Mundo  tamb©m sente  os
gritos de combate.  Ningu©m deixa de sofrer as  conseqìªncias de  cada coisa
que se passa debaixo do sol.
     "Tudo © uma coisa ênica", pensou o rapaz.
     E  como  se  o deserto quisesse mostrar que  o velho Alquimista  estava
certo, dois cavaleiros surgiram por detr¡s dos viajantes.
     ­ N£o podem seguir adiante ­ disse um deles. ­  Vocªs est£o nas  areias
onde os combates s£o travados.
     ­ N£o vou muito longe ­ respondeu o Alquimista, olhando fundo nos olhos
dos   guerreiros.  Eles  ficaram  quietos  por  alguns  minutos,  e   depois
concordaram com a viagem dos dois.
     O rapaz assistiu aquilo tudo fascinado.
     ­ Vocª dominou os guardas com o olhar ­ comentou ele.
     ­ Os olhos mostram a for§a da alma ­ respondeu o Alquimista.
     Era verdade, pensou o rapaz. Havia percebido que,  no  meio da multid£o
de soldados no  acampamento,  um deles  estava olhando fixo para os dois.  E
estava t£o  distante,  que n£o dava sequer para ver  direito sua face. Mas o
rapaz tinha certeza de que estava olhando para eles.
     Finalmente, quando come§aram a cruzar  uma montanha que se estendia por
todo o horizonte,  o  Alquimista  disse que faltavam dois dias para chegarem
at©  s Pir¢mides.
     ­ Se vamos nos separar logo ­ respondeu o rapaz ­ me ensine Alquimia.
     ­ Vocª j¡ sabe. ‰ penetrar na Alma do Mundo,  e descobrir o tesouro que
ela reservou para nãs.
     ­ N£o © isto que quero saber. Falo de transformar chumbo em ouro.
     O Alquimista respeitou  o silªncio do deserto,  e sã respondeu ao rapaz
quando pararam para comer.
     ­ Tudo no Universo  evolui ­ disse ele. ­ E para os s¡bios, o ouro ©  o
metal mais evolu­do. N£o pergunte porquª; n£o sei. Sei apenas que a Tradi§£o
est¡ sempre certa.
     "Os homens  © que  n£o interpretaram bem as  palavras dos s¡bios.  E ao
inv©s de s­mbolo de evolu§£o, o ouro passou a ser o sinal das guerras.
     ­  As coisas falam  muitas linguagens  ­  disse o rapaz. ­ Vi quando  o
relincho de camelo  era  apenas um relincho, depois passou  a  ser  sinal de
perigo, e finalmente tornou- se de novo um relincho.
     Mas calou-se. O Alquimista devia saber tudo aquilo.
     ­  Conheci  verdadeiros  alquimistas  ­  continuou. ­ Se  trancavam  no
laboratãrio e tentavam evoluir como  o ouro; descobriam a  Pedra  Filosofal.
Porque  haviam entendido que quando uma coisa evolui, evolui tamb©m tudo que
est¡ a sua volta.


     "Outros conseguiram  a pedra por acidente. J¡ tinham  o dom, suas almas
estavam  mais despertas  que  a das outras pessoas.  Mas  estes  n£o contam,
porque s£o raros.
     "Outros, enfim,  buscavam  apenas  o  ouro. Estes jamais descobriram  o
segredo.  Esqueceram-se de  que o chumbo, o  cobre,  o ferro, tamb©m tªm sua
Lenda  Pessoal  para cumprir.  Quem interfere na Lenda  Pessoal  dos outros,
nunca descobrir¡ a sua".
     As  palavras do Alquimista soaram  como  uma maldi§£o. Ele abaixou-se e
pegou uma concha no solo do deserto.
     ­ Isto um dia j¡ foi um mar ­ disse.
     ­ J¡ tinha reparado ­  respondeu o rapaz. O  Alquimista pediu ao  rapaz
para colocar  a  concha no ouvido. Ele tinha feito isto muitas vezes  quando
era crian§a, e escutou o barulho do mar.
     ­ O  mar  continua  dentro desta concha, porque © sua  Lenda Pessoal. E
jamais a abandonar¡, at© que o deserto se cubra novamente de ¡gua.
     Depois montaram em seus  cavalos, e seguiram em dire§£o  s Pir¢mides do
Egito.




     O sol tinha  come§ado a descer quando  o cora§£o do  rapaz deu sinal de
perigo. Estavam no meio de  gigantescas dunas, e o rapaz olhou o Alquimista,
mas  este  parecia  n£o  haver  notado  nada.  Cinco  minutos depois o rapaz
percebeu dois cavaleiros  a sua frente, as silhuetas cortadas contra  o sol.
Antes  que  pudesse  falar   com  o  Alquimista,   os  dois   cavaleiros  se
transformaram  em dez, depois em cem,  at©  que as gigantescas dunas ficaram
cobertas deles.
     Eram guerreiros vestidos de azul, com uma tiara negra sobre o turbante.
Os rostos estavam cobertos por outro  v©u azul,  deixando apenas os olhos de
fora.
     Mesmo distante,  os olhos mostravam a for§a de  suas almas. E  os olhos
falavam em morte.


     Levaram os dois para um acampamento  militar nas imedia§åes. Um soldado
empurrou  o  rapaz  e o Alquimista para dentro de uma  tenda.  Era uma tenda
diferente das que havia conhecido no o¡sis; ali estava um comandante reunido
com seu estado-maior.
     ­ S£o os espiåes ­ disse um dos homens.
     ­ Somos apenas viajantes ­ respondeu o Alquimista.
     ­  Vocªs  foram vistos  no  acampamento  inimigo h¡ trªs  dias atr¡s. E
conversaram com um dos guerreiros.
     ­ Sou um homem que caminha pelo deserto e conhece as estrelas ­ disse o
Alquimista. N£o tenho informa§åes de tropas, ou o movimento dos cl£s. Apenas
guiava meu amigo at© aqui.
     ­ Quem © seu amigo? perguntou o comandante.
     ­ Um Alquimista ­ disse o Alquimista. ­ Conhece os poderes da natureza.
E deseja mostrar ao comandante sua capacidade extraordin¡ria.
     O rapaz ouvia em silªncio. E com medo.
     ­ O que faz um estrangeiro numa terra estrangeira? ­ disse outro homem.


