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Paulo Coelho. O Alquimista
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Date: 14 Aug 2003
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Edi§£o especial da p¡gina www.paulocoelho.com.br , venda proibida
‰ importante dizer alguma coisa sobre o fato de O Alquimista ser um
livro simbãlico, diferente de O Di¡rio de um Mago, que foi um trabalho de
n£o-fic§£o.
Durante onze anos de minha vida estudei Alquimia. A simples id©ia de
transformar metais em ouro, ou de descobrir o Elixir da Longa Vida, j¡ era
fascinante demais para passar despercebida a qualquer iniciante em Magia.
Confesso que o Elixir da Longa Vida me seduzia mais: antes de entender e
sentir a presen§a de Deus, a id©ia de que tudo ia acabar um dia era
desesperadora. De maneira que, ao saber da possibilidade de conseguir um
lquido capaz de prolongar por muitos anos minha existªncia, resolvi
dedicar- me de corpo e alma sua fabrica§£o.
Era uma ©poca de grandes transforma§åes sociais o come§o dos anos
setenta e n£o havia ainda publica§åes s©rias a respeito de Alquimia.
Comecei, como um dos personagens do livro, a gastar o pouco dinheiro que
tinha na compra de livros importados, e dedicava muitas horas do meu dia ao
estudo da sua simbologia complicada. Procurei duas ou trªs pessoas no Rio de
Janeiro que se dedicavam seriamente Grande Obra, e elas se recusaram a me
receber. Conheci tamb©m muitas outras pessoas que se diziam alquimistas,
possuam seus laboratãrios, e prometiam me ensinar os segredos da Arte em
troca de verdadeiras fortunas; hoje entendo que elas nada sabiam daquilo que
pretendiam ensinar.
Mesmo com toda a minha dedica§£o, os resultados eram absolutamente
nulos. N£o acontecia nada do que os manuais de Alquimia afirmavam em sua
complicada linguagem. Era um sem-fim de smbolos, de dragåes, leåes, sãis,
luas e mercêrios, e eu sempre tinha a impress£o de estar no caminho errado,
porque a linguagem simbãlica permite uma gigantesca margem de equvocos. Em
1973, j¡ desesperado com a ausªncia de progresso, cometi uma suprema
irresponsabilidade. Nesta ©poca eu era contratado pela Secretaria de
Educa§£o de Mato Grosso para dar aulas de teatro naquele estado, e resolvi
utilizar meus alunos em laboratãrios teatrais que tinham como tema a T¡boa
da Esmeralda. Esta atitude, aliada a algumas incursåes minhas nas ¡reas
pantanosas da Magia, fizeram com que no ano seguinte eu pudesse experimentar
na prãpria carne a verdade do prov©rbio: "Aqui se faz, aqui se paga". Tudo a
minha volta ruiu por completo.
Passei os prãximos seis anos de minha vida numa atitude bastante c©tica
com rela§£o a tudo que dissesse respeito ¡rea mstica. Neste exlio
espiritual, aprendi muitas coisas importantes: que sã aceitamos uma verdade
quando primeira a negamos do fundo da alma, que n£o devemos fugir de nosso
prãprio destino, e que a m£o de Deus © infinitamente generosa, apesar de Seu
rigor.
Em 1981, conheci RAM e o meu Mestre, que iria conduzir-me de volta ao
caminho que est¡ tra§ado para mim. E enquanto ele me treinava em seus
ensinamentos, voltei a estudar Alquimia por minha prãpria conta. Certa
noite, enquanto convers¡vamos depois de uma exaustiva sess£o de telepatia,
perguntei porque a linguagem dos alquimistas era t£o vaga e t£o complicada.
Existem trªs tipos de alquimistas disse meu Mestre. Aqueles que
s£o vagos porque n£o sabem o que est£o falando; aqueles que s£o vagos porque
sabem o que est£o falando, mas sabem tamb©m que a linguagem da Alquimia ©
uma linguagem dirigida ao cora§£o, e n£o raz£o.
E qual o terceiro tipo? perguntei.
Aqueles que jamais ouviram falar em Alquimia, mas que conseguiram,
atrav©s de suas vidas, descobrir a Pedra Filosofal.
E com isto, meu Mestre que pertencia ao segundo tipo resolveu me
dar aulas de Alquimia. Descobri que a linguagem simbãlica, que tanto me
irritava e me desnorteava, era a ênica maneira de se atingir a Alma do
Mundo, ou o que Jung chamou de "inconsciente coletivo". Descobri a Lenda
Pessoal, e os Sinais de Deus, verdades que meu raciocnio intelectual se
recusava a aceitar por causa de sua simplicidade. Descobri que atingir a
Grande Obra n£o © tarefa de poucos, mas de todos os seres humanos sobre a
face da Terra. ‰ claro que nem sempre a Grande Obra vem sob a forma de um
ovo e de um frasco com lquido, mas todos nãs podemos sem qualquer sombra
de dêvida mergulhar na Alma do Mundo.
Por isso, "O Alquimista" © tamb©m um texto simbãlico. No decorrer de
suas p¡ginas, al©m de transmitir tudo o que aprendi a respeito, procuro
homenagear grandes escritores que conseguiram atingir a Linguagem Universal:
Hemingway, Blake, Borges (que tamb©m utilizou a histãria persa para um de
seus contos), Malba Tahan, entre outros.
Para completar este extenso pref¡cio, e ilustrar o que meu Mestre
queria dizer com o terceiro tipo de alquimistas, vale a pena recordar uma
histãria que ele mesmo me contou no seu laboratãrio.
Nossa Senhora, com o Menino Jesus em seus bra§os, resolveu descer
Terra e visitar um mosteiro. Orgulhosos, todos os padres fizeram uma grande
fila, e cada um chegava diante da Virgem para prestar sua homenagem. Um
declamou belos poemas, outro mostrou suas iluminuras para a Bblia, um
terceiro disse o nome de todos os santos. E assim por diante, monge apãs
monge, homenageou Nossa Senhora e o Menino Jesus.
No êltimo lugar da fila, havia um padre, o mais humilde do convento,
que nunca havia aprendido os s¡bios textos da ©poca. Seus pais eram pessoas
simples, que trabalhavam num velho circo das redondezas, e tudo que lhe
haviam ensinado era atirar bolas para cima e fazer alguns malabarismos.
Quando chegou sua vez, os outros padres quiseram encerrar as
homenagens, porque o antigo malabarista n£o tinha nada de importante para
dizer, e podia desmoralizar a imagem do convento. Entretanto, no fundo do
seu cora§£o, tamb©m ele sentia uma imensa necessidade de dar alguma coisa de
si para Jesus e a Virgem.
Envergonhado, sentindo o olhar reprovador de seus irm£os, ele tirou
algumas laranjas do bolso e come§ou a jog¡-las para cima, fazendo
malabarismos, que era a ênica coisa que sabia fazer.
Foi sã neste instante que o Menino Jesus sorriu, e come§ou a bater
palmas no colo de Nossa Senhora. E foi para ele que a Virgem estendeu os
bra§os, deixando que segurasse um pouco o menino.
Para J.
Alquimista que conhece e utiliza os segredos da Grande Obra.
Indo eles pelo caminho, entraram em um certo povoado. E certa mulher,
chamada Marta, hospedou-o na sua casa.
Tinha ela uma irm£, chamada Maria, que sentou-se aos p©s do Senhor, e
ficou ouvindo seus ensinamentos.
Marta agitava-se de um lado para o outro, ocupada em muitos servi§os.
Ent£o aproximou-se de Jesus e disse: Senhor! N£o te importas de que
eu fique a servir sozinha? Ordena a minha
irm£ que venha ajudar-me!
Respondeu-lhe o Senhor:
Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas.
"Maria, entretanto, escolheu a melhor parte, e esta n£o lhe ser¡
tirada."
O Alquimista pegou um livro que algu©m na caravana havia trazido. O
volume estava sem capa, mas conseguiu identificar seu autor: Oscar Wilde.
Enquanto folheava suas p¡ginas, encontrou uma histãria sobre Narciso.
O Alquimista conhecia a lenda de Narciso, um belo rapaz que todos os
dias ia contemplar sua prãpria beleza num lago. Era t£o fascinado por si
mesmo que certo dia caiu dentro do lago e morreu afogado. No lugar onde
caiu, nasceu uma flor, que chamaram de narciso.
Mas n£o era assim que Oscar Wilde acabava a histãria.
Ele dizia que quando Narciso morreu, vieram as Or©iades deusas do
bosque e viram o lago transformado, de um lago de ¡gua doce, num c¢ntaro
de l¡grimas salgadas.
Por que vocª chora? perguntaram as Or©iades.
Choro por Narciso disse o lago
Ah, n£o nos espanta que vocª chore por Narciso continuaram elas.
Afinal de contas, apesar de todas nãs sempre corrermos atr¡s dele pelo
bosque, vocª era o ênico que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua
beleza.
Mas Narciso era belo? perguntou o lago.
Quem mais do que vocª poderia saber disso? responderam, surpresas,
as Or©iades.
Afinal de contas, era em suas margens que ele se debru§ava todos os
dias.
O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse:
Eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que Narciso era
belo.
"Choro por Narciso porque, todas as vezes que ele se deitava sobre
minhas margens eu podia ver, no fundo dos seus olhos, minha prãpria beleza
refletida".
"Que bela histãria", disse o Alquimista.
O rapaz chamava-se Santiago. Estava come§ando a escurecer quando chegou
com seu rebanho diante de uma velha igreja abandonada. O teto tinha
despencado h¡ muito tempo, e um enorme sicämoro havia crescido no local que
antes abrigava a sacristia.
Resolveu passar a noite ali. Fez com que todas as ovelhas entrassem
pela porta em runas, e ent£o colocou algumas t¡buas de modo que elas n£o
pudessem fugir durante a noite. N£o haviam lobos naquela regi£o, mas certa
vez um animal havia escapado durante a noite, e ele gastara todo o dia
seguinte procurando a ovelha desgarrada.
Forrou o ch£o com seu casaco e deitou-se, usando o livro que acabara de
ler como travesseiro. Lembrou-se, antes de dormir, que precisava come§ar a
ler livros mais grossos: demoravam mais para acabar e eram travesseiros mais
confort¡veis durante a noite.
Ainda estava escuro quando acordou. Olhou para cima, e viu que as
estrelas brilhavam atrav©s do teto semidestrudo.
"Queria dormir um pouco mais", pensou ele. Tivera o mesmo sonho da
semana passada, e outra vez acordara antes do final.
Levantou-se e tomou um gole de vinho. Depois pegou o cajado e come§ou a
acordar as ovelhas que ainda dormiam. Ele havia reparado que, assim que
acordava, a maior parte dos animais tamb©m come§ava a despertar. Como se
houvesse alguma misteriosa energia unindo sua vida vida daquelas ovelhas
que h¡ dois anos percorriam com ele a terra, em busca de ¡gua e alimento.
"Elas j¡ se acostumaram tanto a mim que conhecem meus hor¡rios", disse em
voz baixa. Refletiu um momento, e pensou que podia ser tamb©m o contr¡rio:
ele que havia se acostumado ao hor¡rio das ovelhas.
Haviam certas ovelhas, por©m, que demoravam um pouco mais para
levantar. O rapaz acordou uma a uma com seu cajado, chamando cada qual pelo
seu nome. Sempre acreditara que as ovelhas eram capazes de entender o que
ele falava. Por isso costumava s vezes ler para elas os trechos de livros
que o haviam impressionado, ou falar da solid£o e da alegria de um pastor no
campo, ou comentar sobre as êltimas novidades que via nas cidades por onde
costumava passar.
Nos êltimos dois dias, por©m, seu assunto tinha sido praticamente um
sã: a menina, filha do comerciante, que morava na cidade por onde ia chegar
daqui a quatro dias. Tinha estado apenas uma vez l¡, no ano anterior. O
comerciante era dono de uma loja de tecidos, e gostava sempre de ver as
ovelhas tosquiadas na sua frente, para evitar falsifica§åes. Um certo amigo
tinha indicado a loja, e o pastor levou l¡ suas ovelhas.
"Preciso vender alguma l£", disse para o comerciante.
A loja do homem estava cheia, e o comerciante pediu que o pastor
esperasse at© o entardecer. Ele sentou-se na cal§ada da loja e tirou um
livro do alforje.
N£o sabia que os pastores s£o capazes de ler livros disse uma voz
feminina ao seu lado.
Era uma mo§a tpica da regi£o de Andaluzia, com seus cabelos negros
escorridos, e os olhos que lembravam vagamente os antigos conquistadores
mouros.
‰ porque as ovelhas ensinam mais que os livros respondeu o rapaz.
Ficaram conversando por mais de duas horas. Ela contou que era filha do
comerciante, e falou da vida na aldeia, onde cada dia era igual ao outro. O
pastor contou dos campos de Andaluzia, das êltimas novidades que viu nas
cidades onde visitara. Estava contente por n£o precisar conversar sempre com
as ovelhas.
Como aprendeu a ler? perguntou a mo§a a certa altura.
Como todas as outras pessoas respondeu o rapaz. Na escola.
E, se sabe ler, ent£o por que © apenas um pastor?
O rapaz deu uma desculpa qualquer para n£o responder aquela pergunta.
Ele tinha certeza de que a mo§a jamais entenderia. Continuou a contar suas
histãrias de viagem, e os pequenos olhos mouros abriam-se e fechavam-se de
espanto e surpresa. € medida que o tempo foi passando, o rapaz come§ou a
desejar que aquele dia n£o acabasse nunca, que o pai da mo§a ficasse ocupado
por muito tempo e o mandasse esperar por trªs dias. Percebeu que estava
sentindo uma coisa que nunca havia sentido antes: vontade de ficar morando
numa mesma cidade para sempre. Com a menina de cabelos negros, os dias nunca
seriam iguais.
Mas o comerciante finalmente chegou e mandou que ele tosquiasse quatro
ovelhas. Depois, pagou-lhe o que era devido, e pediu que voltasse no ano
seguinte.
Agora faltavam apenas quatro dias para chegar de novo mesma aldeia.
Estava excitado e ao mesmo tempo inseguro: talvez a menina j¡ tivesse
esquecido. Por ali passavam muitos pastores para vender l£.
N£o tem import¢ncia disse o rapaz para as suas ovelhas. Eu tamb©m
conhe§o outras meninas em outras cidades.
Mas no fundo do seu cora§£o, ele sabia que tinha import¢ncia. E que
tanto os pastores, como os marinheiros, como os caixeiro-viajantes, sempre
conheciam uma cidade onde havia algu©m capaz de fazer com que esquecessem a
alegria de viajar solto pelo mundo.
O dia come§ou a raiar e o pastor colocou as ovelhas seguindo em dire§£o
ao sol. "Elas nunca precisam tomar uma decis£o", pensou ele. "Talvez por
isso fiquem sempre juntos de mim". A ênica necessidade que as ovelhas
sentiam era de ¡gua e de alimento. Enquanto o rapaz conhecesse os melhores
pastos em Andaluzia, elas seriam sempre suas amigas. Mesmo que os dias
fossem todos iguais, com longas horas se arrastando entre o nascer e o
pär-do-sol; mesmo que elas jamais tivessem lido um sã livro em suas curtas
vidas, e n£o conhecessem a lngua dos homens que contavam as novidades nas
aldeias. Elas estavam contentes com ¡gua e alimento, e isto bastava. Em
troca, ofereciam generosamente sua l£, sua companhia, e de vez em quando
sua carne.
"Se hoje eu me tornasse um monstro e resolvesse matar uma por uma, elas
sã iam perceber depois que quase todo o rebanho tivesse sido exterminado",
pensou o rapaz. "Porque confiam em mim, e se esqueceram de confiar nos seus
prãprios instintos. Sã porque as conduzo ao alimento e comida".
O rapaz come§ou a estranhar seus prãprios pensamentos. Talvez a igreja,
com aquele sicämoro crescendo dentro, fosse mal-assombrada. Tinha feito com
que sonhasse um mesmo sonho pela segunda vez, e estava lhe dando uma
sensa§£o de raiva contra suas companheiras, sempre t£o fi©is. Bebeu um pouco
de vinho que havia sobrado do jantar na noite anterior, e apertou contra o
corpo o seu casaco. Ele sabia que daqui a algumas horas, com o sol a pino, o
calor seria t£o forte que n£o ia poder
conduzir as ovelhas pelo campo. Era a hora que toda a Espanha dormia no
ver£o. O calor durava at© a noite, e durante todo este tempo ele tinha que
ficar carregando o casaco. Entretanto, quando pensava em reclamar do peso,
sempre lembrava que por causa dele n£o havia sentido frio de manh£.
"Temos que estar sempre preparados para as surpresas do tempo", pensava
ent£o ele, e sentia-se grato pelo peso do casaco.
O casaco tinha um motivo, e o rapaz tamb©m. Em dois anos pelas
plancies de Andaluzia ele j¡ sabia de cor todas as cidades da regi£o, e
esta era a grande raz£o de sua vida; viajar. Estava planejando explicar
desta vez menina porque um simples pastor sabe ler: havia estado at© os
dezesseis anos num semin¡rio. Seus pais queriam que ele fosse padre, e
motivo de orgulho para uma simples famlia camponesa, que trabalhava apenas
para comida e ¡gua, como suas ovelhas. Estudou latim, espanhol, e teologia.
Mas desde crian§a sonhava em conhecer o mundo, e isto era muito mais
importante do que conhecer Deus ou os pecados dos homens. Certa tarde, ao
visitar a famlia, havia tomado coragem e dito para seu pai que n£o queria
ser padre. Queria viajar.
Homens de todo o mundo j¡ passaram por esta aldeia, filho disse o
pai. Vªm em busca de coisas novas, mas continuam as mesmas pessoas. V£o
at© o morro conhecer o castelo e acham que o passado era melhor que o
presente. Tªm cabelos louros ou pele escura, mas s£o iguais aos homens de
nossa aldeia.