     ­ Trouxe dinheiro  para oferecer a seu  cl£ ­  respondeu o  Alquimista,
antes que o rapaz  dissesse qualquer palavra.  E  pegando  a bolsa do rapaz,
entregou as moedas de ouro ao general.
     O ¡rabe aceitou em silªncio. Dava para comprar muitas armas.
     ­ O que © um Alquimista? ­ perguntou, finalmente.
     ­ Um homem que conhece a natureza  e o mundo. Se ele quisesse, destru­a
este acampamento apenas com a for§a do vento.
     Os homens riram.  Estavam acostumados com a for§a da guerra,  e o vento
n£o det©m um golpe mortal. Dentro do peito de cada um,  por©m, seus cora§åes
apertaram. Eram homens do deserto e tinham medo dos feiticeiros.
     ­ Quero ver ­ disse o general.
     ­ Precisamos de  trªs  dias ­  respondeu o  Alquimista.  ­ E ele vai se
transformar em vento,  apenas  para mostrar a  for§a de seu  poder.  Se  n£o
conseguir,  nãs lhe oferecemos humildemente nossas vidas, pela  honra de seu
cl£.
     ­ N£o pode me oferecer o que j¡ © meu ­ disse, arrogante, o general.
     Mas concedeu os trªs dias aos viajantes.

     O rapaz  estava paralisado de terror. Saiu da tenda porque o Alquimista
lhe segurou os bra§os.
     ­ N£o  deixe  que  eles percebam seu medo ­ disse o Alquimista.  ­  S£o
homens corajosos, e desprezam os covardes.
     O rapaz,  por©m,  estava sem voz.  Sã conseguiu falar  depois de  algum
tempo,  enquanto caminhavam pelo meio do acampamento. N£o  havia necessidade
de pris£o: os ¡rabes apenas tiraram seus cavalos.  E mais  uma vez  o  mundo
mostrou suas muitas linguagens: o deserto, antes um terreno livre e sem fim,
era agora uma muralha intranspon­vel.
     ­ Vocª deu todo o meu tesouro! ­ disse o rapaz. ­ Tudo que eu ganhei em
toda a minha vida!
     ­ E para que lhe adiantaria isto, se tivesse que morrer? ­ respondeu, o
Alquimista.  ­  Seu dinheiro o salvou por trªs dias. Poucas vezes o dinheiro
serve para adiar a morte.
     Mas o  rapaz estava apavorado  demais  para ouvir palavras s¡bias.  N£o
sabia como transformar-se em vento. N£o era um Alquimista.
     O Alquimista pediu ch¡ a um guerreiro, e colocou um pouco nos pulsos do
rapaz.  Uma onda  de tranqìilidade  encheu seu corpo,  enquanto o Alquimista
dizia algumas palavras que ele n£o conseguia compreender.
     ­  N£o se  entregue  ao  desespero ­  disse o  Alquimista,  com uma voz
estranhamente doce.  ­ Isto faz  com que vocª  n£o consiga conversar com seu
cora§£o.
     ­ Mas eu n£o sei transformar-me em vento.
     ­  Quem vive  sua Lenda Pessoal, sabe tudo que  precisa  saber. Sã  uma
coisa torna um sonho imposs­vel: o medo de fracassar.
     ­ N£o tenho medo de fracassar. Apenas n£o sei transformar-me em vento.
     ­ Pois ter¡ que aprender. Sua vida depende disto.
     ­ E se eu n£o conseguir?
     ­ Vai morrer  enquanto vivia sua Lenda  Pessoal. ‰ muito  melhor do que
morrer  como  milhåes  de pessoas,  que jamais souberam que a  Lenda Pessoal
existia.


     "Entretanto, n£o se preocupe. Geralmente a morte faz com que as pessoas
fiquem mais sens­veis   vida."



     O  primeiro dia se passou. Houve uma grande  batalha  nas imedia§åes, e
v¡rios feridos foram  trazidos para o acampamento  militar. "Nada muda com a
morte",  pensava o rapaz. Os guerreiros  que morriam  eram  substitu­dos por
outros, e a vida continuava.
     ­ Poderias ter morrido  mais tarde,  meu amigo ­ disse  o guarda para o
corpo de um  companheiro  seu. ­ Poderias ter morrido quando chegasse a paz.
Mas irias terminar morrendo de qualquer jeito.
     No  final do dia, o  rapaz foi procurar  o Alquimista. Estava levando o
falc£o para o deserto.
     ­ N£o sei transformar-me em vento ­ repetiu o rapaz.
     ­  Lembre-se  do  que eu lhe  disse:  de que o  mundo ©  apenas a parte
vis­vel  de  Deus. De  que  a  Alquimia © trazer  para  o plano  material  a
perfei§£o espiritual.
     ­ O que vocª faz?
     ­ Alimento meu falc£o.
     ­ Se eu n£o conseguir transformar-me em vento, nãs vamos morrer ­ disse
o rapaz. ­ Para que alimentar o falc£o?
     ­ Quem vai morrer © vocª ­ disse o Alquimista.  ­ Eu sei transformar-me
em vento.




     No segundo dia o rapaz foi para o alto de uma rocha que ficava perto do
acampamento. As sentinelas  o deixaram passar; j¡ ouviram falar do bruxo que
se transformava em vento,  e n£o queriam chegar perto  dele. Al©m  disso,  o
deserto era uma grande e intranspon­vel muralha.
     Ficou o resto da tarde  do  segundo dia olhando o deserto. Escutou  seu
cora§£o. E o deserto escutou seu medo.
     Ambos falavam a mesma l­ngua.




     No terceiro dia o general reuniu-se com os principais comandantes.
     ­ Vamos  ver o garoto  que se transforma em vento ­  disse o General ao
Alquimista.
     ­ Vamos ver ­ respondeu o Alquimista.
     O rapaz os conduziu at©  o  lugar onde  havia estado no  dia  anterior.
Ent£o pediu que todos se sentassem.
     ­ Vai demorar um pouco ­ disse o rapaz.
     ­ N£o temos pressa ­ respondeu o General. ­ Somos homens do deserto.


     O rapaz  come§ou a olhar o horizonte  a sua frente. Haviam montanhas ao
longe, haviam dunas, rochas  e plantas rasteiras que insistiam em viver onde
a  sobrevivªncia  era  imposs­vel.  Ali  estava  o deserto,  que  ele  havia
percorrido durante tantos meses,  e que, mesmo assim,  sã conhecia uma parte
muito pequena. Nesta pequena parte ele havia encontrado ingleses, caravanas,
guerras de cl£s, e um o¡sis com cinqìenta mil tamareiras e trezentos po§os.
     ­ O que  vocª  quer aqui  hoje? ­ perguntou  o deserto. ­  J¡  n£o  nos
contemplamos o suficiente ontem?
     ­  Em algum ponto  vocª guarda a  pessoa que  eu amo ­ disse o rapaz. ­
Ent£o, quando olho suas areias contemplo tamb©m a ela.  Quero voltar a ela e
preciso de sua ajuda para transformar-me em vento.
     ­ O que © o amor? ­ perguntou o deserto.
     ­ O amor  © quando o falc£o voa sobre suas areias. Porque para ele vocª
© um campo verde, e ele nunca voltou sem ca§a. Ele conhece suas rochas, suas
dunas, e suas montanhas, e vocª © generoso com ele.
     ­ O  bico  do falc£o tira peda§os de  mim ­ disse o deserto. ­  Durante
anos eu cultivo  sua ca§a, alimento  com a pouca ¡gua que tenho, mostro onde
est¡ a comida. E um dia, desce o  falc£o  do c©u,  justamente quando  eu  ia
sentir o  carinho da  ca§a  sobre minhas areias. Ele carrega  aquilo que  eu
criei.
     ­ Mas foi para isto  que  vocª criou a ca§a ­ respondeu o rapaz. ­ Para
alimentar  o  falc£o.  E  o  falc£o alimentar¡  o  homem.  E  o homem  ent£o
alimentar¡  um  dia  tuas  areias, de  onde a ca§a  tornar¡ a  surgir. Assim
move-se o mundo.
     ­ ‰ isto o amor?
     ­ ‰ isto o amor. ‰ o que faz a  ca§a transformar-se em falc£o, o falc£o
em  homem,  e  o homem  de  novo  em  deserto.  ‰  isto  que  faz  o  chumbo
transformar-se em ouro; e o ouro voltar a esconder-se sob a terra.
     ­ N£o entendo suas palavras ­ disse o deserto.
     ­  Ent£o  entenda  que  em algum  lugar de suas  areias, uma mulher  me
espera. E para isto, tenho que transformar-me em vento.
     O deserto ficou em silªncio por alguns instantes.
     ­ Eu lhe dou minhas  areias para que o vento possa soprar. Mas sozinho,
n£o posso fazer nada. Pe§a ajuda ao vento.

     Uma pequena brisa come§ou a soprar. Os comandantes olhavam o  rapaz  ao
longe, falando uma linguagem que eles n£o conheciam.


     O Alquimista sorria.

     O vento  chegou perto  do rapaz e  tocou seu  rosto. Havia escutado sua
conversa com  o deserto, porque os ventos sempre conhecem tudo. Percorriam o
mundo sem um lugar onde nascer e sem um lugar onde morrer.
     ­ Me ajude ­ disse  o rapaz ao vento. ­ Certo dia escutei em vocª a voz
da minha amada.
     ­ Quem lhe ensinou a falar a linguagem do deserto e do vento?
     ­ Meu cora§£o ­ respondeu o rapaz.
     O  vento tinha  muitos nomes. Ali ele  era chamado de siroco, porque os
¡rabes acreditavam que ele vinha das terras cobertas de ¡gua, onde habitavam
homens negros.  Na terra distante de onde vinha o rapaz, eles o  chamavam de
Levante,  porque acreditavam que trazia as areias do  deserto e os gritos de
guerra dos mouros.  Talvez num lugar mais distante dos campos de ovelhas, os
homens pensassem  que o vento nascia  em Andaluzia. Mas o vento n£o vinha de
lugar nenhum,  e n£o ia para  lugar nenhum, e por isso era mais  forte que o
deserto. Um dia eles  poderiam plantar ¡rvores no deserto, e at© mesmo criar
ovelhas, mas jamais iriam conseguir dominar o vento.
     ­ Vocª n£o  pode  ser  o  vento ­ disse o vento. ­ Somos  de  naturezas
diferentes.
     ­ N£o © verdade ­ disse  o  rapaz.  ­  Conheci os segredos da Alquimia,
enquanto  vagava  o mundo com vocª. Tenho em mim os ventos,  os desertos, os
oceanos, as  estrelas, e tudo que foi  criado no Universo. Fomos feitos pela
mesma M£o,  e temos a mesma Alma. Quero ser como vocª, penetrar em todos  os
cantos, atravessar os mares,  tirar  a  areia que  cobre meu tesouro, trazer
para perto a voz de minha amada.
     ­  Ouvi sua conversa com o Alquimista outro dia ­ disse o vento. ­  Ele
falou  que cada  coisa  tem  sua  Lenda  Pessoal. As  pessoas n£o  podem  se
transformar em vento.
     ­  Me ensine a  ser vento por alguns instantes, ­ disse o rapaz. ­ Para
que  possamos conversar sobre as possibilidades ilimitadas dos  homens e dos
ventos.
     O  vento  era curioso, e aquilo  era uma  coisa  que ele  n£o conhecia.
Gostaria  de conversar sobre aquele  assunto, mas n£o sabia como transformar
homens em vento. E olha que ele  conhecia tanta coisa!  Constru­a  desertos,
afundava navios, derrubava florestas inteiras, e passeava por cidades cheias
de mêsica e de ru­dos estranhos. Achava que era  ilimitado, e no entanto ali
estava  um  rapaz dizendo que  ainda havia mais  coisas  que um vento  podia
fazer.
     ­ ‰ isto que chamam de Amor ­ disse o rapaz, ao ver  que o vento estava
quase cedendo ao seu pedido. ­ Quando se ama © que se consegue ser  qualquer
coisa da Cria§£o. Quando se ama n£o temos necessidade  nenhuma de entender o
que acontece, porque tudo passa a acontecer dentro de nãs, e os homens podem
se transformar em vento. Desde que os ventos ajudem, © claro.
     O vento era muito orgulhoso, e ficou irritado  com o que o rapaz dizia.
Come§ou a soprar com mais  velocidade,  levantando as areias do deserto. Mas
finalmente  teve  que reconhecer  que,  mesmo  havendo  percorrido  o  mundo
inteiro, n£o sabia como transformar homens em ventos. E n£o conhecia o Amor.
     ­ Enquanto  passeava  pelo  mundo,  notei que muitas pessoas falavam de
amor olhando  para o c©u ­ disse o  vento, furioso por  ter que aceitar suas
limita§åes. ­ Talvez seja melhor perguntar ao c©u.