Mas n£o conhe§o os castelos das terras de onde eles vªm retrucou o
rapaz.
Estes homens, quando conhecem nossos campos e nossas mulheres, dizem
que gostariam de viver para sempre aqui continuou o pai.
Quero conhecer as mulheres e as terras de onde eles vieram disse o
rapaz. Porque eles nunca ficam por aqui.
Os homens trazem a bolsa cheia de dinheiro disse mais uma vez o
pai. Entre nãs, sã os pastores viajam.
Ent£o serei pastor.
O pai n£o disse mais nada. No dia seguinte deu-lhe uma bolsa com trªs
antigas moedas de ouro espanholas.
Achei certo dia no campo. Iam ser da Igreja, como seu dote. Compre
seu rebanho e corra o mundo at© aprender que nosso castelo © o mais
importante, e nossas mulheres s£o as mais belas.
E o aben§oou. Nos olhos do pai ele leu tamb©m a vontade de correr o
mundo. Uma vontade que ainda vivia, apesar das dezenas de anos que ele a
tentou sepultar com ¡gua, comida, e o mesmo lugar para dormir toda noite.
O horizonte se tingiu de vermelho, e depois apareceu o sol. O rapaz
lembrou-se da conversa com o pai e sentiu-se alegre; tinha j¡ conhecido
muitos castelos e muitas mulheres (mas nenhuma igual quela que o esperava
em dois dias). Tinha um casaco, um livro que podia trocar por outro, e um
rebanho de ovelhas. O mais importante, entretanto, © que todo dia realizava
o grande sonho de sua vida; viajar. Quando cansasse dos campos de Andaluzia,
podia vender suas ovelhas e tornar-se marinheiro. Quando cansasse do mar,
teria conhecido muitas cidades, muitas mulheres, muitas oportunidades de ser
feliz.
"N£o sei como buscam Deus no semin¡rio", pensou, enquanto olhava o sol
que nascia. Sempre que possvel, buscava um caminho diferente para andar.
Nunca havia estado naquela igreja antes, apesar de haver passado tantas
vezes por ali. O mundo era grande e inesgot¡vel, e se ele deixasse que as
ovelhas o guiassem apenas um pouquinho, ia terminar descobrindo mais coisas
interessantes. "O problema © que elas n£o se d£o conta de que est£o fazendo
caminhos novos cada dia. N£o percebem que os pastos mudaram, que as esta§åes
s£o diferentes porque est£o apenas ocupadas com ¡gua e comida."
"Talvez seja assim com todos nãs" pensou o pastor. "Mesmo comigo, que
n£o penso em outras mulheres desde que conheci a filha do comerciante".
Olhou o c©u, e pelos seus c¡lculos estaria antes do almo§o em Tarifa. L¡
poderia trocar seu livro por um volume mais grosso, encher a garrafa de
vinho, e fazer a barba e o cabelo; tinha que estar pronto para encontrar a
menina, e n£o queria pensar na possibilidade de outro pastor ter chegado
antes dele, com mais ovelhas, para pedir sua m£o.
"‰ justamente a possibilidade de realizar um sonho que torna a vida
interessante", refletiu enquanto olhava novamente o c©u e apressava o passo.
Tinha acabado de se lembrar que em Tarifa morava uma velha capaz de
interpretar sonhos. E ele tinha tido um sonho repetido aquela noite.
A velha conduziu o rapaz at© um quarto no fundo da casa, separado da
sala por uma cortina feita de tiras de pl¡stico colorido. L¡ dentro tinha
uma mesa, uma imagem do Sagrado Cora§£o de Jesus, e duas cadeiras.
A velha sentou-se e pediu que ele fizesse o mesmo. Depois segurou as
duas m£os do rapaz e rezou baixo.
Parecia uma reza cigana. O rapaz j¡ havia encontrado muitos ciganos
pelo caminho; eles viajavam e entretanto n£o cuidavam de ovelhas. As pessoas
diziam que a vida de um cigano era sempre enganar aos outros. Diziam tamb©m
que eles tinham pacto com demänios, e que raptavam crian§as para servirem de
escravas em seus misteriosos acampamentos. Quando era pequeno, o rapaz
sempre tinha morrido de medo de ser raptado pelos ciganos, e este temor
antigo voltou enquanto a velha segurava suas m£os.
"Mas existe a imagem do Sagrado Cora§£o de Jesus", pensou ele,
procurando ficar mais calmo. N£o queria que sua m£o come§asse a tremer e a
velha percebesse seu medo . Rezou um pai-nosso em silªncio.
Que interessante disse a velha, sem tirar os olhos da m£o do rapaz.
E voltou a ficar quieta.
O rapaz estava ficando nervoso. Suas m£os come§aram involuntariamente a
tremer, e a velha percebeu. Ele puxou as m£os rapidamente.
N£o vim aqui para ler as m£os disse, j¡ arrependido de ter entrado
naquela casa. Pensou por um momento que era melhor pagar a consulta e ir-se
embora sem saber de nada. Estava dando import¢ncia demais a um sonho
repetido.
Vocª veio saber de sonhos respondeu a velha. E os sonhos s£o a
linguagem de Deus. Quando ele fala a linguagem do mundo, eu posso
interpretar. Mas se ele falar a linguagem de sua alma, sã vocª pode
entender. E vou cobrar a consulta de qualquer maneira.
Mais um truque, pensou o rapaz. Entretanto, resolveu arriscar. Um
pastor corre sempre o risco dos lobos ou da seca, e isto © que faz a
profiss£o de pastor mais excitante.
Tive o mesmo sonho duas vezes seguidas disse. Sonhei que estava
num pasto com minhas ovelhas quando aparecia uma crian§a, e come§ava a
brincar com os animais. N£o gosto que mexam nas minhas ovelhas, elas ficam
com medo de estranhos. Mas as crian§as sempre conseguem mexer com os animais
sem que eles se assustem. N£o sei porquª. N£o sei como os animais sabem a
idade dos seres humanos.
Volte para seu sonho disse a velha. Tenho uma panela no fogo.
Al©m disso vocª tem pouco dinheiro e n£o pode tomar todo o meu tempo.
A crian§a continuava a brincar com as ovelhas por algum tempo
continuou o rapaz, um pouco constrangido. E de repente, me pegava pelas
m£os e me levava at© as Pir¢mides do Egito.
O rapaz esperou um pouco para ver se a velha sabia o que eram as
Pir¢mides do Egito. Mas a velha continuou quieta.
Ent£o, nas Pir¢mides do Egito, ele falou as trªs êltimas palavras
lentamente, para que a velha pudesse entender bem a crian§a me dizia: "se
vocª vier at© aqui, vai encontrar um tesouro escondido". E quando ela foi me
mostrar o local exato, eu acordei. Nas duas vezes.
A velha continuou em silªncio por algum tempo. Depois tornou a pegar as
m£os do rapaz e estud¡-las atentamente.
N£o vou lhe cobrar nada agora disse a velha. Mas quero um d©cimo do
tesouro, se vocª encontr¡-lo.
O rapaz riu. De felicidade. Ent£o iria economizar o pouco dinheiro que
tinha, por causa de um sonho que falava em tesouros escondidos! A velha
devia ser mesmo uma cigana os ciganos s£o burros.
Ent£o interprete o sonho pediu o rapaz.
Antes jure. Jure que vocª vai me dar a d©cima parte do seu tesouro em
troca do que eu lhe disser.
O rapaz jurou. A velha pediu para que ele repetisse o juramento olhando
para a imagem do Sagrado Cora§£o de Jesus.
‰ um sonho da Linguagem do Mundo disse ela. Posso interpret¡-lo,
e © uma interpreta§£o muito difcil. Por isso acho que mere§o minha parte no
seu achado.
"E a interpreta§£o © esta: vocª deve ir at© as Pir¢mides do Egito.
Nunca ouvi falar delas, mas se foi uma crian§a que lhe mostrou, © porque
existem. L¡ vocª encontrar¡ um tesouro que lhe far¡ rico".
O rapaz ficou surpreso, e depois irritado. N£o precisava ter procurado
a velha para isto.
Finalmente lembrou-se de que n£o estava pagando nada.
Para isto eu n£o precisava perder meu tempo disse.
Por isso lhe falei que seu sonho era difcil. As coisas simples s£o
as mais extraordin¡rias, e sã os s¡bios conseguem vª-las. J¡ que n£o sou uma
s¡bia, tenho que conhecer outras artes, como a leitura de m£os.
E como eu vou chegar at© o Egito?
Eu sã interpreto sonhos. N£o sei transform¡-los em realidade. Por
isso tenho que viver do que minhas filhas me d£o.
E se eu n£o chegar at© o Egito?
Eu fico sem pagamento. N£o ser¡ a primeira vez.
E a velha n£o disse mais nada. Pediu para que o rapaz sasse, pois j¡
tinha perdido muito tempo com ele.
O rapaz saiu decepcionado e decidido a nunca mais acreditar em sonhos.
Lembrou-se de que tinha v¡rias providªncias a tomar: foi ao armaz©m arranjar
alguma comida, trocou seu livro por um livro mais grosso, e sentou-se num
banco da pra§a para saborear o vinho novo que havia comprado. Era um dia
quente, e o vinho, por um destes mist©rios insond¡veis, conseguia resfriar
um pouco seu corpo. As ovelhas estavam na entrada da cidade, no est¡bulo de
um novo amigo seu. Conhecia muita gente por aquelas bandas e por isso
gostava de viajar. A gente sempre acaba fazendo amigos novos, e n£o precisa
ficar com eles dia apãs dia. Quando a gente vª sempre as mesmas pessoas e
isto acontecia no semin¡rio terminamos fazendo com que elas passem a fazer
parte de nossas vidas. E como elas fazem parte de nossas vidas, passam
tamb©m a querer modificar nossas vidas. Se a gente n£o for como elas esperam
ficar, chateadas. Porque todas as pessoas tem a no§£o exata de como devemos
viver nossa vida.
E nunca tªm no§£o de como devem viver as suas prãprias vidas. Como a
mulher dos sonhos, que n£o sabia transform¡-los em realidade.
Resolveu esperar o sol descer um pouco, antes de seguir com suas
ovelhas em dire§£o ao campo. Daqui a trªs dias iria estar com a filha do
comerciante.
Come§ou a ler o livro que tinha conseguido com o padre de Tarifa. Era
um livro grosso, que falava de um enterro logo na primeira p¡gina. Al©m
disso, o nome dos personagens eram complicadssimos. Se algum dia escrevesse
um livro, pensou ele, ia colocar um personagem aparecendo de cada vez, para
que os leitores n£o tivessem que ficar decorando nomes.
Quando conseguiu concentrar-se um pouco na leitura, e era boa, porque
falava de um enterro na neve, o que lhe transmitia uma sensa§£o de frio
debaixo daquele imenso sol um velho sentou-se ao seu lado e come§ou a
puxar conversa.
O que eles est£o fazendo? perguntou o velho, apontando para as
pessoas da pra§a.
Trabalhando respondeu o rapaz, secamente, e voltou a fingir que
estava concentrado na leitura. Na verdade, estava pensando em tosquiar as
ovelhas na frente da filha do comerciante, para ela atestar como ele era
capaz de fazer coisas interessantes. J¡ havia imaginado esta cena uma por§£o
de vezes; em todas elas, a menina ficava deslumbrada quando ele come§ava a
lhe explicar que as ovelhas devem ser tosquiadas de tr¡s para frente. Tamb©m
tentava se lembrar de algumas boas histãrias para contar a ela enquanto
tosquiava as ovelhas. A maior parte ele tinha lido nos livros, mas iria
contar como se tivesse vivido pessoalmente. Ela nunca ia saber a diferen§a,
porque n£o sabia ler livros.
O velho, entretanto, insistiu. Falou que estava cansado, com sede, e
pediu um gole de vinho ao rapaz. O rapaz ofereceu sua garrafa; talvez o
velho ficasse quieto.
Mas o velho queria conversar de qualquer maneira. Perguntou que livro o
rapaz estava lendo. Ele pensou em ser rude e mudar de banco, mas seu pai
havia lhe ensinado o respeito pelos mais velhos. Ent£o estendeu o livro para
o velho, por duas razåes: a primeira © que n£o sabia pronunciar o ttulo. E
a segunda era que, se o velho n£o soubesse ler, ia ele mesmo mudar de banco
para n£o sentir-se humilhado.
Humm... disse o velho, olhando o volume por todos os lados, como se
fosse um objeto estranho. ‰ um livro importante, mas © muito chato.
O rapaz ficou surpreso. O velho tamb©m lia, e j¡ lera aquele livro. E
se o livro era chato como ele dizia, ainda dava tempo de trocar por outro.
‰ um livro que fala o que quase todos os livros falam continuou o
velho. Da incapacidade que as pessoas tªm de escolher seu prãprio destino.
E termina fazendo com que todo mundo acredite na maior mentira do mundo.
Qual © a maior mentira do mundo? indagou surpreso o rapaz.
‰ esta: em determinado momento de nossa existªncia, perdemos o
controle de nossas vidas, e ela passa a ser governada pelo destino. Esta © a
maior mentira do mundo.
Comigo n£o aconteceu isto disse o rapaz. Queriam que eu fosse
padre, e eu resolvi ser pastor.
Assim © melhor disse o velho. Porque vocª gosta de viajar.
"Ele adivinhou meu pensamento", refletiu o rapaz. O velho, entretanto,
folheava o livro grosso, sem a menor inten§£o de devolvª-lo. O rapaz notou
que ele vestia uma roupa estranha; parecia um ¡rabe, o que n£o era raro
naquela regi£o. A frica ficava a apenas algumas horas da Tarifa; e era sã
cruzar o pequeno estreito num barco. Muitas vezes apareciam ¡rabes na
cidade, fazendo compras e rezando ora§åes estranhas v¡rias vezes por dia.
De onde © o senhor? perguntou.
De muitas partes.
Ningu©m pode ser de muitas partes o rapaz falou. Eu sou um pastor
e estou em muitas partes, mas sou de um ênico lugar, de uma cidade perto de
um castelo antigo. Ali foi onde nasci.
Ent£o podemos dizer que eu nasci em Sal©m.
O rapaz n£o sabia onde era Sal©m, mas n£o quis perguntar para n£o
sentir- se humilhado com a prãpria ignor¢ncia. Ficou mais algum tempo
olhando a pra§a. As pessoas iam e vinham, e pareciam muito ocupadas.
Como est¡ Sal©m? perguntou o rapaz, procurando alguma pista.
Como sempre esteve.
Ainda n£o era uma pista. Mas sabia que Sal©m n£o estava em Andaluzia.
Sen£o, ele j¡ a teria conhecido.
E o que vocª faz em Sal©m? insistiu.
O que fa§o em Sal©m? o velho pela primeira vez deu uma gostosa
gargalhada. Ora, eu sou o Rei de Sal©m!
As pessoas dizem coisas muito estranhas, pensou o rapaz. €s vezes ©
melhor estar com as ovelhas, que s£o caladas, e apenas procuram alimento e
¡gua. Ou © melhor estar com os livros, que contam estãrias incrveis sempre
nas horas que a gente quer ouvir. Mas quando a gente fala com pessoas, elas
dizem certas coisas e ficamos sem saber como continuar a conversa.
Meu nome © Melquisedec disse o velho. Quantas ovelhas vocª tem?
O suficiente respondeu o rapaz. O velho estava querendo saber
demais sobre sua vida.
Ent£o estamos diante de um problema. N£o posso ajud¡-lo enquanto vocª
achar que tem ovelhas suficientes.
O rapaz se irritou. N£o estava pedindo ajuda. O velho © que tinha
pedido vinho, conversa, e livro.
Me devolva o livro disse. Tenho que ir buscar minhas ovelhas e
seguir adiante.
Me dª um d©cimo de suas ovelhas disse o velho. E eu lhe ensino
como chegar at© o tesouro escondido.
O rapaz tornou ent£o a lembrar-se do sonho, e de repente tudo ficou
claro. A velha n£o tinha cobrado nada, mas o velho que era talvez seu
marido ia conseguir arrancar muito mais dinheiro em troca de uma
informa§£o que n£o existia. O velho devia ser cigano tamb©m.
Antes que o rapaz dissesse qualquer coisa, por©m, o velho abaixou-se,
pegou um graveto, e come§ou a escrever na areia da pra§a. Quando ele se
abaixou, alguma coisa brilhou dentro do seu peito, com tanta intensidade que
quase cegou o rapaz. Mas num movimento r¡pido demais para algu©m de sua
idade, tornou a cobrir o brilho com o manto. Os olhos do rapaz voltaram ao
normal e ele pode enxergar o que o velho estava escrevendo.
Na areia da pra§a principal da pequena cidade, ele leu o nome do seu
pai e de sua m£e.
Leu a histãria de sua vida at© aquele momento, as brincadeiras de
inf¢ncia, as noites frias do semin¡rio. Leu o nome da filha do comerciante,
que n£o sabia. Leu coisas que jamais contara para algu©m, como o dia em que
roubou a arma do seu pai para matar veados, ou sua primeira e solit¡ria
experiªncia sexual.
"Sou o Rei de Sal©m", dissera o velho.
Por que um rei conversa com um pastor? perguntou o rapaz,
envergonhado e admiradssimo.
Existem v¡rias razåes. Mas vamos dizer que a mais importante © que
vocª tem sido capaz de cumprir sua Lenda Pessoal.
O rapaz n£o sabia o que era Lenda Pessoal.
‰ aquilo que vocª sempre desejou fazer. Todas as pessoas, no come§o
da juventude, sabem qual © sua Lenda Pessoal.
"Nesta altura da vida, tudo © claro, tudo © possvel, e elas n£o tªm
medo de sonhar e desejar tudo aquilo que gostariam de ver fazer em suas
vidas. Entretanto, medida em que o tempo vai passando, uma misteriosa
for§a come§a a tentar provar que © impossvel realizar a Lenda Pessoal.