     ­ Ent£o me ajude ­ disse o  rapaz. ­ Encha  este  lugar de poeira, para
que eu possa olhar o sol sem ficar cego.
     O  vento ent£o soprou com  muita for§a, e o c©u ficou  cheio de  areia,
deixando apenas um disco dourado no lugar do sol.



     No acampamento estava ficando dif­cil de enxergar. Os homens do deserto
j¡ conheciam aquele vento.  Chamava-se Simum, e era  pior que uma tempestade
no mar ­ porque eles n£o conheciam o mar. Os cavalos relinchavam, e as armas
come§aram a ficar cobertas de areia.
     No rochedo, um dos comandantes virou-se para o general, e disse:
     ­ Talvez  seja  melhor  pararmos  com isto.  Eles  j¡ quase n£o  podiam
enxergar o rapaz.  Os rostos estavam cobertos pelos len§os azuis, e os olhos
agora significavam apenas espanto.
     ­ Vamos parar com isto ­ insistiu outro comandante.
     ­ Quero ver  a grandeza de Allah ­ disse com respeito  o general. Quero
ver como os homens se transformam em vento.
     Mas anotou mentalmente o nome  dos  dois homens que haviam  tido  medo.
Assim  que  o vento  parasse, ia destitu­-los de  seus comandos,  porque  os
homens do deserto n£o sentem medo.




     O vento me disse  que vocª conhece o Amor ­ disse  o rapaz ao Sol. ­ Se
vocª conhece o Amor, conhece tamb©m a Alma do Mundo, que © feita de Amor.
     ­ Daqui de onde estou ­ disse o sol ­ posso ver a Alma do Mundo. Ela se
comunica com minha  alma, e  nãs, juntos, fazemos as  plantas crescerem e as
ovelhas caminharem em busca de  sombra. Daqui  de onde estou ­ e estou muito
longe do mundo ­ aprendi a  amar. Sei que, se eu me aproximar um pouco  mais
da Terra, tudo que  est¡ nela morrer¡, e a Alma do Mundo deixar¡ de existir.
Ent£o nos contemplamos e nos queremos, e eu lhe  dou vida e calor,  e ela me
d¡ uma raz£o para viver.
     ­ Vocª conhece o Amor ­ disse o rapaz.
     ­ E conhe§o a Alma do  Mundo, porque conversamos muito nesta viagem sem
fim pelo Universo. Ela me fala  que seu maior problema © que at© hoje, sã os
minerais e os vegetais entenderam que tudo © uma coisa sã.  E para isto, n£o
precisa que o ferro seja  igual ao cobre, e que o cobre seja igual  ao ouro.
Cada um cumpre sua fun§£o exata nesta coisa ênica, e tudo seria uma Sinfonia
de Paz  se a  M£o que escreveu  tudo  isto tivesse  parado no  quinto dia da
cria§£o.
     "Mas houve um sexto dia", disse o Sol.
     ­  Vocª ©  s¡bio  porque vª tudo   dist¢ncia ­ respondeu o rapaz. ­ Mas
n£o conhece o  Amor. Se n£o houvesse um sexto dia da cria§£o,  n£o haveria o
homem, e o cobre seria sempre cobre, e o chumbo seria sempre chumbo. Cada um
tem  sua Lenda Pessoal,  ©  verdade, mas  um  dia  esta  Lenda  Pessoal ser¡
cumprida. Ent£o  ©  preciso transformar-se  em algo  melhor, e  ter uma nova
Lenda Pessoal, at© que a Alma do Mundo seja realmente uma coisa sã.


     O  sol  ficou pensativo  e resolveu  brilhar mais forte.  O vento,  que
estava gostando da  conversa, soprou tamb©m  mais forte, para que  o sol n£o
cegasse o rapaz.
     ­  Para isto  existe a  Alquimia ­ disse o rapaz. ­ Para que cada homem
busque seu tesouro, e o encontre, e depois  queira ser melhor do  que foi na
sua vida anterior. O  chumbo cumprir¡ seu papel at© que o mundo n£o  precise
mais de chumbo; ent£o ele ter¡ que transformar-se em ouro.
     "Os Alquimistas fazem isto. Mostram  que, quando buscamos ser  melhores
do que somos, tudo em volta se torna melhor tamb©m".
     ­ E por que vocª diz que eu n£o conhe§o o Amor? ­ perguntou o Sol.
     ­ Porque o amor  n£o ©  estar parado como o deserto, nem correr o mundo
como o vento, nem ver tudo  de longe,  como  vocª.  O  Amor  © a  for§a  que
transforma e melhora  a  Alma do Mundo.  Quando penetrei nela pela  primeira
vez, achei que fosse perfeita. Mas depois vi que ela era um reflexo de todas
as criaturas, e tinha suas guerras e suas paixåes. Somos nãs que alimentamos
a  Alma do  Mundo, e  a  terra onde  vivemos ser¡ melhor ou pior,  se formos
melhores ou piores. A­  © que entra  a for§a  do Amor, porque quando amamos,
sempre desejamos ser melhores do que somos.
     ­ O que vocª quer de mim? ­ perguntou o Sol.
     ­ Que me ajude a transformar-me em vento ­ respondeu o rapaz.
     ­ A Natureza me conhece como a mais s¡bia de todas as criaturas ­ disse
o Sol. ­ Mas n£o sei como transform¡-lo em vento.
     ­ Com quem devo falar, ent£o?
     Por  um  momento o  sol ficou  quieto. O  vento estava  ouvindo,  e  ia
espalhar  por todo  o mundo que sua sabedoria era limitada. Entretanto,  n£o
tinha jeito de fugir daquele rapaz, que falava a Linguagem do Mundo.
     ­ Converse com a M£o que escreveu tudo ­ disse o Sol.