O que o velho estava dizendo n£o fazia muito sentido para o rapaz. Mas
ele queria saber o que eram "for§as misteriosas"; a filha do comerciante ia
ficar boquiaberta com isto.
S£o as for§as que parecem ruins, mas na verdade est£o ensinando a
vocª como realizar sua Lenda Pessoal. Est£o preparando seu esprito e sua
vontade, porque existe uma grande verdade neste planeta: seja vocª quem for
ou o que fa§a, quando quer com vontade alguma coisa, © porque este desejo
nasceu na alma do Universo. ‰ sua miss£o na Terra.
Mesmo que seja apenas viajar? Ou casar com a filha de um comerciante
de tecidos?
Ou buscar um tesouro. A Alma do Mundo © alimentada pela felicidade
das pessoas. Ou pela infelicidade, inveja, ciême. Cumprir sua Lenda Pessoal
© a ênica obriga§£o dos homens. Tudo © uma coisa sã.
"E quando vocª quer alguma coisa, todo o Universo conspira para que
vocª realize seu desejo".
Durante algum tempo ficaram em silªncio, olhando a pra§a e as pessoas.
Foi o velho quem falou primeiro.
Por que vocª cuida de ovelhas?
Porque gosto de viajar.
Ele apontou um pipoqueiro, com sua carrocinha vermelha, que estava num
canto da pra§a.
Aquele pipoqueiro tamb©m sempre desejou viajar, quando crian§a. Mas
preferiu comprar uma carrocinha de pipoca, juntar dinheiro durante anos.
Quando estiver velho, vai passar um mªs na frica. Jamais entendeu que a
gente sempre tem condi§åes para fazer o que sonha.
Devia ter escolhido ser um pastor pensou em voz alta o rapaz.
Ele pensou nisto disse o velho. Mas os pipoqueiros s£o mais
importantes que os pastores. Os pipoqueiros tªm uma casa, enquanto os
pastores dormem ao relento. As pessoas preferem casar suas filhas com
pipoqueiros do que com pastores.
O rapaz sentiu uma pontada no cora§£o, pensando na filha do
comerciante. Em sua cidade devia haver um pipoqueiro.
Enfim, o que as pessoas pensam sobre pipoqueiros e sobre pastores
passa a ser mais importante para elas que a Lenda Pessoal.
O velho folheou o livro, e distraiu-se lendo uma p¡gina. O rapaz
esperou um pouco, e o interrompeu da mesma maneira como ele o havia
interrompido.
Por que vocª fala estas coisas comigo?
Porque vocª tenta viver sua Lenda Pessoal. E est¡ a ponto de desistir
dela.
E vocª aparece sempre nestas horas?
Nem sempre desta forma, mas jamais deixei de aparecer. €s vezes
apare§o sob a forma de uma boa sada, uma boa id©ia. Outras vezes, num
momento crucial, fa§o as coisas ficarem mais f¡ceis. E assim por diante; mas
a maior parte das pessoas n£o nota isto.
O velho contou que na semana passada ele tinha sido for§ado a aparecer
para um garimpeiro sob a forma de uma pedra. O garimpeiro tinha largado tudo
para ir em busca de esmeraldas. Durante cinco anos trabalhou num rio, e
tinha quebrado 999.999 pedras em busca de uma esmeralda. Neste ponto o
garimpeiro pensou em desistir, e sã faltava uma pedra apenas UMA PEDRA
para ele descobrir sua esmeralda. Como ele tinha sido um homem que havia
apostado em sua Lenda Pessoal, o velho resolveu interferir. Transformou-se
numa pedra que rolou sobre o p© do garimpeiro. Este, com a raiva e
frustra§£o dos cinco anos perdidos, atirou a pedra longe. Mas atirou com
tanta for§a que ela bateu em outra pedra e esta se quebrou, mostrando a mais
bela esmeralda do mundo.
As pessoas aprendem muito cedo sua raz£o de viver disse o velho com
uma certa amargura nos olhos. Talvez seja por isso que elas desistem t£o
cedo tamb©m. Mas assim © o mundo.
Ent£o o rapaz se lembrou que a conversa havia come§ado com o tesouro
escondido.
Os tesouros s£o levantados da terra pela torrente de ¡gua, e
enterrados por estas mesmas enchentes disse o velho. Se vocª quiser
saber sobre seu tesouro, ter¡ que me ceder um d©cimo de suas ovelhas.
E n£o serve um d©cimo do tesouro?
O velho ficou decepcionado.
Se vocª sair prometendo o que ainda n£o tem, vai perder sua vontade
de consegui-lo.
O rapaz ent£o contou que tinha prometido um d©cimo cigana.
Os ciganos s£o espertos suspirou o velho. De qualquer maneira ©
bom vocª aprender que tudo na vida tem um pre§o. ‰ isto que os Guerreiros da
Luz tentam ensinar.
O velho devolveu o livro ao rapaz.
Amanh£, nesta mesma hora, vocª me traz um d©cimo de suas ovelhas. Eu
lhe ensinarei como conseguir o tesouro escondido. Boa tarde.
E sumiu numa das esquinas da pra§a.
O rapaz tentou ler o livro, mas n£o conseguiu concentrar-se mais.
Estava agitado e tenso, porque sabia que o velho falava a verdade. Foi at© o
pipoqueiro, comprou um saco de pipocas, enquanto pensava se devia ou n£o
contar a ele o que o velho dissera. "€s vezes © melhor deixar as coisas como
est£o", pensou o rapaz, e ficou quieto. Se dissesse algo, o pipoqueiro ia
ficar trªs dias pensando em largar tudo, mas estava muito acostumado com sua
carrocinha.
Ele podia evitar este sofrimento ao pipoqueiro. Come§ou a andar sem
rumo pela cidade, e foi at© o porto. Havia um pequeno pr©dio, e no pr©dio
havia uma janelinha onde as pessoas compravam passagens. O Egito estava na
frica.
Quer alguma coisa? perguntou o sujeito no guichª.
Talvez amanh£ disse o rapaz se afastando. Se vendesse apenas uma
ovelha podia chegar at© o outro lado do estreito. Era uma id©ia que o
apavorava.
Mais um sonhador disse o sujeito do guichª ao seu assistente,
enquanto o rapaz se afastava. N£o tem dinheiro para viajar.
Quando estava no guichª, o rapaz havia se lembrado de suas ovelhas, e
sentiu medo de voltar para junto delas. Dois anos haviam passado aprendendo
tudo sobre a arte do pastoreio; sabia tosquiar, cuidar das ovelhas gr¡vidas,
proteger os animais contra os lobos. Conhecia todos os campos e pastos de
Andaluzia. Conhecia o pre§o justo de comprar e vender cada um dos seus
animais.
Resolveu voltar at© o est¡bulo de seu amigo pelo caminho mais longo. A
cidade tamb©m tinha um castelo, e ele resolveu subir a rampa de pedra e
sentar-se numa de suas muradas. L¡ de cima ele podia ver a frica. Algu©m
certa vez havia lhe explicado que por ali chegaram os mouros, que ocuparam
durante tantos anos quase toda a Espanha. O rapaz detestava os mouros. Eles
© que tinham trazido os ciganos.
De l¡ podia ver tamb©m quase toda a cidade, inclusive a pra§a onde
havia conversado com o velho.
"Maldita hora em que encontrei este velho", pensou ele. Tinha ido
apenas buscar uma mulher que interpretasse sonhos. Nem a mulher nem o velho
davam qualquer import¢ncia para o fato de que ele era um pastor. Eram
pessoas solit¡rias, que j¡ n£o acreditavam mais na vida, e n£o entendiam que
os pastores terminam apegados s suas ovelhas. Ele conhecia em detalhes cada
uma delas: sabia qual mancava, qual iria dar cria daqui a dois meses, e
quais eram as mais pregui§osas. Sabia tamb©m como tosqui¡-las, e como
mat¡-las. Se resolvesse partir, elas sofreriam.
Um vento come§ou a soprar. Ele conhecia aquele vento: as pessoas o
chamavam de Levante, porque com este vento chegaram tamb©m as hordas de
infi©is. At© conhecer Tarifa, nunca havia pensado que a frica estava t£o
perto. Isto era um grande perigo: os mouros poderiam invadir novamente.
O Levante come§ou a soprar mais forte. "Estou entre as ovelhas e o
tesouro", pensava o rapaz. Tinha que decidir-se entre alguma coisa que havia
se acostumado e alguma coisa que gostaria de ter. Havia tamb©m a filha do
comerciante, mas ela n£o era t£o importante como as ovelhas, porque n£o
dependia dele. Talvez sequer se lembrasse dele. Teve certeza de que, se n£o
aparecesse daqui a dois dias, a menina n£o iria notar: para ela todos os
dias eram iguais, e quando todos os dias ficam iguais, © porque as pessoas
deixaram de perceber as coisas boas que aparecem em suas vidas sempre que o
sol cruza o c©u.
"Eu larguei meu pai, minha m£e, e o castelo da minha cidade. Eles se
acostumaram e eu me acostumei. As ovelhas tamb©m v£o se acostumar com a
minha falta", pensou o rapaz.
De l¡ de cima ele olhou a pra§a. O pipoqueiro continuava vendendo suas
pipocas. Um jovem casal sentou-se no banco onde ele havia conversado com o
velho, e deram um longo beijo.
"O pipoqueiro", disse para si mesmo, sem completar a frase. Porque o
Levante havia come§ado a soprar com mais for§a, e ele ficou sentindo o vento
no rosto. Ele trazia os mouros, © verdade, mas tamb©m trazia o cheiro do
deserto e das mulheres cobertas com v©u. Trazia o suor e os sonhos dos
homens que um dia haviam partido em busca do desconhecido, de ouro, de
aventuras e de pir¢mides. O rapaz come§ou a invejar a liberdade do vento,
e percebeu que poderia ser como ele. Nada o impedia, exceto ele prãprio. As
ovelhas, a filha do comerciante, os campos de Andaluzia, eram apenas os
passos de sua Lenda Pessoal.
No dia seguinte o rapaz encontrou-se com o velho ao meio-dia. Trazia
seis ovelhas consigo.
Estou surpreso disse ele. Meu amigo comprou imediatamente as
ovelhas. Disse que a vida inteira havia sonhado em ser pastor, e aquilo era
um bom sinal.
‰ sempre assim disse o velho. Chamamos de Princpio Favor¡vel. Se
vocª for jogar baralho pela primeira vez, com quase toda certeza ir¡ ganhar.
Sorte de principiante.
E por que?
Porque a vida quer que vocª viva sua Lenda Pessoal.
Depois come§ou a examinar as seis ovelhas, e descobriu que uma mancava.
O rapaz explicou que isto n£o tinha import¢ncia, porque ela era a mais
inteligente, e produzia bastante l£.
Onde est¡ o tesouro? perguntou.
O tesouro est¡ no Egito, perto das Pir¢mides.
O rapaz levou um susto. A velha tinha dito a mesma coisa, mas n£o tinha
cobrado nada.
Para chegar at© ele, vocª ter¡ que seguir os sinais. Deus escreveu no
mundo o caminho que cada homem deve seguir. ‰ sã ler o que ele escreveu para
vocª.
Antes que o rapaz dissesse alguma coisa, uma mariposa come§ou a
esvoa§ar entre ele e o velho. Lembrou-se de seu avä; quando ele era crian§a,
seu avä lhe dissera que as mariposas eram sinal de boa sorte. Como os
grilos, as esperan§as, as lagartixas, e os trevos de quatro folhas.
Isto disse o velho, que era capaz de ler seus pensamentos.
Exatamente como seu avä lhe ensinou. Estes s£o os sinais.
Depois o velho abriu o manto que lhe cobria o peito. O rapaz ficou
impressionado com o que viu, e lembrou-se do brilho que havia notado no dia
anterior. O velho tinha um peitoral de ouro maci§o, coberto de pedras
preciosas.
Era realmente um rei. Devia estar disfar§ado assim para fugir dos
salteadores.
Tome disse o velho, tirando uma pedra branca e uma pedra negra que
estavam presas no centro do peitoral de ouro. Chamam-se Urim e Tumim. A
preta quer dizer "sim", a branca quer dizer "n£o". Quando vocª n£o conseguir
enxergar os sinais, elas servem. Fa§a sempre uma pergunta objetiva.
"Mas de uma maneira geral, procure tomar suas decisåes. O tesouro est¡
nas Pir¢mides e isto vocª j¡ sabia; mas teve que pagar seis ovelhas porque
eu lhe ajudei a tomar uma decis£o".
O rapaz guardou as pedras no alforje . Daqui por diante, tomaria suas
prãprias decisåes.
N£o se esque§a de que tudo © uma coisa sã. N£o se esque§a da
linguagem dos sinais. E, sobretudo, n£o se esque§a de ir at© o fim de sua
Lenda Pessoal.
"Antes, por©m, gostaria de contar-lhe uma pequena histãria.
"Certo mercador enviou seu filho para aprender o Segredo da Felicidade
com o mais s¡bio de todos os homens. O rapaz andou durante quarenta dias
pelo deserto,
at© chegar a um belo castelo, no alto de uma montanha. L¡ vivia o S¡bio
que o rapaz buscava.
"Ao inv©s de encontrar um homem santo, por©m, o nosso herãi entrou numa
sala e viu uma atividade imensa; mercadores entravam e saam, pessoas
conversavam pelos cantos, uma pequena orquestra tocava melodias suaves, e
havia uma farta mesa com os mais deliciosos pratos daquela regi£o do mundo.
O S¡bio conversava com todos, e o rapaz teve que esperar duas horas at©
chegar sua vez de ser atendido.
"O S¡bio ouviu atentamente o motivo da visita do rapaz, mas disse-lhe
que naquele momento n£o tinha tempo de explicar-lhe o Segredo da Felicidade.
Sugeriu que o rapaz desse um passeio por seu pal¡cio, e voltasse daqui a
duas horas.
" Entretanto, quero lhe pedir um favor completou o S¡bio, entregando
ao rapaz uma colher de ch¡, onde pingou duas gotas de ãleo. Enquanto vocª
estiver caminhando, carregue esta colher sem deixar que o ãleo seja
derramado.
"O rapaz come§ou a subir e descer as escadarias do pal¡cio, mantendo
sempre os olhos fixos na colher. Ao final de duas horas, retornou presen§a
do S¡bio.
" Ent£o perguntou o S¡bio vocª viu as tape§arias da P©rsia que
est£o na minha sala de jantar? Viu o jardim que o Mestre dos Jardineiros
demorou dez anos para criar? Reparou nos belos pergaminhos de minha
biblioteca?
"O rapaz, envergonhado, confessou que n£o havia visto nada. Sua ênica
preocupa§£o era n£o derramar as gotas de ãleo que o S¡bio lhe havia
confiado.
" Pois ent£o volte e conhe§a as maravilhas do meu mundo disse o
S¡bio. Vocª n£o pode confiar num homem se n£o conhece sua casa.
"J¡ mais tranqìilo, o rapaz pegou a colher e voltou a passear pelo
pal¡cio, desta vez reparando em todas as obras de arte que pendiam do teto e
das paredes. Viu os jardins, as montanhas ao redor, a delicadeza das flores,
o requinte com que cada obra de arte estava colocada em seu lugar. De volta
presen§a do S¡bio, relatou pormenorizadamente tudo que havia visto.
" Mas onde est£o as duas gotas de ãleo que lhe confiei? perguntou o
S¡bio.
"Olhando para a colher, o rapaz percebeu que as havia derramado.
" Pois este © o ênico conselho que eu tenho para lhe dar disse o
mais S¡bio dos S¡bios. O segredo da felicidade est¡ em olhar todas as
maravilhas do mundo, e nunca se esquecer das duas gotas de ãleo na colher".
O rapaz ficou em silªncio. Havia compreendido a histãria do velho rei.
Um pastor gosta de viajar, mas jamais esquece suas ovelhas.
O velho olhou para o rapaz, e com as duas m£os espalmadas fez alguns
gestos estranhos em sua cabe§a. Depois, pegou os animais e seguiu seu
caminho.
No alto da pequena cidade de Tarifa existe um velho forte construdo
pelos mouros, e quem senta em suas muralhas consegue enxergar uma pra§a, um
pipoqueiro, e um peda§o da frica. Melquisedec, o Rei de Sal©m, sentou-se na
murada do forte aquela tarde, e sentiu o vento Levante no rosto. As ovelhas
esperneavam ao seu lado, com medo
do novo dono, e excitadas com tantas mudan§as. Tudo que elas queriam
era apenas comida e ¡gua.
Melquisedec olhou o pequeno navio que estava zarpando do porto. Nunca
mais tornaria a ver o rapaz, da mesma maneira como jamais tornou a ver
Abra£o, depois de lhe ter cobrado o dzimo. Entretanto, esta era a sua obra.
Os deuses n£o devem ter desejos, porque os deuses n£o tªm Lenda
Pessoal. Entretanto, o Rei de Sal©m torceu intimamente para que o rapaz
tivesse ªxito.
"Pena que ele vai esquecer logo meu nome", pensou. "Devia ter repetido
mais de uma vez. Assim, quando falasse a meu respeito, diria que sou
Melquisedec, o Rei de Sal©m."
Depois olhou para o c©u meio arrependido: "sei que © vaidade das
vaidades, como Tu disseste, Senhor. Mas um velho rei s vezes tem que sentir
orgulho de si mesmo".
"Como © estranha a frica", pensou o rapaz.
Estava sentado numa esp©cie de bar igual a outros bares que ele havia
encontrado nas ruelas estreitas da cidade. Algumas pessoas fumavam um
cachimbo gigante, que era passado de boca em boca. Em poucas horas havia
visto homens de m£os dadas, mulheres com o rosto coberto, e sacerdotes que
subiam em longas torres e come§avam a cantar enquanto todos sua volta se
ajoelhavam e batiam com a cabe§a no solo.