     O vento gritou  de contentamento, e soprou com mais for§a do que nunca.
As tendas come§aram a  ser arrancadas  da areia, e os animais soltaram-se de
suas r©deas. No rochedo, os homens se agarravam  uns  aos  outros  para  n£o
serem atirados longe.

     O rapaz se virou ent£o para a M£o que Tudo Havia Escrito. E ao inv©s de
falar qualquer coisa, sentiu que o  Universo ficava  em silªncio, e ficou em
silªncio tamb©m.
     Uma for§a de Amor jorrou de seu cora§£o, e o rapaz come§ou a rezar. Era
uma ora§£o que  nunca tinha feito antes,  porque era uma ora§£o sem palavras
ou  sem pedidos. N£o estava agradecendo  pelas ovelhas haverem encontrado um
pasto,  nem implorando  para vender  mais cristais, nem  pedindo  para que a
mulher que havia encontrado estivesse esperando sua  volta. No silªncio  que
se seguiu, o  rapaz entendeu que o deserto, o vento, e o sol tamb©m buscavam
os sinais que aquela M£o havia escrito, e procuravam cumprir seus caminhos e
entender  o  que estava escrito  numa  simples esmeralda. Sabia que  aqueles
sinais  estavam espalhados na Terra e no Espa§o,  e que em sua aparªncia n£o
tinham qualquer motivo ou significado, e que nem os desertos, nem os ventos,
nem os  sãis, e nem os homens sabiam porque tinham  sido criados. Mas aquela
M£o  tinha um motivo para tudo isto, e sã ela era  capaz de operar milagres,
de  transformar  oceanos  em  desertos, e  homens  em  vento.  Porque sã ela
entendia que um des­gnio maior empurrava o Universo a um ponto onde  os seis
dias da cria§£o se transformariam na Grande Obra.


     E o rapaz mergulhou na Alma do Mundo, e viu que a Alma do  Mundo  era a
parte da Alma  de Deus, e viu que a Alma de  Deus era a  sua prãpria alma. E
que podia, ent£o, realizar milagres.




     O simum  soprou naquele  dia como jamais havia soprado.  Durante muitas
gera§åes os  ¡rabes contaram entre  si  a  lenda  de um rapaz que  havia  se
transformado em vento, quase destru­do um acampamento militar, e desafiado o
poder do mais importante general do deserto.
     Quando o simum parou de soprar, todos olharam para o lugar onde o rapaz
estava. Ele n£o estava mais l¡; estava junto a um sentinela quase coberto de
areia, e que vigiava o outro lado do acampamento.
     Os homens estavam apavorados com a bruxaria. Sã duas pessoas sorriam: o
Alquimista, porque tinha encontrado seu disc­pulo certo, e o General, porque
o disc­pulo tinha entendido a glãria de Deus.
     No  dia seguinte, o general  despediu-se  do  rapaz e do  Alquimista, e
pediu que uma escolta os acompanhasse at© onde os dois quisessem.




     Caminharam  o  dia  inteiro. Quando estava  entardecendo,  chegaram  em
frente a um mosteiro copta. O  Alquimista  dispensou a  escolta, e desceu de
seu cavalo.
     ­ Daqui para frente vocª vai sozinho ­ disse o Alquimista. ­ S£o apenas
trªs horas at© as Pir¢mides.
     ­ Obrigado ­ disse o rapaz. ­ Vocª me ensinou a Linguagem do Mundo.
     ­ Eu apenas recordei o que vocª j¡ sabia.
     O Alquimista bateu na porta do mosteiro. Um monge todo vestido de preto
veio atender. Conversaram alguma coisa em copta, e o  alquimista convidou  o
rapaz para entrar.
     ­ Pedi que me emprestasse um pouco a cozinha ­ disse ele.
     Foram at© a cozinha do mosteiro. O Alquimista acendeu o fogo, e o monge
trouxe  um pouco de chumbo,  que o Alquimista derreteu dentro de  um vaso de
ferro. Quando o chumbo tinha virado  l­quido, o Alquimista tirou do seu saco
aquele estranho ovo de vidro amarelado. Raspou uma  camada do tamanho  de um
fio de cabelo, envolveu-o em cera, e atirou na panela com o chumbo.
     A  mistura ganhou uma cor vermelha, como o  sangue. O Alquimista  ent£o
tirou  a panela do fogo e a  deixou esfriar. Enquanto isto, conversava com o
monge a respeito da guerra dos cl£s.
     Deve durar muito ­ disse ele para o monge.
     O monge estava aborrecido. Fazia tempo que as caravanas estavam paradas
em Gizeh,  esperando que a  guerra  acabasse.  "Mas seja feita a  vontade de
Deus", disse o monge.
     ­ Exatamente ­ respondeu o Alquimista.
     Quando  a  panela  acabou  de  esfriar,  o  monge  e  o  rapaz  olharam
deslumbrados. O chumbo tinha  secado na forma circular da panela, mas j¡ n£o
era mais chumbo. Era ouro.
     ­ Aprenderei a fazer isto um dia? ­ perguntou o rapaz.
     ­ Esta foi minha Lenda Pessoal, e n£o a sua ­ respondeu o Alquimista. ­
Mas queria lhe mostrar que © poss­vel.
     Caminharam de novo at© a porta do convento. Ali, o Alquimista dividiu o
disco em quatro partes.
     ­  Esta ©  para  vocª ­ disse ele, estendendo uma parte para o monge. ­
Por sua generosidade com os peregrinos.
     ­ Estou recebendo um pagamento al©m da minha generosidade ­ respondeu o
monge.
     ­ Jamais repita isto. A vida  pode escutar, e lhe dar  menos da prãxima
vez.
     Depois aproximou-se do rapaz.
     ­ Esta © para vocª. Para pagar o que deixou com o general.
     O rapaz ia dizer que era muito mais do que havia deixado com o general.
Mas ficou quieto, porque tinha ouvido o coment¡rio do Alquimista com o monge
...
     ­  Esta © para mim ­ disse o Alquimista,  guardando uma parte. ­ Porque
tenho que voltar pelo deserto, e existe uma guerra entre os cl£s.
     Ent£o pegou o quarto peda§o e deu de novo para o monge.
     ­ Esta © para o rapaz. Caso ele necessite.
     ­ Mas estou indo  em  busca do meu tesouro ­ disse o rapaz. Estou perto
dele agora!