"Coisa de infi©is", disse para si mesmo. Quando crian§a, via sempre na
igreja da sua aldeia uma imagem de S£o Santiago Matamouros em seu cavalo
branco, com a espada desembainhada, e figuras como aquelas debaixo de seus
p©s. O rapaz sentia-se mal e terrivelmente sã. Os infi©is tinham um olhar
sinistro.
Al©m disso, na pressa de viajar, ele havia se esquecido de um detalhe,
um ênico detalhe, que podia afast¡-lo do seu tesouro por muito tempo:
naquele pas todos falavam ¡rabe.
O dono do bar se aproximou e o rapaz apontou para uma bebida que tinha
sido servida em outra mesa. Era um ch¡ amargo. O rapaz preferia beber vinho.
Mas n£o devia preocupar-se com isto agora. Tinha que pensar apenas no
seu tesouro, e a maneira de consegui-lo. A venda das ovelhas lhe havia
deixado com bastante dinheiro no bolso, e o rapaz sabia que o dinheiro era
m¡gico: com ele ningu©m jamais est¡ sozinho. Daqui a pouco, talvez em alguns
dias, estaria junto das Pir¢mides. Um velho, com todo aquele ouro no peito,
n£o precisava mentir para ganhar seis ovelhas.
O velho lhe havia falado de sinais. Enquanto atravessava o mar, ele
havia pensado nos sinais. Sim, sabia do que ele estava falando: durante o
tempo em que estivera nos campos de Andaluzia, havia se acostumado a ler na
terra e nos c©us as condi§åes do caminho que devia seguir. Aprendera que
certo p¡ssaro indicava uma cobra por perto, e que determinado arbusto era
sinal de ¡gua daqui a alguns quilämetros. As ovelhas lhe haviam ensinado
isto.
"Se Deus conduz t£o bem as ovelhas, tamb©m conduzir¡ o homem",
refletiu, e ficou mais tranqìilo. O ch¡ parecia menos amargo.
Quem © vocª? ouviu uma voz em espanhol.
O rapaz ficou imensamente aliviado. Estava pensando em sinais e algu©m
tinha aparecido.
Como vocª fala espanhol? perguntou. O rec©m-chegado era um rapaz
vestido maneira dos ocidentais, mas a cor de sua pele indicava que devia
ser daquela cidade. Tinha mais ou menos sua altura e sua idade.
Quase todo mundo aqui fala espanhol. Estamos h¡ apenas duas horas da
Espanha.
Sente-se e pe§a alguma coisa por minha conta disse o rapaz. E
pe§a um vinho para mim. Detesto este ch¡.
N£o h¡ vinho no pas disse o rec©m-chegado. A religi£o n£o
permite.
O rapaz disse ent£o que precisava chegar at© as Pir¢mides. Quase ia
falando do tesouro, mas resolveu ficar calado. Sen£o era bem capaz do ¡rabe
querer uma parte para lev¡-lo at© l¡. Lembrou-se do que o velho lhe dissera
a respeito de ofertas.
Gostaria que me levasse at© l¡, se puder. Posso lhe pagar como guia.
Vocª tem id©ia de como chegar at© l¡?
O rapaz reparou que o dono do bar estava por perto, ouvindo atentamente
a conversa. Sentia-se incomodado com a presen§a dele. Mas tinha encontrado
um guia, e n£o ia perder esta oportunidade.
Vocª tem que atravessar todo o deserto de Saara disse o
rec©m-chegado. E para isto precisamos de dinheiro. Quero saber se vocª tem
dinheiro suficiente.
O rapaz achou estranha a pergunta. Mas confiava no velho, e o velho lhe
falara que quando se quer uma coisa, o universo sempre conspira a favor.
Tirou seu dinheiro do bolso e mostrou ao rec©m-chegado. O dono do bar
aproximou-se e olhou tamb©m. Os dois trocaram algumas palavras em ¡rabe. O
dono do bar parecia irritado.
Vamos embora disse o rec©m-chegado.
Ele n£o quer que continuemos aqui.
O rapaz ficou aliviado. Levantou-se para pagar a conta, mas o dono o
agarrou e come§ou a falar sem parar. O rapaz era forte, mas estava numa
terra estrangeira. Foi seu novo amigo que empurrou o dono para o lado e
puxou o rapaz para fora.
Ele queria seu dinheiro disse. T¢nger n£o © igual ao resto da
frica. Estamos num porto e os portos tªm sempre muito ladråes.
Ele podia confiar em seu novo amigo. Tinha lhe ajudado numa situa§£o
crtica. Tirou o dinheiro do bolso e contou.
Podemos chegar amanh£ nas Pir¢mides disse o outro, pegando o
dinheiro. Mas preciso comprar dois camelos.
Saram andando pelas ruas estreitas de T¢nger. Em todo canto haviam
barracas de coisas para vender. Chegaram enfim no meio de uma grande pra§a,
onde funcionava o mercado. Haviam milhares de pessoas discutindo, vendendo,
comprando, hortali§as misturadas com adagas, tapetes junto com todo tipo de
cachimbos. Mas o rapaz n£o tirava o olho de seu novo amigo. Afinal de
contas, ele estava com todo o seu dinheiro nas m£os. Pensou em pedi-lo de
volta, mas achou que seria indelicado. Ele n£o conhecia o costume das terras
estranhas que estava pisando.
"Basta vigi¡-lo", disse para si mesmo. Era mais forte que o outro.
De repente, no meio de toda aquela confus£o, estava a mais bela espada
que seus olhos j¡ haviam visto. A bainha era prateada, e o cabo negro,
cravejado de pedras. O rapaz prometeu a si mesmo que, quando voltasse do
Egito, ia comprar aquela espada.
Pergunte ao dono da barraca quanto custa disse ele ao amigo. Mas
percebeu que tinha ficado dois segundos distrado, olhando a espada.
Seu cora§£o ficou pequeno, como se o peito tivesse subitamente
encolhido. Teve medo de olhar para o lado, porque sabia o que ia encontrar.
Os olhos continuaram fixos na bela espada por mais alguns momentos, at© que
o rapaz tomou coragem e se virou.
Em volta dele o mercado, as pessoas indo e vindo, gritando e comprando,
os tapetes misturados com avel£s, as alfaces junto s bandejas de cobre, os
homens de m£os dadas pelas ruas, as mulheres de v©u, o cheiro de comida
estranha, e em nenhum lugar, mas em nenhum lugar mesmo, o rosto de seu
companheiro.
O rapaz ainda quis pensar que haviam se perdido por acaso. Resolveu
ficar ali mesmo, esperando que o outro voltasse. Pouco tempo depois um
sujeito subiu numa daquelas torres e come§ou a cantar; todas as pessoas
ajoelharam-se no ch£o, bateram com a cabe§a no solo, e cantaram tamb©m.
Depois, como um bando de formigas trabalhadoras, desfizeram as barracas e
foram embora.
O sol come§ou a ir embora tamb©m. O rapaz olhou o sol durante muito
tempo, at© que ele se escondeu atr¡s das casas brancas que davam a volta na
pra§a. Lembrou-se que quando aquele sol nascera de manh£, ele estava em
outro continente, era um pastor, tinha sessenta ovelhas, e um encontro
marcado com uma mo§a. De manh£ ele sabia tudo que iria acontecer enquanto
andava pelos campos.
Entretanto, agora que o sol se escondia, ele estava num pas diferente,
um estranho numa terra estranha, onde nem sequer podia entender a lngua que
falavam. J¡ n£o era um pastor, e n£o tinha mais nada na vida, nem mesmo
dinheiro para voltar e come§ar tudo de novo.
"Tudo isto entre o nascente e o poente do mesmo sol" pensou o rapaz.
E sentiu pena de si mesmo, porque s vezes as coisas mudam na vida no espa§o
de um simples grito, antes que as pessoas possam se acostumar com elas.
Tinha vergonha de chorar. Jamais havia chorado na frente de suas
prãprias ovelhas. Entretanto, o mercado estava vazio e ele estava longe da
p¡tria.
O rapaz chorou. Chorou porque Deus era injusto, e retribua desta
maneira s pessoas que acreditavam em seus prãprios sonhos. "Quando eu
estava com as ovelhas eu era feliz, e espalhava sempre felicidade minha
volta. As pessoas me viam chegar e me recebiam bem.
"Mas agora estou triste e infeliz. O que farei? Vou ser mais amargo e
n£o vou confiar nas pessoas, porque uma pessoa me traiu. Vou odiar aqueles
que encontraram tesouros escondidos, porque eu n£o encontrei o meu. E vou
sempre procurar manter o pouco que tenho, porque sou pequeno demais para
abra§ar o mundo".
Abriu seu alforje para ver o que tinha l¡ dentro; talvez tivesse
sobrado alguma coisa do sanduche que havia comido no barco. Mas sã
encontrou o livro grosso, o casaco, e as duas pedras que o velho lhe dera.
Ao olhar as pedras, sentiu uma imensa sensa§£o de alvio. Tinha trocado
seis ovelhas por duas pedras preciosas, sadas de um peitoral de ouro. Podia
vender as pedras e comprar a passagem de volta. "Agora serei mais esperto",
pensou o rapaz, tirando as pedras do alforje para escondª-las dentro do
bolso. Ali era um porto, e esta era a ênica verdade que aquele homem lhe
dissera; um porto est¡ sempre cheio de ladråes.
Agora entendia tamb©m o desespero do dono do bar: estava tentando
dizer- lhe para n£o confiar naquele homem. "Sou como todas as pessoas: vejo
o mundo da maneira que desejava que as coisas acontecessem, e n£o da maneira
que as coisas acontecem".
Ficou olhando as pedras. Tocou com cuidado cada uma, sentindo a
temperatura e a superfcie lisa. Elas eram seu tesouro. O simples toque das
pedras lhe deu mais tranqìilidade. Elas lhe lembravam do velho.
"Quando vocª quer uma coisa, todo o Universo conspira para que possa
consegui-la", dissera-lhe o velho.
Queria entender como aquilo podia ser verdade. Estava ali num mercado
vazio, sem um centavo no bolso, e sem ovelhas para guardar aquela noite. Mas
as pedras eram a prova de que tinha encontrado um rei um rei que sabia a
sua histãria, sabia da arma do seu pai e da sua primeira experiªncia sexual.
"As pedras servem para adivinha§£o. Chamam-se Urim e Tumim". O rapaz
colocou de novo as pedras dentro do saco e resolveu experimentar. O velho
havia falado que fizesse perguntas claras, porque as pedras sã serviam para
quem sabe o que quer.
O rapaz ent£o perguntou se a bªn§£o do velho continuava ainda com ele.
Tirou uma das pedras. Era "sim".
"Vou encontrar meu tesouro?" perguntou o rapaz.
Enfiou a m£o no alforje e ia pegando uma das pedras, quando ambas
escorregaram por buraco no tecido. O rapaz nunca havia percebido que seu
alforje estava rasgado. Abaixou-se para pegar o Urim e o Tumim, e coloc¡-los
de novo dentro do saco. Ao vª-las no ch£o, por©m, uma outra frase surgiu em
sua cabe§a.
"Aprenda a respeitar e seguir os sinais", havia falado o velho rei.
Um sinal. O rapaz riu para si mesmo. Depois apanhou as duas pedras no
ch£o e as recolocou no alforje. N£o pensava costurar o buraco as pedras
poderiam escapar por ali sempre que desejassem. Ele havia entendido que
certas coisas a gente n£o devia perguntar para n£o fugir do prãprio
destino. "Prometi tomar minhas prãprias decisåes", disse para si mesmo.
Mas as pedras tinham dito que o velho, continuava com ele, e isto lhe
deu mais confian§a. Olhou de novo para o mercado vazio, e n£o sentiu o
desespero de antes. N£o era um mundo estranho; era um mundo novo.
Pois, afinal de contas, tudo que ele queria era exatamente isto:
conhecer mundos novos. Mesmo que ele jamais chegasse at© as Pir¢mides, ele
j¡ tinha ido muito mais longe do que qualquer pastor que conhecia. "Ah, se
eles soubessem que a apenas duas horas de barco existem tantas coisas
diferentes".
O mundo novo aparecia na sua frente sob a forma de um mercado vazio,
mas ele j¡ vira aquele mercado cheio de vida, e nunca mais ia se esquecer.
Lembrou-se da espada foi um pre§o caro contempl¡-la um pouco, mas tamb©m
nunca tinha visto nada igual antes. Sentiu de repente que ele podia olhar o
mundo como uma pobre vtima de um ladr£o, ou como um aventureiro em busca de
um tesouro.
"Sou um aventureiro em busca de um tesouro", pensou, antes de cair
exausto no sono.
Acordou com um sujeito lhe cutucando. Tinha dormido no meio do mercado,
e a vida daquela pra§a estava prestes a recome§ar de novo.
Olhou em volta, procurando suas ovelhas, e percebeu que estava em outro
mundo. Ao inv©s de sentir-se triste, ficou feliz. N£o tinha mais que seguir
em busca de ¡gua e comida; podia seguir em busca de um tesouro. N£o tinha um
centavo no bolso, mas tinha f© na vida. Havia escolhido, na noite anterior,
ser um aventureiro igual aos personagens dos livros que costumava ler.
Come§ou a andar sem pressa pela pra§a. Os mercadores colocaram em p©
suas barracas; ajudou um doceiro a montar a sua. Havia um sorriso diferente
no rosto daquele doceiro: estava alegre, desperto para a vida, pronto para
come§ar um bom dia de trabalho. Era um sorriso que lembrava alguma coisa do
velho, aquele velho e misterioso rei que havia conhecido. "Este doceiro n£o
est¡ fazendo doces porque quer viajar, ou porque quer casar com a filha de
um comerciante. "Este doceiro faz doce porque gosta disto", pensou o rapaz,
e notou que podia fazer a mesma coisa que o velho saber se uma pessoa est¡
prãxima ou distante de sua Lenda Pessoal. Sã em olhar para ela. "‰ f¡cil, e
eu nunca havia percebido isto."
Quando acabaram de montar a barraca, o doceiro lhe estendeu o primeiro
doce que havia feito. O rapaz comeu satisfeito, agradeceu, e seguiu seu
caminho. Quando j¡
havia se afastado um pouco, lembrou-se que a barraca havia sido montada
com uma pessoa falando ¡rabe e a outra, espanhol.
E tinham se entendido perfeitamente.
"Existe uma linguagem que est¡ al©m das palavras", pensou o rapaz. "Eu
j¡ experimentei isto com as ovelhas, e agora estou experimentando com os
homens."
Estava aprendendo v¡rias coisas novas. Coisas que ele j¡ havia
experimentado, e que no entanto eram novas, porque tinham passado por ele
que tivesse percebido. E n£o tinha percebido, porque estava acostumado com
elas. "Se eu aprender a decifrar esta linguagem sem palavras, eu vou
conseguir decifrar o mundo".
"Tudo © uma coisa sã", falava o velho.
Resolveu andar sem pressa e sem ansiedade pelas pequenas ruas de
T¢nger: sã desta maneira ia conseguir perceber os sinais. Isto exigia muita
paciªncia, mas esta © a primeira virtude que um pastor aprende. Mais uma vez
percebeu que estava aplicando naquele mundo estranho as mesmas li§åes que
suas ovelhas lhe ensinaram.
"Tudo © uma coisa sã", havia falado o velho.
O Mercador de Cristais viu o dia nascer, e sentiu a mesma angêstia que
experimentava todas as manh£s. Estava h¡ quase trinta anos naquele mesmo
lugar, uma loja no alto de uma ladeira, onde raramente passava um comprador.
Agora era tarde para mudar qualquer coisa: tudo que havia aprendido na vida
era vender e comprar cristais. Houve um tempo em que muita gente conhecia
sua loja: mercadores ¡rabes, geãlogos franceses e ingleses, soldados alem£es
sempre com dinheiro no bolso. Naquela ©poca era uma grande aventura vender
cristais, e ele pensava como ia ficar rico, e como ia ter belas mulheres em
sua velhice.
Depois o tempo foi passando, e a cidade tamb©m. Ceuta cresceu mais que
T¢nger, e o com©rcio mudou de rumo. Os vizinhos mudaram-se, e ficaram apenas
algumas lojas na ladeira. Ningu©m ia subir uma ladeira por causa de umas
poucas lojas.
Mas o Mercador de Cristais n£o tinha escolha. Tinha vivido trinta anos
de sua vida comprando e vendendo pe§as de cristal, e agora era tarde demais
para mudar de rumo.
Durante a manh£ inteira ficou olhando o pequeno movimento da rua. Fazia
aquilo h¡ anos, e j¡ sabia o hor¡rio de cada pessoa. Quando faltavam alguns
minutos para o almo§o, um rapaz estrangeiro parou diante de sua vitrine.
Estava vestido normalmente, mas os olhos experimentados do Mercador de
Cristais concluram que ele n£o tinha dinheiro. Mesmo assim resolveu entrar
e esperar alguns instantes, at© que o rapaz fosse embora.
Havia um cartaz na porta dizendo que ali se falavam v¡rias lnguas. O
rapaz viu um homem aparecer atr¡s do balc£o.
Posso limpar estes vasos se vocª quiser disse o rapaz. Assim como
eles est£o, nenhum comprador vai querer comprar.
O homem olhou sem dizer nada
Em troca, vocª me paga um prato de comida.
O homem continuou em silªncio, e o rapaz sentiu que precisava tomar uma
decis£o. Dentro de seu alforje havia o casaco n£o ia precisar mais dele no
deserto. Tirou o casaco e come§ou a limpar os vasos. Durante meia hora
limpou todos os vasos da vitrine; neste meio tempo entraram dois fregueses e
compraram cristais do homem.
Quando acabou de limpar tudo, ele pediu ao homem um prato de comida.
Vamos comer disse o Mercador de Cristais.
Colocou uma tabuleta na porta, e foram at© um minêsculo bar no alto na
ladeira. Assim que sentaram na ênica mesa existente, o Mercador de Cristais
sorriu.
N£o era preciso limpar nada disse. A lei do Alcor£o obriga a dar
de comer a quem tem fome.
Ent£o por que me deixou fazer isto? perguntou o rapaz.
Porque os cristais estavam sujos. E tanto vocª como eu precis¡vamos
limpar as cabe§as dos maus pensamentos.
Quando acabaram de comer, o Mercador virou-se para o rapaz:
Queria que vocª trabalhasse na minha loja . Hoje entraram dois
fregueses enquanto vocª limpava os vasos, e isto © um bom sinal.
"As pessoas falam muito em sinais", pensou o pastor. "Mas n£o percebem
o que est£o dizendo. Da mesma maneira que eu n£o percebia que h¡ muitos anos
falava com minhas ovelhas uma linguagem sem palavras".
Quer trabalhar para mim? insistiu o Mercador.
Posso trabalhar o resto do dia respondeu o rapaz. Limparei at© de
madrugada todos os cristais da loja. Em troca, preciso de dinheiro para
estar amanh£ no Egito.
O velho riu de novo.
Mesmo que vocª limpasse meus cristais durante um ano inteiro, mesmo
que vocª ganhasse uma boa comiss£o de vendas em cada um deles, ainda ia ter
que arranjar dinheiro emprestado para ir ao Egito. Existem milhares de
quilämetros de deserto entre T¢nger e as Pir¢mides.
Houve um momento de silªncio t£o grande, que a cidade parecia ter
adormecido. J¡ n£o haviam mais os bazares, as discussåes dos mercadores, os
homens que subiam em minaretes e cantavam, as belas espadas com seus punhos
cravejados. J¡ n£o havia mais a esperan§a e a aventura, velhos reis e Lendas
Pessoais, o tesouro e as pir¢mides. Era como se todo o mundo estivesse
quieto, porque a alma do rapaz estava em silªncio. N£o havia. nem dor, nem
sofrimento, nem decep§£o: apenas um olhar vazio atrav©s da pequena porta do
bar, e uma vontade imensa de morrer, de que tudo acabasse para sempre
naquele minuto.
O Mercador olhou espantado para o rapaz. Era como se toda a alegria que
tinha visto aquela manh£ houvesse subitamente desaparecido.
Posso lhe dar dinheiro para voltar sua terra, meu filho disse o
Mercador de Cristais.
O rapaz continuou em silªncio. Depois levantou-se, ajeitou as roupas, e
pegou seu alforje.
Vou trabalhar com o senhor disse.
E depois de outro silªncio demorado, concluiu:
Preciso de dinheiro para comprar algumas ovelhas.
H¡ quase um mªs o rapaz estava trabalhando para o Mercador de Cristais,
e n£o era exatamente o tipo de emprego que lhe fazia feliz. O Mercador
passava o dia inteiro resmungando atr¡s do balc£o, pedindo que tomasse
cuidado com as pe§as, que n£o deixasse quebrar nada.
Mas continuava no emprego porque o Mercador era um velho rabujento, mas
n£o era injusto; o rapaz recebia uma boa comiss£o em cada pe§a vendida, e j¡
havia conseguido juntar algum dinheiro. Naquela manh£ havia feito certos
c¡lculos: se continuasse a trabalhar todos os dias como estava trabalhando,
ia precisar de um ano inteiro para poder comprar algumas ovelhas.
Gostaria de fazer uma estante para os cristais disse o rapaz ao
Mercador. Ela pode ser colocada do lado de fora, e atrair quem est¡
passando l¡ embaixo da ladeira.
Nunca fiz uma estante antes respondeu o Mercador. As pessoas
passam e esbarram. Os cristais se quebram.
Quando eu andava pelo campo com as ovelhas, elas podiam morrer se
encontrassem uma cobra. Mas isto faz parte da vida das ovelhas e dos
pastores.
O Mercador atendeu um freguªs que desejava trªs vasos de cristal.
Estava vendendo melhor do que nunca, como se o mundo tivesse voltado no
tempo, para a ©poca em que a rua era uma das principais atra§åes de T¢nger.
O movimento j¡ melhorou bastante disse ao rapaz, quando o freguªs
saiu. O dinheiro permite que eu viva melhor, e lhe devolver¡ as suas
ovelhas em pouco tempo. Para que exigir mais da vida?
Porque temos que seguir os sinais falou o rapaz, quase sem querer;
e arrependeu-se do que dissera, porque o Mercador nunca havia encontrado um
rei.
"Chama-se Princpio Favor¡vel, sorte de principiante. Porque a vida
quer que vocª viva sua Lenda Pessoal", falara o velho.
O Mercador, entretanto, estava entendendo o que o rapaz falava. A
simples presen§a dele na loja era um sinal, e com o passar dos dias, com o
dinheiro entrando na caixa, ele n£o estava arrependido de haver contratado o
espanhol. Mesmo que o rapaz estivesse ganhando mais do que devia; como ele
sempre havia achado que as vendas n£o mudavam mais, tinha oferecido uma
comiss£o alta, e sua intui§£o dizia que em breve o garoto estaria de volta
s suas ovelhas.
Por que vocª queria conhecer as Pir¢mides? perguntou, para mudar o
assunto da estante.
Porque sempre me falaram nelas disse o rapaz, evitando falar no seu
sonho. Agora o tesouro era uma lembran§a sempre dolorosa, e o rapaz evitava
pensar nisto.
Eu n£o conhe§o ningu©m aqui que queira atravessar o deserto sã para
conhecer as Pir¢mides disse o Mercador. S£o apenas um monte de pedras.
Vocª pode construir uma no seu quintal.
Vocª nunca teve sonhos de viajar disse o rapaz, atendendo mais um
freguªs que entrava na loja.
Dois dias depois o velho procurou o rapaz para falar da estante.
N£o gosto de mudan§as disse o Mercador. Nem eu nem vocª somos
como Hassan, o rico comerciante. Se ele erra numa compra, isto n£o o afeta
muito. Mas nãs dois temos sempre que conviver com nossos erros.
"‰ verdade", pensou o rapaz.
Para que vocª quer a estante? disse o Mercador.
Quero voltar mais r¡pido para minhas ovelhas. Temos que aproveitar
quando a sorte est¡ do nosso lado, e fazer tudo para ajud¡-la da mesma
maneira que ela est¡ nos ajudando. Chama-se Princpio Favor¡vel. Ou "sorte
de principiante".
O velho ficou calado por algum tempo. Depois disse:
O Profeta nos deu o Alcor£o, e nos deixou apenas cinco obriga§åes
para serem seguidas em nossa existªncia. A mais importante © a seguinte: sã
existe um Deus. As outras s£o: rezar cinco vezes por dia, fazer jejum no mªs
de Ramad£, fazer caridade com os pobres.
Parou de falar. Seus olhos ficaram cheios de ¡gua ao falar do Profeta.
Era um homem fervoroso, e mesmo com toda a sua impaciªncia, procurava viver
sua vida de acordo com a lei mu§ulmana.
E qual a quinta obriga§£o? perguntou o rapaz.
H¡ dois dias atr¡s vocª disse que eu nunca tive sonhos de viajar
respondeu o Mercador. A quinta obriga§£o de todo mu§ulmano © uma viagem.
Devemos ir, pelo menos uma vez na vida, cidade sagrada de Meca.
"Meca © muito mais longe que as Pir¢mides. Quando eu era jovem, preferi
juntar o pouco dinheiro que tinha para come§ar esta loja. Pensava em ser
rico algum dia, para ir a Meca. Passei a ganhar dinheiro, mas n£o podia
deixar ningu©m cuidando dos cristais, porque os cristais s£o coisas
delicadas. Ao mesmo tempo, via passar defronte a minha loja muitas pessoas
que seguiam na dire§£o de Meca. Haviam alguns peregrinos ricos, que iam com
um s©quito de criados e de camelos, mas a maior parte das pessoas era muito
mais pobre do que eu era".
"Todas iam e voltavam contentes, e colocavam na porta de suas casas os
smbolos da peregrina§£o. Uma delas, um sapateiro que vivia de remendar as
botas alheias, me disse que havia caminhado quase um ano pelo deserto, mas
que ficava sempre mais cansado quando tinha que caminhar alguns quarteiråes
em T¢nger para comprar couro".
Por que n£o vai a Meca agora? perguntou o rapaz.
Porque Meca © o que me mant©m vivo. ‰ o que me faz agìentar todos
estes dias iguais, estes vasos calados nas prateleiras, o almo§o e o jantar
naquele restaurante horrvel. Tenho medo de realizar meu sonho, e depois n£o
ter mais motivos para continuar vivo.
"Vocª sonha com ovelhas e com pir¢mides. ‰ diferente de mim, porque
deseja realizar seus sonhos. Eu quero apenas sonhar com Meca. J¡ imaginei
milhares de vezes a travessia do deserto, minha chegada na pra§a onde est¡ a
Pedra Sagrada, as sete voltas que devo dar em torno dela antes de toc¡-la.
J¡ imaginei quais pessoas estar£o do meu lado, na minha frente, e as
conversas e ora§åes que compartilharemos juntos. Mas tenho medo que seja uma
grande decep§£o, ent£o prefiro apenas sonhar".
Neste dia, o Mercador deu permiss£o ao rapaz para construir a estante.
Nem todos podem ver os sonhos da mesma maneira.
Mais dois meses se passaram, e a estante trouxe muitos fregueses loja
dos cristais. O rapaz calculou que, se trabalhasse mais seis meses, poderia
voltar Espanha e comprar sessenta ovelhas, e mais sessenta ovelhas. Em
menos de um ano ele teria duplicado seu rebanho, e ia poder negociar com os
¡rabes, porque j¡ conseguia falar aquela lngua estranha. Depois daquela
manh£ no mercado, ele n£o havia mais utilizado o Urim e o Tumim, porque o
Egito passou a ser apenas um sonho t£o distante para ele como era a cidade
de Meca para o Mercador. Entretanto, o rapaz agora estava contente com seu
trabalho, e pensava a todo momento no dia em que iria desembarcar em Tarifa
como um vencedor.
"Lembre-se de saber sempre o que quer", havia falado o velho rei. O
rapaz sabia, e estava trabalhando para isto. Talvez seu tesouro tivesse sido
chegar quela terra estranha, encontrar um assaltante, e dobrar o nêmero de
seu rebanho sem ter gasto um centavo sequer.
Estava orgulhoso de si mesmo. Havia aprendido coisas importantes, como
o com©rcio de cristais, linguagem sem palavras, e os sinais. Uma tarde viu
um homem no alto da ladeira, reclamando que era impossvel encontrar um
lugar decente para beber alguma coisa depois de toda a subida. O rapaz j¡
conhecia a linguagem dos sinais, e chamou o velho para conversar.
Vamos vender ch¡ para as pessoas que sobem a ladeira disse ele.
Muitas pessoas vendem ch¡ por aqui respondeu o Mercador.
Podemos vender ch¡ em vasos de cristal. Assim as pessoas v£o gostar
do ch¡, e v£o querer comprar os cristais. Porque o que mais seduz os homens
© a beleza.
O Mercador olhou para o rapaz durante algum tempo. N£o respondeu nada.
Mas naquela tarde, depois de fazer suas ora§åes e fechar a loja, sentou-se
na cal§ada com ele e convidou-o a fumar narguil© aquele estranho cachimbo
que os ¡rabes usavam.
O que vocª est¡ procurando? perguntou o velho Mercador de Cristais.
J¡ lhe disse. Preciso comprar de volta as ovelhas. E para isto ©
necess¡rio dinheiro.
O velho colocou algumas brasas novas no narguil©, e deu uma longa
tragada.
H¡ trinta anos tenho esta loja. Conhe§o o bom e o mau cristal, e
conhe§o todos os detalhes do seu funcionamento. Estou acostumado com seu
tamanho e seu movimento. Se vocª colocar ch¡ em cristais, a loja ir¡
crescer. Ent£o eu vou ter que mudar minha maneira de vida.
E isto n£o © bom?
Estou acostumado com minha vida. Antes de vocª, eu pensava que havia
perdido tanto tempo no mesmo lugar, enquanto meus amigos todos mudavam,
quebravam, ou progrediam Isto me deixava com uma imensa tristeza. Agora eu
sei que n£o era bem assim: a loja tem o exato tamanho que eu sempre quis que
ela tivesse. N£o quero mudar, porque n£o sei como mudar. J¡ estou muito
acostumado comigo mesmo.
O rapaz n£o sabia o que dizer. O velho ent£o continuou:
Vocª foi uma bªn§£o para mim. E hoje estou entendendo uma coisa: toda
bªn§£o que n£o © aceita, transforma-se numa maldi§£o. Eu n£o quero mais da
vida. E vocª est¡ me for§ando a ver riquezas e horizontes que eu nunca
conheci. Agora que os conhe§o, e que conhe§o minhas possibilidades imensas,
vou me sentir pior do que me sentia antes. Porque sei que posso ter tudo, e
n£o quero.
"Ainda bem que eu n£o disse nada ao pipoqueiro", pensou o rapaz.
Continuaram fumando o narguil© por algum tempo, enquanto o sol se
escondia. Estavam conversando em ¡rabe, e o rapaz estava satisfeito consigo
mesmo, porque falava ¡rabe. Houve uma ©poca em que ele achou que as ovelhas
podiam ensinar tudo sobre o mundo. Mas as ovelhas n£o sabiam ensinar ¡rabe.
"Devem ter outras coisas no mundo que as ovelhas n£o sabem ensinar",
pensou o rapaz, enquanto olhava o Mercador em silªncio. "Porque elas sã
est£o em busca de ¡gua e comida.
"Acho que n£o s£o elas que ensinam: eu © que aprendo".
Maktub disse finalmente o mercador.
O que © isto?
Vocª precisaria ter nascido ¡rabe para compreender respondeu ele.
Mas a tradu§£o seria algo como "est¡ escrito".
E enquanto apagava as brasas do narguil©, disse que o rapaz podia
come§ar a vender ch¡ nos vasos. €s vezes, © impossvel deter o rio da vida.
Os homens subiam a ladeira e ficavam cansados. Ent£o, l¡ no seu topo,
havia uma loja de belos cristais com ch¡ de menta refrescante. Os homens
entravam para beber o ch¡, que era servido em lindos vasos de cristal.
"Jamais minha mulher pensou nisto", lembrava um, e comprava alguns
cristais, porque ia ter visitas naquela noite: seus convidados ficariam
impressionados com a riqueza das ta§as. Outro homem passou a garantir que o
ch¡ era sempre mais gostoso quando servido em recipientes de cristal, pois
conservavam melhor o aroma. Um terceiro disse ainda que era tradi§£o no
Oriente utilizar vasos de cristal junto com ch¡, por causa de seus poderes
m¡gicos.
Em pouco tempo, a novidade se espalhou, e muitas pessoas passaram a
subir at© o topo da ladeira para conhecer a loja que estava fazendo algo de
novo num com©rcio t£o antigo. Outras lojas de ch¡ em copos de cristal foram
abertas, mas n£o ficavam em cima de uma ladeira, e por isso estavam sempre
vazias.
Em pouco tempo, o Mercador teve que contratar mais dois empregados.
Passou a importar, junto com os cristais, quantidades enormes de ch¡, que
eram diariamente consumidas pelos homens e mulheres com sede de coisas
novas.
E assim transcorreram seis meses.
O rapaz acordou antes do sol nascer. Tinham-se passado onze meses e
nove dias desde que ele havia pisado pela primeira vez no continente
africano.
Vestiu sua roupa ¡rabe, de linho branco, comprada especialmente para
aquele dia. Colocou o len§o na cabe§a, fixo por um anel feito de pele de
camelo. Cal§ou as sand¡lias novas, e desceu sem fazer qualquer rudo.
A cidade ainda dormia. Ele fez um sanduche de gergelim, e bebeu ch¡
quente no vaso de cristal. Depois sentou-se na soleira da porta, fumando
sozinho o narguil©.
Fumou em silªncio, sem pensar em nada, escutando apenas o rudo sempre
constante do vento que soprava trazendo o cheiro do deserto. Depois que
acabou de f'umar, enfiou a m£o num dos bolsos do traje, e ficou alguns
instantes contemplando o que havia retirado l¡ de dentro.
Havia um grande ma§o de dinheiro. O suficiente para comprar cento e
vinte ovelhas, uma passagem de volta, e uma licen§a de com©rcio entre seu
pas e o pas onde estava.
Esperou pacientemente que o velho acordasse e abrisse a loja. Os dois
ent£o foram juntos tomar mais ch¡.
Vou embora hoje disse o rapaz. Tenho dinheiro para comprar minhas
ovelhas. Vocª tem dinheiro para ir Meca.
O velho n£o disse nada.
Pe§o sua bªn§£o insistiu o rapaz. Vocª me ajudou.
O velho continuou a preparar o ch¡ em silªncio. Depois de um certo
tempo, por©m, virou-se para o rapaz.
Tenho orgulho de vocª disse. Vocª trouxe alma para a minha loja
de cristais. Mas sabe que eu n£o vou Meca. Como sabe que n£o voltar¡ a
comprar ovelhas.
Quem lhe disse isto? perguntou o rapaz, assustado.
Maktub disse simplesmente o velho Mercador de Cristais.
E o aben§oou.
O rapaz foi at© seu quarto e juntou tudo que tinha. Eram trªs sacolas
cheias. Quando j¡ estava saindo, notou que, num canto do quarto, havia seu
velho alforje de pastor. Estava todo amassado, e ele quase nem se lembrava
mais dele. L¡ dentro estava ainda o mesmo livro e o casaco. Quando ele tirou
o casaco, pensando em dar de presente para um rapaz na rua, as duas pedras
rolaram pelo ch£o. O Urim e o Tumim.