     ­ E tenho certeza que ir¡ encontr¡-lo ­ falou o Alquimista.
     ­ Ent£o por que isto?
     ­ Porque vocª j¡ perdeu duas vezes,  com  o  ladr£o e com o general,  o
dinheiro que ganhou em  sua viagem. Eu sou um velho ¡rabe supersticioso, que
acredito nos prov©rbios de minha terra. E existe um prov©rbio que diz:
     "Tudo que acontece uma vez, pode nunca mais  acontecer.  Mas  tudo  que
acontece duas vezes, acontecer¡ certamente uma terceira".
     Montaram em seus cavalos.


     ­ Quero lhe contar uma histãria sobre sonhos ­ disse o Alquimista.
     O rapaz aproximou seu cavalo.
     ­ Na antiga Roma, na ©poca  do imperador  Tib©rio, vivia um homem muito
bom, que tinha dois filhos: um era militar, e quando entrou para o ex©rcito,
foi enviado para as mais  distantes  regiåes  do Imp©rio.  O outro filho era
poeta, e encantava toda Roma com seus belos versos.
     "Certa  noite, o velho  teve um sonho. Um  anjo lhe aparecia para dizer
que as palavras de um de seus filhos seriam  conhecidas e repetidas no mundo
inteiro, por todas as gera§åes vindouras. O velho homem acordou agradecido e
chorando naquela noite, porque a vida era generosa, e havia lhe revelado uma
coisa que qualquer pai teria orgulho de saber.
     "Pouco tempo depois, o velho morreu ao tentar salvar uma crian§a que ia
ser  esmagada  pelas  rodas de  uma  carruagem. Como tinha  se comportado de
maneira correta  e  justa por toda  a sua  vida, foi  direto  para o c©u,  e
encontrou-se com o anjo que havia aparecido em seu sonho.
     "­ Vocª foi um homem bom ­ disse-lhe o anjo. ­ Viveu sua existªncia com
amor,  e  morreu  com  dignidade. Posso realizar  agora qualquer  desejo que
tenha.
     "­ A vida  tamb©m foi boa para mim ­ respondeu o  velho. ­  Quando vocª
apareceu em um sonho, senti que todos os meus esfor§os estavam justificados.
Porque  os  versos  de meu  filho  ficar£o entre  os  homens  pelos  s©culos
vindouros. Nada tenho  a pedir para mim; entretanto,  todo pai se orgulharia
de ver a fama de algu©m que ele cuidou quando crian§a e educou quando jovem.
Gostaria de ver, no futuro distante, as palavras do meu filho.
     "O  anjo  tocou no ombro do velho, e os dois  foram projetados  para um
futuro  distante. Em  volta deles apareceu um lugar imenso, com milhares  de
pessoas, que falavam numa l­ngua estranha.
     "O velho chorou de alegria.
     "­  Eu sabia que os versos do meu  filho poeta  eram bons e  imortais ­
disse para o  anjo, entre l¡grimas. ­ Gostaria que  vocª me dissesse qual de
suas poesias estas pessoas est£o repetindo.
     "O anjo ent£o se aproximou do velho com carinho, e sentaram-se num  dos
bancos que havia naquele imenso lugar.
     "­ Os versos de seu filho poeta foram muito populares em Roma ­ disse o
anjo. ­ Todos gostavam, e se divertiam com  eles.  Mas  quando o  reinado de
Tib©rio  acabou, seus versos tamb©m  foram esquecidos. Estas palavras s£o de
seu filho que entrou para o ex©rcito.
     "O velho olhou surpreso para o anjo.


     "­ Seu filho foi servir num lugar  distante, e tornou-se centuri£o. Era
tamb©m um homem justo e bom. Certa tarde, um dos seus servos ficou doente, e
estava para morrer. Seu  filho, ent£o,  ouviu falar de um rabi que curava os
doentes,  e  andou  dias e  dias em  busca deste homem.  Enquanto caminhava,
descobriu que o homem que estava procurando era o  Filho de  Deus. Encontrou
outras pessoas que  haviam sido curadas por ele, aprendeu seus ensinamentos,
e mesmo sendo um centuri£o romano converteu-se   sua f©. At© que certa manh£
chegou perto do Rabi.
     "­ Contou-lhe  que tinha um servo doente. E  o Rabi se prontificou a ir
at© sua casa. Mas  o centuri£o era um homem  de f©,  e olhando no fundo  dos
olhos do  Rabi, compreendeu que estava mesmo diante do Filho de Deus, quando
as pessoas em volta deles se levantaram.
     "­ Estas s£o as palavras  de seu filho ­ disse o  anjo ao velho . ­ S£o
as palavras que ele disse  ao Rabi naquele momento,  e que  nunca mais foram
esquecidas". Dizem: "Senhor eu n£o sou digno que entreis em minha casa,  mas
dizei uma sã palavra e meu servo ser¡ salvo".

     O Alquimista moveu seu cavalo.
     ­  N£o  importa  o   que  fa§a,  cada  pessoa   na  Terra  est¡  sempre
representando o papel principal da Histãria do mundo ­ disse ele.
     ­ E normalmente n£o sabe disto.
     O rapaz  sorriu.  Nunca  havia  pensado  que a  vida  pudesse  ser  t£o
importante para um pastor.
     ­ Adeus ­ disse o Alquimista.
     ­ Adeus ­ respondeu o rapaz.






     O rapaz caminhou  duas  horas e meia pelo deserto,  procurando  escutar
atentamente o que seu cora§£o  dizia. Era ele que iria revelar o local exato
onde o tesouro estava escondido.
     "Onde estiver seu tesouro, ali estar¡ tamb©m  o seu cora§£o", dissera o
Alquimista.
     Mas seu cora§£o falava em outras coisas.
     Contava com  orgulho a  histãria de um  pastor  que  havia deixado suas
ovelhas para seguir  um sono  que se  repetiu  duas noites. Contava da Lenda
Pessoal, e de muitos homens que  fizeram isto, que foram em busca  de terras
distantes  ou de mulheres bonitas, enfrentando os  homens de  sua ©poca  com
seus  preconceitos e conceitos. Falou durante todo  aquele tempo de viagens,
de descobertas, de livros e de grandes mudan§as.
     Quando ia come§ar a subir uma duna ­ e sã naquele momento ­ foi que seu
cora§£o sussurrou ao seu ouvido  ­ "esteja atento  para  o  lugar  onde vocª
chorar. Porque neste lugar estou eu, e neste lugar est¡ seu tesouro".
     O rapaz come§ou  a subir a duna lentamente. O c©u, coberto de estrelas,
mostrava de novo uma lua cheia; haviam caminhado um mªs  pelo deserto. A lua
iluminava  tamb©m  a duna, num jogo de sombras, que fazia com  que o deserto
parecesse um mar cheio de ondas, e fazia com que o rapaz se lembrasse do dia
em  que  soltara  livremente um  cavalo pelo deserto, dando um bom  sinal ao
Alquimista. Finalmente a lua iluminava o  silªncio do deserto, e  a  jornada
que fazem os homens que buscam tesouros.
     Quando, depois de  alguns  minutos, chegou ao topo da duna, seu cora§£o
deu um  salto.  Iluminadas pela luz da  lua cheia e  pelo branco do deserto,
erguiam-se majestosas e solenes as Pir¢mides do Egito.
     O rapaz caiu de joelhos e chorou. Agradecia a Deus por haver acreditado
em  sua Lenda Pessoal, e por haver encontrado certo dia um rei, um mercador,
um inglªs, e  um alquimista. Sobretudo, por haver  encontrado uma mulher  do
deserto, que lhe tinha  feito entender que o Amor jamais vai separar o homem
de sua Lenda Pessoal.
     Os  muitos  s©culos das  Pir¢mides  do Egito contemplavam,  do alto,  o
rapaz. Se ele quisesse, podia agora voltar  ao o¡sis, pegar F¡tima,  e viver
como simples pastor de ovelhas. Porque o Alquimista vivia  no deserto, mesmo
compreendendo  a Linguagem do  Mundo,  mesmo  sabendo  transformar chumbo em
ouro. N£o tinha que  mostrar  a  ningu©m  sua ciªncia e  sua  arte. Enquanto
caminhava  em  dire§£o     sua  Lenda  Pessoal,  havia  aprendido  tudo  que
precisava, e havia vivido tudo que tinha sonhado viver.
     Mas havia chegado ao seu tesouro, e uma obra sã est¡ completa quando  o
objetivo © atingido.  Ali, naquela duna, o rapaz havia chorado. Olhou para o
ch£o  e viu  que,  no  local onde haviam ca­do suas l¡grimas, um escaravelho
passeava. Durante o tempo que havia passado no deserto, tinha aprendido que,
no Egito, os escaravelhos eram o s­mbolo de Deus.
     Ali estava  mais um  sinal.  E  o  rapaz  come§ou a  cavar,  depois  de
lembrar-se do mercador de cristais; ningu©m conseguiria  ter uma Pir¢mide no
seu quintal, mesmo que amontoasse pedras por toda a sua vida.

     Durante a noite inteira  o rapaz cavou no lugar  marcado, sem encontrar
nada. Do alto das Pir¢mides, os s©culos o contemplavam, em silªncio .  Mas o
rapaz n£o desistia:


     cavava e cavava, lutando com o vento, que muitas vezes tornava a trazer
a  areia de volta para o buraco. Suas m£os ficaram  cansadas depois feridas,
mas o rapaz acreditava em seu cora§£o. E seu cora§£o dissera para cavar onde
suas l¡grimas ca­ssem.
     De  repente, quando  estava  tentando tirar algumas  pedras  que haviam
aparecido,  o  rapaz  ouviu passos.  Algumas  pessoas  se  aproximaram dele.
Estavam contra a lua, e o rapaz n£o podia ver seus olhos, nem seus rostos.
     ­ O que vocª est¡ fazendo a­? ­ perguntou um dos vultos.
     O rapaz  n£o  respondeu. Mas sentiu medo.  Tinha agora  um tesouro para
desenterrar, e por isso tinha medo.
     ­ Somos refugiados da guerra dos cl£s ­ disse outro vulto. ­ Precisamos
saber o que vocª esconde a­. Precisamos de dinheiro.
     ­ N£o escondo nada ­ respondeu o rapaz.
     Mas  um dos  rec©m-chegados agarrou-o  e  o  puxou para fora do buraco.
Outro come§ou a revistar seus bolsos. E encontraram o peda§o de ouro.
     ­ Ele tem ouro ­ disse um dos salteadores.
     A lua iluminou a face de quem o  estava revistando, e ele viu,  em seus
olhos, a morte.
     ­ Deve haver mais ouro escondido no ch£o ­ disse outro.
     E obrigaram o  rapaz a  cavar. O rapaz  continuou cavando,  e n£o havia
nada.  Ent£o  come§aram  a  bater  no  rapaz.  Espancaram o  rapaz  at©  que
aparecessem no c©u os primeiros raios de sol. Sua roupa ficou em frangalhos,
e ele sentiu que a morte estava prãxima.
     "De  que adianta o dinheiro,  se  tiver  que  morrer?  Poucas  vezes  o
dinheiro © capaz de livrar algu©m da morte", dissera o Alquimista.
     ­ Estou procurando um tesouro! ­ gritou finalmente o rapaz. E mesmo com
a boca  ferida e  inchada de  pancadas,  contou  aos  salteadores  que havia
sonhado duas vezes com um tesouro escondido junto das Pir¢mides do Egito.
     O  que parecia o  chefe ficou um  longo tempo em silªncio. Depois falou
com um deles:
     ­ Pode deix¡-lo. Ele n£o tem mais nada. Deve ter roubado este ouro.
     O rapaz caiu com o rosto na areia. Dois olhos procuraram os seus; era o
chefe dos salteadores. Mas o rapaz estava olhando as Pir¢mides.
     ­ Vamos embora ­ disse o chefe para os outros.
     Depois, virou-se para o rapaz:
     ­  Vocª  n£o vai morrer ­ disse. ­ Vai viver e aprender que o homem n£o
pode  ser t£o  estêpido. A­, neste  lugar  onde vocª est¡, eu tamb©m tive um
sonho repetido  h¡ quase dois anos atr¡s. Sonhei que devia ir at© os  campos
da Espanha, buscar  uma igreja em ru­nas onde os pastores  costumavam dormir
com suas ovelhas, e  que tinha um sicämoro crescendo dentro da sacristia, se
eu  cavasse  na  raiz  deste  sicämoro,  haveria  de  encontrar  um  tesouro
escondido. Mas n£o sou estêpido de cruzar um deserto sã porque tive um sonho
repetido.
     Depois foi embora.
     O rapaz  levantou-se  com  dificuldade,  e  olhou  mais uma vez para as
Pir¢mides.  As Pir¢mides sorriram  para  ele, e ele  sorriu de  volta, com o
cora§£o repleto de felicidade.
     Havia encontrado o tesouro.






     O rapaz chamava-se Santiago. Chegou na pequena igreja abandonada quando
j¡  estava quase anoitecendo.  O  sicämoro ainda  continuava na sacristia, e
ainda  se podiam ver  as estrelas atrav©s do teto  semidestru­do. Lembrou-se
que certa vez havia estado ali com suas ovelhas, e que tinha  sido uma noite
tranqìila, exceto pelo sonho.
     Agora ele estava sem o seu rebanho. Ao inv©s disto, trazia uma p¡.
     Ficou muito tempo olhando o c©u. Depois tirou do alforje uma garrafa de
vinho, e bebeu. Lembrou-se da noite  no deserto, quando tinha tamb©m  olhado
as estrelas e  bebido vinho com o Alquimista. Pensou nos muitos caminhos que
tinha andado, e  a maneira  estranha de  Deus  lhe mostrar o tesouro. Se n£o
tivesse acreditado em sonhos repetidos, n£o tinha encontrado a cigana, nem o
rei,  nem o salteador,  nem... "bom, a lista ©  muito grande.  Mas o caminho
estava escrito  pelos  sinais,  e eu n£o  tinha como errar",  disse  para si
mesmo.
     Dormiu  sem perceber, e quando acordou, o sol j¡ ia alto. Ent£o come§ou
a escavar a raiz do sicämoro.
     "Velho bruxo", pensava o rapaz. "Vocª sabia de  tudo. Deixou  at© mesmo
um  pouco de ouro para que eu pudesse voltar at©  esta  Igreja. O  monge riu
quando me viu voltar em frangalhos. N£o podia me poupar isto?"
     "N£o", ele escutou o  vento dizer: "Se eu tivesse lhe contado, vocª n£o
teria visto as Pir¢mides. S£o muito bonitas, n£o acha?"
     Era a voz do  Alquimista. O rapaz sorriu e continuou a cavar. Meia hora
depois, a p¡ bateu em algo sãlido. Uma hora depois ele tinha diante de si um
baê cheio  de velhas  moedas de  ouro  espanholas. Havia  tamb©m  pedrarias,
m¡scaras de ouro com penas brancas e vermelhas,  ­dolos de pedra  cravejados
de brilhantes. Pe§as de uma conquista que o pa­s j¡ havia esquecido h¡ muito
tempo, e que o conquistador se esquecera de contar para seus filhos.
     O rapaz tirou o  Urim  e o  Tumim do alforje. Tinha  utilizado  as duas
pedras apenas uma  vez, quando estava certa manh£,  num mercado. A  vida e o
seu caminho estiveram sempre cheios de sinais.
     Guardou o  Urim  e  o Tumim no baê de  ouro. Eram tamb©m  parte  de seu
tesouro, porque lembravam um velho rei que jamais tornaria a encontrar.
     "Realmente a vida © generosa com quem vive sua Lenda Pessoal", pensou o
rapaz.  Ent£o lembrou-se de  que tinha  que ir  at© Tarifa, e dar  um d©cimo
daquilo tudo  para a cigana. "Como  s£o espertos os ciganos", pensou. Talvez
fosse porque viajavam tanto.
     Mas  o vento voltou a  soprar. Era  o  Levante,  o vento  que vinha  da
frica. N£o  trazia o cheiro do deserto, nem a amea§a de invas£o dos mouros.
Ao inv©s disto, trazia um perfume que  ele conhecia bem, e o som de um beijo
­ que veio vindo devagar, devagar, at© parar em seus l¡bios.
     O rapaz sorriu. Era a primeira vez que ela fazia isto.
     ­ Estou indo, F¡tima ­ disse ele.




Last-modified: Thu, 21 Aug 2003 17:26:13 GMT
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