O rapaz ent£o se lembrou do velho rei, e ficou surpreso em perceber h¡
quanto tempo n£o pensava mais nisto. Durante um ano havia trabalhado sem
parar, pensando apenas em conseguir dinheiro para n£o voltar de cabe§a baixa
para a Espanha.
"Nunca desista dos seus sonhos", havia falado o velho rei. "Siga os
sinais".
O rapaz pegou o Urim e o Tumim no ch£o, e teve novamente aquela
estranha sensa§£o de que o rei estava perto. Trabalhara duro durante um ano,
e os sinais indicavam que agora era o momento de partir.
"Vou voltar exatamente a ser o que era antes", pensou o rapaz. "E as
ovelhas n£o me ensinaram a falar ¡rabe".
As ovelhas, entretanto, tinham ensinado uma coisa muito mais
importante: que havia uma linguagem no mundo que todos compreendiam, e que o
rapaz tinha utilizado durante todo aquele tempo para fazer a loja progredir.
Era a linguagem do entusiasmo, das coisas feitas com amor e com vontade, em
busca de algo que se desejava ou em que se acreditava. T¢nger j¡ n£o era
mais uma cidade estranha, e ele sentiu que da mesma maneira que tinha
conquistado aquele lugar, poderia conquistar o mundo.
"Quando vocª deseja uma coisa, todo o Universo conspira para que possa
realiz¡-la", havia falado o velho rei.
Mas o velho rei n£o falara de assaltos, de desertos imensos, de pessoas
que conhecem os seus sonhos mas n£o desejam realiz¡-los. O velho rei n£o
havia falado que as Pir¢mides eram apenas um monte de pedras, e qualquer um
podia fazer um monte de pedras em seu quintal. E tinha se esquecido de dizer
que, quando se tem dinheiro para comprar um rebanho maior do que o que
possua, deve-se comprar este rebanho.
O rapaz pegou o alforje e juntou com seus outros sacos. Desceu as
escadas; o velho estava atendendo um casal estrangeiro, enquanto dois outros
fregueses andavam pela loja, tomando ch¡ em vasos de cristal. Era um bom
movimento para aquela hora da manh£. Do lugar onde estava, notou pela
primeira vez que o cabelo do Mercador lembrava muito o cabelo do velho rei.
Lembrou-se do sorriso do doceiro, no primeira dia em T¢nger, quando n£o
tinha para onde ir nem o que comer; tamb©m aquele sorriso lembrava o velho
rei.
"Como se ele tivesse passado por aqui e deixado uma marca", pensou. "E
cada pessoa n£o tivesse j¡ conhecido este rei em algum momento de suas
existªncias. Afinal de contas, ele disse que sempre aparecia para quem vive
sua Lenda Pessoal".
Saiu sem se despedir do Mercador de Cristais. N£o queria chorar porque
as pessoas podiam ver. Mas ia ter saudade de todo aquele tempo, e de todas
as coisas boas que havia aprendido. Estava mais confiante em si e tinha
vontade de conquistar o mundo.
"Mas estou indo para os campos que j¡ conhe§o, conduzir de novo as
ovelhas". E n£o estava mais contente com sua decis£o. Tinha trabalhado um
ano inteiro para realizar um sonho, e este sonho, a cada minuto, ia perdendo
sua import¢ncia. Talvez porque n£o fosse seu sonho.
"Quem sabe © melhor ser como o Mercador de Cristais: nunca ir Meca, e
viver da vontade de conhecª-la". Mas estava segurando o Urim e o Tumim nas
m£os, e estas pedras lhe traziam a for§a e a vontade do velho rei. Por uma
coincidªncia ou um sinal, pensou o rapaz ele chegou ao bar onde havia
entrado no primeiro dia. N£o havia mais o ladr£o, e o dono lhe trouxe uma
xcara de ch¡.
"Sempre poderei voltar a ser pastor", pensou o rapaz. "Aprendi a cuidar
das ovelhas, e nunca mais me esquecerei de como elas s£o. Mas talvez n£o
tenha outra oportunidade de chegar at© as Pir¢mides do Egito. O velho tinha
um peitoral de ouro, e sabia minha histãria. Era um rei de verdade, um rei
s¡bio".
Estava apenas a duas horas de barco das plancies de Andaluzia, mas
havia um deserto inteiro entre ele as Pir¢mides. O rapaz percebeu talvez
esta maneira de pensar a mesma situa§£o: na verdade, ele estava duas horas
mais perto do seu tesouro. Mesmo que, para caminhar estas duas horas,
tivesse demorado quase um ano inteiro.
"Sei porque quero voltar para minhas ovelhas. Eu j¡ conhe§o as ovelhas;
n£o d£o muito trabalho, e podem ser amadas. N£o sei se o deserto pode ser
amado, mas © o deserto que esconde o meu tesouro. Se eu n£o conseguir
encontr¡-lo, poderei sempre voltar
para casa. Mas de repente a vida me deu dinheiro suficiente, e eu tenho
todo o tempo que preciso; por que n£o?"
Sentiu uma alegria imensa naquele momento. Sempre podia voltar a ser
pastor de ovelhas. Sempre podia voltar a ser vendedor de cristais. Talvez o
mundo tivesse muitos outros tesouros escondidos, mas ele havia tido um sonho
repetido e encontrado um rei. N£o acontecia com qualquer pessoa.
Estava contente quando saiu do bar. Havia se lembrado que um dos
fornecedores do Mercador trazia os cristais em caravanas que cruzavam o
deserto. Manteve o Urim e o Tumim nas m£os; por causa daquelas duas pedras,
estava de volta ao caminho de seu tesouro.
"Sempre estou perto dos que vivem a Lenda Pessoal", dissera o velho
rei.
N£o custava nada ir at© o armaz©m, saber se as Pir¢mides eram de fato
muito longe.
O Inglªs estava sentado numa constru§£o cheirando a animais, suor, e
poeira. N£o podia chamar aquilo de armaz©m; era apenas um curral. "Toda a
minha vida para ter que passar por um lugar como este", pensou enquanto
folheava distrado uma revista de qumica. "Dez anos de estudo me conduzem a
um curral".
Mas era preciso seguir adiante. Tinha que acreditar em sinais. Toda a
sua vida, todos os seus estudos foram em busca da linguagem ênica que o
Universo falava. Primeiro havia se interessado por Esperanto, depois por
religiåes, e finalmente por Alquimia. Sabia falar Esperanto, entendia
perfeitamente as diversas religiåes, mas ainda n£o era um Alquimista. Tinha
conseguido decifrar coisas importantes, © verdade. Mas suas pesquisas
chegaram a um ponto onde n£o conseguia progredir mais. Tinha tentado em v£o
entrar em contato com algum alquimista. Mas os alquimistas eram pessoas
estranhas, que sã pensavam neles mesmos, e quase sempre recusavam ajuda.
Quem sabe, n£o haviam descoberto o segredo da Grande Obra chamada de Pedra
Filosofal e por isso se fechavam no silªncio.
J¡ havia gasto parte da fortuna que seu pai lhe deixara, buscando
inutilmente a Pedra Filosofal. Tinha freqìentado as melhores bibliotecas do
mundo, e comprado os livros mais importantes e mais raros sobre alquimia.
Num deles descobriu que h¡ muitos anos atr¡s, um famoso alquimista ¡rabe
havia visitado a Europa. Diziam que ele tinha mais de duzentos anos, que
havia descoberto a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida. O Inglªs ficou
impressionado com a histãria. Mas tudo n£o teria passado de mais uma lenda,
se um amigo seu voltando de uma expedi§£o arqueolãgica no deserto n£o
lhe tivesse contado sobre um ¡rabe que tinha poderes excepcionais.
Mora no o¡sis de Al-Fayoum disse seu amigo. E as pessoas contam
que tem duzentos anos, e que © capaz de transformar qualquer metal em ouro.
O Inglªs n£o coube em si de tanta excita§£o. Imediatamente cancelou
todos os seus compromissos, juntou os livros mais importantes, e agora
estava ali, naquele armaz©m parecido com um curral, enquanto l¡ fora uma
imensa caravana se preparava para cruzar o Saara. A caravana passava por
Al-Fayoum.
"Tenho que conhecer este maldito Alquimista", pensou o Inglªs. E o
cheiro dos animais tornou-se um pouco mais toler¡vel.
Um jovem ¡rabe, tamb©m carregado de malas, entrou no lugar onde o
Inglªs estava e o cumprimentou.
Aonde vocª vai? perguntou o jovem ¡rabe.
Para o deserto respondeu o Inglªs, e voltou para a sua leitura. N£o
queria conversar agora. Precisava recordar tudo que havia aprendido em dez
anos, pois o Alquimista deveria submetª-lo a alguma esp©cie de prova.
O jovem ¡rabe tirou um livro e come§ou a ler. O livro estava escrito em
espanhol. "Ainda bem", pensou o Inglªs. Sabia falar espanhol melhor que
¡rabe, e se este rapaz fosse at© Al-Fayoum, ia ter algu©m para conversar
quando n£o estivesse ocupado com coisas importantes.
"Que coisa engra§ada" pensou o rapaz enquanto tentava mais uma vez
ler a cena do enterro que iniciava o livro. "Faz quase dois anos que
comecei a ler, e n£o consigo passar destas p¡ginas". Mesmo sem um rei para
interrompª-lo, ele n£o conseguia se concentrar. Ainda estava em dêvida
quanto sua decis£o. Mas estava percebendo uma coisa importante: as
decisåes eram apenas o come§o de alguma coisa. Quando algu©m tomava uma
decis£o, na verdade estava mergulhando numa correnteza poderosa, que levava
a pessoa para um lugar que jamais havia sonhado na hora de decidir.
"Quando resolvi ir em busca do meu tesouro, nunca imaginei trabalhar
numa loja de cristais", pensou o rapaz, para confirmar seu raciocnio. "Da
mesma maneira, esta caravana pode ser uma decis£o minha, mas seu percurso
ser¡ sempre um mist©rio".
Na sua frente havia um europeu tamb©m lendo um livro. O europeu era
antip¡tico, e tinha olhado com desprezo quando ele entrou. Podiam at© ter se
tornado bons amigos, mas o europeu havia interrompido a conversa.
O rapaz fechou o livro. N£o queria fazer nada que o deixasse parecido
com aquele europeu. Tirou o Urim e o Tumim do bolso, e come§ou a brincar com
eles.
O estrangeiro deu um grito:
Um Urim e um Tumim!
O rapaz, mais que depressa, guardou as pedras no bolso.
N£o est£o venda disse.
N£o valem muito disse o Inglªs. S£o cristais de rocha, nada mais.
H¡ milhåes de cristais de rocha na terra, mas para quem entende, estes s£o
Urim e Tumim. N£o sabia que eles existiam nesta parte do mundo.
Foi o presente de um rei disse o rapaz.
O estrangeiro ficou mudo. Depois enfiou a m£o no bolso e retirou,
tremendo, duas pedras iguais.
Vocª falou em um rei disse.
E vocª n£o acredita que os reis conversem com pastores disse o
rapaz, desta vez querendo encerrar a conversa.
Ao contr¡rio. Os pastores foram os primeiros a reconhecer um rei que
o resto do mundo recusou-se a conhecer. Por isso © muito prov¡vel que os
reis conversem com pastores.
E completou, com medo que o rapaz n£o estivesse entendendo:
Est¡ na Bblia. No mesmo livro que me ensinou a fazer este Urim e
este Tumim. Estas pedras eram a ênica forma de adivinha§£o permitida por
Deus. Os sacerdotes as carregavam num peitoral de ouro.
O rapaz ficou contente de estar naquele armaz©m.
Talvez isto seja um sinal disse o Inglªs, como quem pensa alto.
Quem lhe falou em sinais? o interesse do rapaz crescia a cada
momento.
Tudo na vida s£o sinais disse o Inglªs, desta vez fechando a
revista que estava lendo. O Universo © feito por uma lngua que todo mundo
entende, mas que j¡ se esqueceu. Estou procurando esta Linguagem Universal,
al©m de outras coisas.
"Por isso estou aqui. Porque tenho que encontrar um homem que conhece
esta Linguagem Universal. Um Alquimista."
A conversa foi interrompida pelo chefe do armaz©m.
Vocªs est£o com sorte disse o ¡rabe gordo. Sai hoje tarde uma
caravana para Al-Fayoum.
Mas eu vou ao Egito disse o rapaz.
Al-Fayoum © no Egito disse o dono.
Que tipo de ¡rabe vocª ©?
O rapaz disse que era espanhol. O Inglªs ficou satisfeito: mesmo
vestido como ¡rabe, o rapaz pelo menos era europeu.
Ele chama de "sorte" os sinais disse o Inglªs, depois que o gordo
¡rabe saiu. Se eu pudesse, escreveria uma gigantesca enciclop©dia sobre as
palavras "sorte" e "coincidªncia". ‰ com estas palavras que se escreve a
Linguagem Universal.
Depois comentou com o rapaz que n£o havia sido "coincidªncia"
encontr¡-lo com o Urim e o Tumim na m£o. Perguntou se ele tamb©m estava indo
em busca do Alquimista.
Estou indo em busca de um tesouro disse o rapaz, e arrependeu-se
imediatamente. Mas o Inglªs pareceu n£o dar import¢ncia.
De certa forma, eu tamb©m estou, disse.
E nem sei o que quer dizer Alquimia completou o rapaz, quando o
dono do armaz©m come§ou a cham¡-los para fora.
Eu sou o Lder da Caravana disse um senhor de barba longa e olhos
escuros. Tenho poder de vida e de morte sobre cada pessoa que carrego.
Porque o deserto © uma mulher caprichosa, e s vezes deixa os homens loucos.
Haviam quase duzentas pessoas, e o dobro de animais. Eram camelos,
cavalos, burros, aves. O Inglªs tinha v¡rias malas, cheias de livros. Haviam
mulheres, crian§as, e v¡rios homens com espadas na cintura e longas
espingardas nos ombros. Um imenso burburinho enchia o local, e o Lder teve
que repetir v¡rias vezes suas palavras para que todos entendessem.
H¡ v¡rios homens e deuses diferentes no cora§£o destes homens. Mas
meu ênico Deus © Allah, e por ele eu juro que farei o possvel e o melhor
para vencer mais uma vez o deserto. Agora quero que cada um de vocªs jure
pelo Deus em que acredita, no fundo
do seu cora§£o, de que ir¡ me obedecer em qualquer circunst¢ncia. No
deserto, a desobediªncia significa a morte.
Um murmêrio correu baixo por todas as pessoas. Estavam jurando em voz
baixa diante de seu Deus. O rapaz jurou por Jesus Cristo. O Inglªs ficou em
silªncio. O murmêrio se estendeu um tempo maior do que uma simples jura; as
pessoas tamb©m estavam pedindo prote§£o aos c©us.
Ouviu-se um longo toque de clarim, e cada um montou em seu animal. O
rapaz e o Inglªs haviam comprado camelos, e subiram com uma certa
dificuldade. O rapaz ficou com pena do camelo do Inglªs: estava carregado
com as pesadas sacolas de livros.
N£o existem coincidªncias disse o Inglªs, tentando continuar a
conversa que haviam iniciado no armaz©m. Foi um amigo que me trouxe at©
aqui, porque conhecia um ¡rabe, que...
Mas a caravana come§ou a andar, e ficou impossvel escutar o que o
Inglªs estava dizendo. Entretanto, o rapaz sabia exatamente do que se
tratava: a cadeia misteriosa que vai unindo uma coisa com a outra, que o
tinha levado a ser pastor, a ter o mesmo sonho, e estar numa cidade perto da
frica, e encontrar na pra§a um rei, e ser roubado para conhecer um mercador
de cristais, e...
"Quanto mais se chega perto do sonho, mais a Lenda Pessoal vai se
tornando a verdadeira raz£o de viver", pensou o rapaz.
A caravana come§ou a seguir em dire§£o ao poente. Viajavam de manh£,
paravam quando o sol ficava mais forte, e seguiam de novo ao entardecer. O
rapaz conversava pouco com o Inglªs, que passava a maior parte do tempo
entretido pelos livros.
Ent£o, passou a observar em silªncio a marcha de animais e homens pelo
deserto. Agora tudo era muito diferente do dia em que haviam partido:
naquele dia, confus£o e gritos, choros e crian§as e relinchar de animais, se
misturavam com as ordens nervosas dos guias e dos comerciantes.
No deserto, por©m, havia apenas o vento eterno, o silªncio, e o casco
dos animais. Mesmo os guias conversavam pouco entre si.
"J¡ cruzei muitas vezes estas areias" disse um cameleiro certa noite.
"Mas o deserto © t£o grande, os horizontes ficam t£o longe, que fazem a
gente se sentir pequeno e permanecer em silªncio".
O rapaz entendeu o que o cameleiro queria dizer, mesmo sem ter pisado
antes num deserto. Todas as vezes que olhava o mar ou o fogo, era capaz de
ficar horas em silªncio, sem pensar em nada, mergulhado na imensid£o e na
for§a dos elementos.
"Aprendi com ovelhas e aprendi com cristais", pensou ele. "Posso tamb©m
aprender com o deserto. Ele me parece mais velho e mais s¡bio".
O vento n£o parava nunca. O rapaz lembrou-se do dia em que sentiu este
mesmo vento, sentado num forte em Tarifa. Talvez ele agora estivesse ro§ando
de leve pela l£ de suas ovelhas, que seguiam em busca de alimento e ¡gua
pelos campos de Andaluzia.
"N£o s£o mais minhas ovelhas", disse para si mesmo, sem sentir
saudades. "Devem ter se acostumado a um novo pastor, e j¡ me esqueceram.
Isto © bom. Quem est¡ acostumado a viajar, como as ovelhas, sabe que ©
sempre necess¡rio partir um dia".
Lembrou-se depois, da filha do comerciante, e teve certeza de que ela
j¡ havia casado. Quem sabe com um pipoqueiro, ou com um pastor que tamb©m
soubesse ler e contasse histãrias extraordin¡rias; afinal, ele n£o devia ser
o ênico. Mas ficou impressionado com o seu pressentimento: talvez ele
estivesse aprendendo tamb©m esta histãria de Linguagem Universal, que sabe o
passado e o presente de todos os homens. "Pressentimentos", como sua m£e
costumava dizer. O rapaz come§ou a entender que os pressentimentos eram os
r¡pidos mergulhos que a alma dava nesta corrente Universal de vida, onde a
histãria de todos os homens est¡ ligada entre si, e podemos saber tudo,
porque tudo est¡ escrito.
"Maktub", disse o rapaz, lembrando-se do Mercador de Cristais.
O deserto era s vezes feito de areia, e s vezes feito de pedra. Se a
caravana chegava em frente a uma pedra, ela a contornava; se estavam diante
de um rochedo, davam uma longa volta. Se a areia era fina demais para o
casco dos camelos, procuravam um lugar onde a areia fosse mais resistente.
€s vezes o ch£o estava coberto de sal, no lugar onde um lago devia haver
existido. Os animais ent£o se queixavam, e os cameleiros desciam e
desatolavam os animais. Depois colocavam as cargas nas prãprias costas,
passavam pelo ch£o trai§oeiro, e novamente carregavam os animais. Se um guia
ficava doente ou morria, os cameleiros lan§avam a sorte e escolhiam um novo
guia.
Mas tudo isto acontecia por uma ênica raz£o: n£o importava quantas
voltas tivesse que dar, a caravana seguia sempre em dire§£o a um mesmo
ponto. Depois de vencidos os obst¡culos, ela voltava de novo sua frente para
o astro que indicava a posi§£o
do o¡sis. Quando as pessoas viam aquele astro brilhando no c©u pela
manh£, sabiam que ele indicava um lugar com mulheres, ¡gua, t¢maras e
palmeiras. Sã o Inglªs n£o percebia aquilo: estava a maior parte do tempo
imerso na leitura dos seus livros.
O rapaz tamb©m tinha um livro, que havia tentado ler nos primeiros dias
de viagem. Mas achava muito mais interessante olhar a caravana e escutar o
vento. Assim que aprendeu a conhecer melhor seu camelo e a se afei§oar a
ele, jogou o livro fora. Era um peso desnecess¡rio, apesar do rapaz haver
criado a supersti§£o de que toda vez que abria o livro, encontrava algu©m
importante.
Terminou fazendo amizade com o cameleiro que viajava sempre ao seu
lado. De noite, quando paravam em volta das fogueiras, costumava contar suas
aventuras como pastor ao cameleiro.
Numa destas conversas o cameleiro come§ou a falar de sua vida.
Eu morava num lugar perto de El Cairum contou. Tinha minha horta,
meus filhos e uma vida que n£o ia mudar at© o dia de minha morte. Num ano em
que a colheita foi melhor, seguimos todos para Meca, e eu cumpri a ênica
obriga§£o que estava faltando na minha vida. Podia morrer em paz, e gostava
disto.
"Certo dia a terra come§ou a tremer, e o Nilo subiu al©m do seu limite.
Aquilo que eu pensava que sã acontecia com os outros, terminou acontecendo
comigo. Meus vizinhos tiveram medo de perder suas oliveiras com a inunda§£o;
minha mulher teve receio de que nossos filhos fossem levados pelas ¡guas. E
eu tive pavor de ver destrudo tudo que havia conquistado.
"Mas n£o houve jeito. A terra ficou imprest¡vel e tive que arranjar
outro meio de vida.
Hoje sou cameleiro. Mas a entendi a palavra de Allah: ningu©m sente
medo do desconhecido, porque qualquer pessoa © capaz de conquistar tudo que
quer e necessita.
"Sã sentimos medo de perder aquilo que temos, sejam nossas vidas ou
nossas planta§åes. Mas este medo passa quando entendemos que nossa histãria
e a histãria do mundo foram escritas pela mesma M£o".
€s vezes as caravanas se encontravam durante a noite. Sempre uma delas
tinha o que a outra estava precisando como se realmente tudo fosse escrito
por uma sã M£o. Os cameleiros trocavam informa§åes sobre as tempestades de
vento, e se reuniam em torno das fogueiras, contando as histãrias do
deserto.
Outras vezes chegavam misteriosos homens encapu§ados; eram bedunos que
espionavam a rota seguida pelas caravanas. Davam notcias de assaltantes e
tribos b¡rbaras. Chegavam no silªncio e partiam no silªncio, com as roupas
negras deixando apenas os olhos de fora.
Numa destas noites o cameleiro veio at© a fogueira onde o rapaz e o
Inglªs estavam sentados.
H¡ rumores de guerra entre os cl£s disse o cameleiro.
Os trªs ficaram quietos. O rapaz notou que havia medo no ar, mesmo que
ningu©m tivesse dito nenhuma palavra. Mais uma vez estava percebendo a
linguagem sem palavras, a Linguagem Universal.
Depois de certo tempo, o Inglªs perguntou se havia perigo.
Quem entra no deserto n£o pode voltar disse o cameleiro. Quando
n£o se pode voltar, sã devemos ficar preocupado com a melhor maneira de
seguir em frente. O resto © por conta de Allah, inclusive o perigo.
E concluiu dizendo a misteriosa palavra: "Maktub".
Vocª precisa prestar mais aten§£o s caravanas disse o rapaz ao
Inglªs, depois que o cameleiro saiu. Elas d£o muitas voltas, mas rumam
sempre para o mesmo lugar.
E vocª devia ler mais sobre o mundo respondeu o Inglªs. Os livros
s£o iguais s caravanas.
O imenso grupo de homens e animais come§ou a andar mais r¡pido. Al©m do
silªncio durante o dia, as noites quando as pessoas costumavam se reunir
para conversar em torno das fogueiras come§aram a ficar tamb©m
silenciosas. Certo dia o Lder da Caravana decidiu que nem fogueiras podiam
mais ser acesas, para n£o chamar a aten§£o sobre a caravana.
Os viajantes passaram a fazer uma roda de animais, e dormiam todos
juntos no centro, tentando se proteger do frio noturno. O Lder passou a
instalar sentinelas armadas em volta do grupo.
Numa daquelas noites o Inglªs n£o conseguiu dormir. Chamou o rapaz e
come§aram a passear pelas dunas em volta do acampamento. Era uma noite de
lua cheia, e o rapaz contou ao Inglªs toda a sua histãria.
O Inglªs ficou fascinado com a loja que havia progredido depois que o
rapaz come§ou a trabalhar nela.
Este © o princpio que move todas as coisas disse. Na Alquimia ©
chamado de Alma do Mundo. Quando vocª deseja algo de todo o seu cora§£o,
vocª est¡ mais prãximo da Alma do Mundo. Ela © sempre uma for§a positiva.
Disse tamb©m que isto n£o era apenas um dom dos homens: todas as coisas
sobre a face da Terra tinham tamb©m uma alma, n£o importando se era mineral,
vegetal, animal, ou apenas um simples pensamento.
Tudo que est¡ sob e sobre a face da Terra se transforma sempre,
porque a Terra est¡ viva; e tem uma alma. Somos parte desta Alma, e
raramente sabemos que ela sempre trabalha em nosso favor. Mas vocª deve
entender que, na loja dos cristais, at© mesmo os vasos estavam colaborando
para o seu sucesso.
O rapaz ficou em silªncio por algum tempo, olhando a lua e a areia
branca.
Tenho visto a caravana caminhando atrav©s do deserto disse, por
fim. Ela e o deserto falam a mesma lngua, e por isso ele permite que ela
o atravesse. Vai testar cada passo seu, para ver se est¡ em perfeita
sintonia com ele; e se estiver, ela chegar¡ at© o o¡sis.
"Se um de nãs chegasse aqui com muita coragem, mas sem entender esta
lngua, ia morrer no primeiro dia."
Continuaram olhando a lua, juntos.
Esta © a magia dos sinais continuou o rapaz. Tenho visto como os
guias lªem os sinais do deserto, e como a alma da caravana conversa com a
alma do deserto.
Depois de algum tempo, foi a vez do Inglªs falar.
Preciso prestar mais aten§£o caravana disse, por fim.
E eu preciso ler seus livros falou o rapaz.
Eram livros estranhos. Falavam em mercêrio, sal, dragåes e reis, mas
ele n£o conseguia entender nada. Entretanto, havia uma id©ia que parecia
repetida em quase todos os livros: todas as coisas eram manifesta§åes de uma
coisa sã.
Num dos livros ele descobriu que o texto mais importante da Alquimia
tinha apenas poucas linhas, e havia sido escrito numa simples esmeralda.
‰ a T¡boa da Esmeralda falou o Inglªs, orgulhoso por ensinar alguma
coisa ao rapaz.
E ent£o, para que tantos livros?
Para entender estas linhas respondeu o Inglªs, sem estar muito
convencido da prãpria resposta.
O livro que mais interessou ao rapaz contava a histãria dos alquimistas
famosos. Eram homens que tinham dedicado sua vida inteira a purificar metais
nos laboratãrios; acreditavam que se um metal fosse cozinhado durante muitos
e muitos anos, terminaria se libertando de todas as suas propriedades
individuais, e em seu lugar sobrava apenas a Alma do Mundo. Esta Coisa šnica
permitia que os alquimistas entendessem qualquer coisa sobre a face da
Terra, porque ela era a linguagem pela qual as coisas se comunicavam. Eles
chamavam esta descoberta de Grande Obra que era composta de uma parte
lquida e uma parte sãlida.
N£o basta observar os homens e os sinais, para se descobrir esta
linguagem? perguntou o rapaz.
Vocª tem mania de simplificar tudo respondeu o Inglªs irritado. A
Alquimia © um trabalho s©rio. Precisa que cada passo seja seguido exatamente
como os mestres ensinaram.
O rapaz descobriu que a parte lquida da Grande Obra era chamada de
Elixir da Longa Vida, e curava todas as doen§as, al©m de evitar que o
alquimista ficasse velho. E a parte sãlida era camada de Pedra Filosofal.
N£o © f¡cil descobrir a Pedra Filosofal disse o Inglªs. Os
alquimistas ficavam muitos anos nos laboratãrios, olhando aquele fogo que
purificava os metais. Olhavam tanto o fogo, que aos poucos suas cabe§as iam
perdendo todas as vaidades do mundo. Ent£o, um belo dia, descobriam que a
purifica§£o dos metais havia terminado por purificar a eles mesmos.
O rapaz se lembrou do Mercador de Cristais. Ele havia falado que tinha
sido bom limpar seus vasos, para que ambos se libertassem tamb©m dos maus
pensamentos. Estava cada vez mais convencido de que a Alquimia poderia ser
aprendida na vida di¡ria.
Al©m disso falou o Inglªs a Pedra Filosofal tem uma propriedade
fascinante. Uma pequena lasca dela © capaz de transformar grandes
quantidades de metal em ouro.
A partir desta frase, o rapaz ficou interessadssimo em Alquimia.
Pensava que, com um pouco de paciªncia, poderia transformar tudo em ouro.
Leu a vida de v¡rias pessoas que tinham conseguido: Helvetius, Elias,
Fulcanelli, Geber. Eram histãrias fascinantes: todos estavam vivendo at© o
fim sua Lenda Pessoal. Viajavam, encontravam s¡bios, faziam milagres na
frente dos incr©dulos, possuam a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida.
Mas quando queria aprender a maneira de conseguir a Grande Obra, ficava
completamente perdido. Eram apenas desenhos, instru§åes em cãdigo, textos
obscuros.
Por que eles falam t£o difcil? perguntou certa noite ao Inglªs.
Notou tamb©m que o Inglªs andava meio aborrecido e sentindo falta de seus
livros.
Para que sã os que tªm responsabilidade de entender que entendam
disse ele. Imagine se todo mundo sasse transformando chumbo em ouro.
Daqui a pouco o ouro n£o ia valer nada.
"Sã os persistentes, sã aqueles que pesquisam muito, © que conseguem a
Grande Obra. Por isso estou no meio deste deserto. Para encontrar um
verdadeiro Alquimista, que me ajude a decifrar os cãdigos".
Quando foram escritos estes livros? perguntou o rapaz.
H¡ muitos s©culos atr¡s.
Naquela ©poca n£o havia imprensa insistiu o rapaz. N£o havia jeito
de todo mundo tomar conhecimento da Alquimia. Por que esta linguagem t£o
estranha, cheia de desenhos?
O Inglªs n£o respondeu nada. Disse que h¡ v¡rios dias estava prestando
aten§£o caravana, e que n£o conseguia descobrir nada de novo. A ênica
coisa que tinha notado era que os coment¡rios sobre a guerra aumentavam cada
vez mais.
Um belo dia o rapaz entregou de volta os livros ao Inglªs.
Ent£o, aprendeu muita coisa? perguntou o outro, cheio de
expectativa. Estava precisando de algu©m com quem pudesse conversar para
esquecer o medo da guerra.
Aprendi que o mundo tem uma Alma, e quem entender esta Alma,
entender¡ a linguagem das coisas. Aprendi que muitos alquimistas viveram sua
Lenda Pessoal e terminaram descobrindo a Alma do Mundo, a Pedra Filosofal, o
Elixir.
"Mas, sobretudo, aprendi que estas coisas s£o t£o simples que podem ser
escritas numa esmeralda".
O Inglªs ficou decepcionado. Os anos de estudo, os smbolos m¡gicos, as
palavras difceis, os aparelhos de laboratãrio, nada disso havia
impressionado o rapaz. "Ele deve ter uma alma primitiva demais para
compreender isto", apensou.
Pegou seus livros e guardou nos sacos que pendiam do camelo.
Volte para sua caravana disse. Ela tampouco me ensinou qualquer
coisa.
O rapaz voltou a contemplar o silªncio do deserto e a areia levantada
pelos animais. "Cada um tem sua maneira de aprender", repetia consigo mesmo.
"A maneira dele n£o © a minha, e minha maneira n£o © a dele. Mas ambos
estamos em busca de nossa Lenda Pessoal, e eu o respeito por isto".
A caravana come§ou a viajar dia e noite . A toda hora apareciam os
mensageiros encapu§ados, e o cameleiro que haviam se tornado amigo do
rapaz explicou que a guerra entre os cl£s havia come§ado. Teriam muita
sorte se conseguissem chegar ao o¡sis.
Os animais estavam exaustos, e os homens cada vez mais silenciosos. O
silªncio era mais terrvel na parte da noite, quando um simples relincho de
camelo que antes n£o passava de um relincho de camelo agora assustava a
todos e podia ser um sinal de invas£o.
O cameleiro, por©m, parecia n£o se impressionar muito com a amea§a de
guerra.
Estou vivo disse ao rapaz, enquanto comia um prato de t¢maras na
noite sem fogueiras e sem lua. Enquanto estou comendo, n£o fa§o nada al©m
de comer. Se estiver caminhando, apenas caminharei. Se tiver que lutar, ser¡
um dia t£o bom para morrer como qualquer outro.
"Porque n£o vivo nem no meu passado, nem no meu futuro. Tenho apenas o
presente, e ele © o que me interessa. Se vocª puder permanecer sempre no
presente, ent£o ser¡ um homem feliz. Vai perceber que no deserto existe
vida, que o c©u tem estrelas, e que os guerreiros lutam porque isto faz
parte da ra§a humana. A vida ser¡ uma festa, um grande festival, porque ela
© sempre e apenas o momento que estamos vivendo."
Duas noites depois, quando se preparava para dormir, o rapaz olhou em
dire§£o ao astro que seguiam durante a noite. Achou que o horizonte estava
um pouco mais baixo, porque em cima do deserto haviam centenas de estrelas.
‰ o o¡sis disse o cameleiro.
E porque n£o chegamos l¡ imediatamente?
Porque precisamos dormir.
O rapaz abriu os olhos quando o sol come§ava a surgir no horizonte.
Diante dele, onde as pequenas estrelas haviam estado durante a noite,
estendia-se uma fila intermin¡vel de tamareiras, cobrindo toda a frente do
deserto.
Conseguimos! disse o Inglªs, que tamb©m tinha acabado de acordar.
O rapaz, por©m, mantinha-se calado. Aprendera o silªncio do deserto, e
contentava-se em olhar as tamareiras na sua frente. Ainda tinha que caminhar
muito para chegar at© as Pir¢mides, e algum dia aquela manh£ seria apenas
uma lembran§a. Mas agora ela era o momento presente, a festa da qual havia
falado o cameleiro, e ele estava procurando vivª-lo com as li§åes do seu
passado e os sonhos do seu futuro. Um dia, aquela vis£o de milhares de
tamareiras seria apenas uma lembran§a. Mas para ele, neste momento,
significava sombra, ¡gua, e um refêgio para a guerra. Assim como um relincho
de camelo podia se transformar em perigo, uma fila de tamareiras podia
significar um milagre.
"O mundo fala muitas linguagens", pensou o rapaz.
"Quando os tempos andam depressa, as caravanas correm tamb©m", pensou o
Alquimista, enquanto via chegar centenas de pessoas e animais ao O¡sis. As
pessoas gritavam atr¡s dos rec©m-chegados, a poeira encobria o sol do
deserto, e as crian§as pulavam de excita§£o ao ver os estranhos. O
Alquimista percebeu os chefes tribais se aproximarem do Lder da Caravana, e
conversarem longamente entre si.
Mas nada daquilo interessava ao Alquimista. J¡ havia visto muita gente
chegar e partir, enquanto o O¡sis e o deserto permaneciam o mesmo. Tinha
visto reis e mendigos pisando aquelas areias que sempre mudavam de forma por
causa do vento, mas que eram as mesmas que havia conhecido quando crian§a.
Mesmo assim, n£o conseguia conter no fundo do seu cora§£o um pouco da
alegria de vida que todo viajante experimentava quando, depois de terra
amarela e c©u azul, o verde das tamareiras aparecia diante de seus olhos.
"Talvez Deus tenha criado o deserto para que o homem pudesse sorrir com as
tamareiras", pensou ele.
Depois resolveu concentrar-se em assuntos mais pr¡ticos. Sabia que
naquela caravana vinha o homem a quem devia ensinar parte de seus segredos.
Os sinais lhe haviam contado isto. Ainda n£o conhecia este homem, mas seus
olhos experimentados o reconheceriam quando o visse. Esperava que fosse
algu©m t£o capaz como seu aprendiz anterior.
"N£o sei porque estas coisas tem que ser transmitidas de boca para
ouvido", pensava ele. N£o era exatamente porque as coisas eram secretas;
Deus revelava prodigamente seus segredos a todas as criaturas.
Ele sã conhecia uma explica§£o para este fato: as coisas tinham que ser
transmitidas assim porque elas seriam feitas de Vida Pura, e este tipo de
vida dificilmente consegue ser capturado em pinturas ou palavras.
Porque as pessoas se fascinam com pinturas e palavras, e terminam se
esquecendo da Linguagem do Mundo.
Os rec©m-chegados foram trazidos imediatamente presen§a dos chefes
tribais de Al-Fayoum. O rapaz n£o podia acreditar no que estava vendo: ao
inv©s de um po§o cercado de algumas palmeiras como havia lido certa vez
num livro de histãria o o¡sis era muito maior do que v¡rias aldeias da
Espanha. Tinha trezentos po§os, cinqìenta mil tamareiras, e muitas tendas
coloridas espalhadas entre elas.
Parece as Mil e Uma Noites disse o Inglªs, impaciente para
encontrar-se logo com o Alquimista.
Foram cercados logo pelas crian§as, que olhavam curiosas os animais, os
camelos, e as pessoas que chegavam. Os homens queriam saber se tinham visto
algum combate, e as mulheres disputavam entre si os tecidos e pedras que os
mercadores haviam trazido. O silªncio do deserto parecia um sonho distante;
as pessoas falavam sem parar, riam e gritavam, como se tivessem sado de um
mundo espiritual, para estarem de novo entre os homens. Estavam contentes e
felizes.
Apesar das precau§åes do dia anterior, o cameleiro explicou ao rapaz
que os o¡sis no deserto eram sempre considerados terrenos neutros, porque a
maior parte dos habitantes eram mulheres e crian§as. E haviam o¡sis tanto de
um lado como de outro; assim, os guerreiros iam lutar do deserto, e deixavam
os o¡sis como cidades de refêgio.
O Lder da Caravana reuniu todos com uma certa dificuldade, e come§ou a
dar as instru§åes. Iam permanecer ali at© que a guerra entre os cl£s tivesse
terminada. Como eram visitantes, deviam compartilhar as tendas com
habitantes do o¡sis, que lhes dariam seus melhores lugares. Era a
hospitalidade da Lei. Depois pediu que todos, inclusive seus prãprios
sentinelas, entregassem as armas aos homens indicados pelos chefes tribais.
S£o as regras da Guerra explicou o Lder da Caravana. Desta
maneira, os o¡sis n£o poderiam abrigar ex©rcitos ou guerreiros.
Para surpresa do rapaz, o Inglªs tirou de seu casaco um revãlver
cromado e entregou ao homem que recolhia as armas.
Para que um revãlver? perguntou.
Para aprender a confiar nos homens respondeu o Inglªs. Estava
contente por haver chegado ao final de sua busca.
O rapaz, por©m, pensava em seu tesouro. Quanto mais perto ele ficava de
seu sonho, mais as coisas se tornavam difceis. N£o funcionava mais aquilo
que o velho rei havia chamado de "sorte de principiante". O que funcionava,
sabia ele, era o teste da persistªncia e da coragem de quem busca sua Lenda
Pessoal. Por isso ele n£o podia se apressar, nem ficar impaciente. Se agisse
assim, ia terminar sem ver os sinais que Deus havia posto no seu caminho.
"Deus colocou no meu caminho", pensou o rapaz, surpreso consigo mesmo.
At© aquele momento considerava os sinais como uma coisa do mundo. Algo como
comer ou dormir, algo como procurar um amor, ou conseguir um emprego. Nunca
tinha pensado que esta era uma linguagem que Deus estava usando para
mostrar-lhe o que devia fazer.
"N£o fique impaciente", repetiu o rapaz para si mesmo. "Como disse o
cameleiro, coma na hora de comer. E caminhe na hora de caminhar".
No primeiro dia todos dormiram de cansa§o, inclusive o Inglªs. O rapaz
havia ficado longe dele, numa tenda com outros cinco rapazes de idade quase
igual a sua. Eram gente do deserto, e queriam saber histãrias das grandes
cidades.
O rapaz falou de sua vida como pastor, e ia come§ar a contar sua
experiªncia na loja de cristais, quando o Inglªs entrou na tenda.
Procurei-o a manh£ inteira disse, enquanto carregava o rapaz para
fora. Preciso que me ajude a descobrir onde mora o Alquimista.
Primeiro os dois tentaram encontrar sozinhos. Um Alquimista devia viver
de maneira diferente das outras pessoas do o¡sis, e em sua tenda era muito
prov¡vel que um forno estivesse sempre aceso. Andaram bastante, at© ficarem
convencidos que o o¡sis era muito maior do que podiam imaginar, e com muitas
centenas de tendas.
Perdemos quase o dia inteiro disse o Inglªs, sentando-se com o
rapaz perto de um dos po§os do o¡sis.
Talvez seja melhor perguntarmos disse o rapaz.
O Inglªs n£o queria contar aos outros sua presen§a no O¡sis, e ficou
bastante indeciso. Mas acabou concordando e pediu ao rapaz, que falava
melhor o ¡rabe, para fazer isto. O rapaz se aproximou de uma mulher que
havia chegado no po§o para encher de ¡gua um saco de pele de carneiro.
Boa tarde, senhora. Gostaria de saber onde vive um Alquimista neste
o¡sis perguntou o rapaz.
A mulher disse que jamais havia ouvido falar disso, e foi imediatamente
embora. Antes, por©m, avisou ao rapaz que n£o deveria conversar com mulheres
vestidas de preto, porque eram mulheres casadas. Ele tinha que respeitar a
Tradi§£o.
O Inglªs ficou decepcionadssimo. Tinha feito toda a sua viagem por
nada. O rapaz tamb©m ficou triste; seu companheiro tamb©m estava em busca de
sua Lenda Pessoal. E quando algu©m faz isto, o Universo todo se esfor§a para
que a pessoa consiga o que deseja, dissera o velho rei. Ele n£o podia estar
enganado.
Eu nunca tinha ouvido falar antes de alquimistas disse o rapaz.
Sen£o tentaria ajud¡-lo.
Alguma coisa brilhou nos olhos do Inglªs.
‰ isto! Talvez ningu©m aqui saiba o que © um alquimista! Pergunte
pelo homem que cura todas as doen§as da aldeia!
V¡rias mulheres vestidas de preto vieram buscar ¡gua no po§o, e o rapaz
n£o conversou com elas, por mais que o Inglªs insistisse. At© que um homem
se aproximou.
Conhece algu©m que cura as doen§as da aldeia? perguntou o rapaz.
Allah cura todas as doen§as, disse o homem, visivelmente apavorado
com os estrangeiros. Vocªs est£o em busca de bruxos.
E depois de dizer alguns versculos do Alcor£o, seguiu seu caminho.
Um outro homem se aproximou. Era mais velho, e trazia apenas um pequeno
balde. O rapaz repetiu a pergunta.
Por que vocªs querem conhecer este tipo de homem? respondeu o ¡rabe
com outra pergunta.
Porque meu amigo viajou muitos meses para encontr¡-lo disse o
rapaz.
Se este homem existe no o¡sis, deve ser muito poderoso disse o
velho, depois de pensar por alguns instantes. Nem os chefes tribais
conseguiriam vª-lo quando precisam. Sã quando ele assim determinasse.
"Esperem o final da guerra. E ent£o partam com a caravana. N£o procurem
entrar na vida do o¡sis", concluiu, se afastando.
Mas o Inglªs ficou exultante. Estavam na pista certa.
Finalmente surgiu uma mo§a que n£o estava vestida de negro. Trazia um
c¢ntaro no ombro, e a cabe§a coberta com um v©u, mas tinha o rosto
descoberto. O rapaz aproximou-se para perguntar sobre o Alquimista.
Ent£o foi como se o tempo parasse, e a Alma do Mundo surgisse com toda
a for§a diante do rapaz. Quando ele olhou seus olhos negros, seus l¡bios
indecisos entre um sorriso e o silªncio, ele entendeu a parte mais
importante e mais s¡bia da Linguagem que o mundo falava, e que todas as
pessoas da terra eram capazes de entender em seus cora§åes. E isto era
chamado de Amor, uma coisa mais antiga que os homens e que o prãprio
deserto, e que no entanto ressurgia sempre com a mesma for§a onde quer que
dois pares de olhos se cruzassem como se cruzaram aqueles dois pares de
olhos diante de um po§o. Os l¡bios finalmente resolveram dar um sorriso, e
aquilo era um sinal, o sinal que ele esperou sem saber durante tanto tempo
em sua vida, que tinha buscado nas ovelhas e nos livros, nos cristais e no
silªncio do deserto.
Ali estava a pura linguagem do mundo, sem explica§åes, porque o
Universo n£o precisava de explica§åes para continuar seu caminho no espa§o
sem fim. Tudo o que o rapaz entendia naquele momento era que estava diante
da mulher de sua vida, e sem nenhuma necessidade de palavras, ela devia
saber disto tamb©m. Tinha mais certeza disto do que de qualquer coisa no
mundo, mesmo que seus pais, e os pais de seus pais dissessem que era preciso
namorar, noivar, conhecer a pessoa e ter dinheiro antes de se casar. Quem
dizia isto talvez jamais tivesse conhecido a linguagem universal, porque
quando se mergulha nela, © f¡cil entender que sempre existe no mundo uma
pessoa que espera a outra, seja no meio de um deserto, seja no meio das
grandes cidades. E quando estas pessoas se cruzam, e seus olhos se
encontram, todo o passado e todo o futuro perde qualquer import¢ncia, e sã
existe aquele momento, e aquela certeza incrvel de que todas as coisas
debaixo do sol foram escritas pela mesma M£o. A M£o que desperta o Amor, e
que fez uma alma gªmea para cada pessoa que trabalha, descansa e busca
tesouros debaixo do sol. Porque sem isto n£o haveria qualquer sentido para
os sonhos da ra§a humana.
"Maktub", pensou o rapaz.
O Inglªs levantou-se de onde estava sentado e sacudiu o rapaz.
Vamos, pergunte a ela!
O rapaz se aproximou da mo§a. Ela tornou a sorrir. Ele sorriu tamb©m.
Como vocª se chama? perguntou.
Me chamo F¡tima disse a mo§a, olhando para o ch£o.
‰ um nome que algumas mulheres tem na terra de onde venho.
‰ o nome da filha do Profeta disse F¡tima. Os guerreiros os
levaram para l¡.
A mo§a delicada falava de guerreiros com orgulho. Ao seu lado o Inglªs
insistia, e o rapaz perguntou pelo homem que curava todas as doen§as.
‰ um homem que conhece os segredos do mundo. Conversa com os djins do
deserto ela falou.
Os djins eram os demänios. E a mo§a apontou para o sul, para o lugar
onde aquele estranho homem morava.
Depois encheu seu c¢ntaro e partiu. O Inglªs partiu tamb©m, em busca do
Alquimista. E o rapaz ficou por muito tempo sentado ao lado do po§o,
entendendo que algum dia o Levante havia deixado em seu rosto o perfume
daquela mulher, e que j¡ a amava antes mesmo de saber que ela existia, e que
seu amor por ela faria com que encontrasse todos os tesouros do mundo.
No dia seguinte o rapaz voltou para o po§o, para esperar a mo§a. Para
sua surpresa, encontrou l¡ o Inglªs, olhando pela primeira vez o deserto.
Esperei a tarde e a noite disse o Inglªs. Ele chegou junto com as
primeiras estrelas. Eu lhe contei o que estava procurando. Ent£o ele me
perguntou se j¡ havia transformado chumbo em ouro. Eu disse que era isto que
queria aprender.
"Ele me mandou tentar. Foi tudo que me disse: v¡ tentar".
O rapaz ficou quieto. O Inglªs havia viajado tanto para ouvir o que j¡
sabia. A ele se lembrou de que tinha dado seis ovelhas ao velho rei pela
mesma raz£o.
Ent£o tente disse para o Inglªs.
‰ isto que vou fazer. E vou come§ar agora.
Pouco depois que o Inglªs saiu, F¡tima chegou para apanhar ¡gua com seu
c¢ntaro.
Vim dizer-lhe uma coisa simples falou o rapaz. Eu quero que vocª
seja minha mulher. Eu te amo.
A mo§a deixou que seu c¢ntaro derramasse a ¡gua.
Vou esper¡-la todos os dias aqui. Cruzei o deserto em busca de um
tesouro que se encontra perto das pir¢mides. A guerra foi para mim uma
maldi§£o. Agora ela © uma bªn§£o, porque me deixa perto de vocª.
A guerra um dia vai acabar disse a mo§a.
O rapaz olhou as tamareiras do o¡sis. Havia sido pastor. E ali existiam
muitas ovelhas. F¡tima era mais importante que o tesouro.
Os guerreiros buscam seus tesouros disse a mo§a, como se estivesse
adivinhando o pensamento do rapaz. E as mulheres do deserto tªm orgulho
dos seus guerreiros.
Depois tornou a encher seu c¢ntaro, e foi embora.
Todos os dias o rapaz ia para o po§o esperar F¡tima. Contou-lhe de sua
vida de pastor, do rei, da loja de cristais. Ficaram amigos, e com exce§£o
quinze minutos que passava com ela, o resto do dia custava infinitamente a
passar. Quando j¡ estava h¡ quase um mªs no o¡sis, o Lder da Caravana
convocou a todos para uma reuni£o.
N£o sabemos quando a guerra vai acabar, e n£o podemos seguir viagem
disse.
Os combates devem durar por muito tempo, talvez muitos anos. Existem
guerreiros fortes e valentes de ambos os lados, e existe a honra de combater
em ambos os ex©rcitos. N£o © uma guerra entre bons e maus. ‰ uma guerra
entre for§as que lutam pelo mesmo poder, e quando este tipo de batalha
come§a, demora mais que as outras porque Allah est¡ dos dois lados.
As pessoas se dispersaram. O rapaz tornou a encontrar-se com F¡tima
aquela tarde, e contou da reuni£o.
No segundo dia que nos encontramos disse F¡tima vocª me falou do
seu amor. Depois me ensinou coisas belas, como a Linguagem e a Alma do
Mundo. Tudo isto me faz aos poucos ser parte de vocª.
O rapaz ouvia sua voz, e achava mais bela que o barulho do vento nas
folhas das tamareiras.
Faz muito tempo, que estive aqui neste po§o esperando por vocª. N£o
consigo me lembrar do meu passado, da Tradi§£o, da maneira que os homens
esperam que se comportem as mulheres do deserto. Desde crian§a eu sonhava
que o deserto ia me trazer o maior presente de minha vida. Este presente
chegou afinal, e © vocª.
O rapaz pensou em tocar sua m£o. Mas F¡tima segurava as al§as do
c¢ntaro.
Vocª me falou dos seus sonhos, do velho rei, e do tesouro. Vocª me
falou dos sinais. Ent£o n£o tenho medo de nada, porque foram estes sinais
que me trouxeram vocª. E eu sou parte do seu sonho, da sua Lenda Pessoal,
como vocª costuma chamar.
"Por isso quero que siga em dire§£o ao que veio buscar. Se tiver que
esperar o final da guerra, muito bem. Mas se tiver que seguir antes, v¡ em
dire§£o sua lenda. As dunas mudam com o vento, mas o deserto permanece no
mesmo. Assim ser¡ com nosso amor.
"Maktub" disse. "Se eu for parte de sua Lenda, vocª voltar¡ um dia".
O rapaz saiu triste do encontro com F¡tima. Ele se lembrava de muita
gente que havia conhecido. Os pastores casados tinham muita dificuldade em
convencer suas esposas de que precisavam andar pelos campos. O amor exigia
estar junto da pessoa amada.
No dia seguinte ele contou tudo isto F¡tima.
O deserto leva nossos homens e nem sempre os traz de volta disse
ela. Ent£o nos acostumamos com isto. E eles passam a existir nas nuvens
sem chuva, nos animais que se escondem entre as pedras, na ¡gua que sai
generosa da terra. Eles passam a fazer parte de tudo, passam a ser a Alma do
Mundo.
"Alguns retornam. E ent£o todas as outras mulheres ficam felizes,
porque os homens que elas esperam tamb©m podem voltar um dia. Antes eu
olhava estas mulheres, e invejava sua felicidade. Agora vou ter tamb©m uma
pessoa para esperar.
"Sou uma mulher do deserto e me orgulho disto. Quero que meu homem
tamb©m caminhe livre como o vento que move as dunas. Quero tamb©m poder ver
meu homem nas nuvens, nos animais e na ¡gua."
O rapaz foi procurar o Inglªs. Queria contar-lhe sobre F¡tima. Ficou
surpreso quando viu que o Inglªs havia construdo um pequeno forno ao lado
de sua tenda. Era um forno estranho, com um frasco transparente em cima. O
Inglªs alimentava o fogo com lenha, e olhava o deserto. Seus olhos pareciam
ter mais brilho quando passava o tempo todo lendo livros.
Esta © a primeira fase do trabalho disse o Inglªs. Tenho que
separar o enxofre impuro. Para isto, nao posso ter medo de falhar. O meu
medo de falhar foi que me impediu de tentar a Grande Obra at© hoje. ‰ agora
que estou come§ando o que podia ter come§ado h¡ dez anos atr¡s. Mas me sinto
feliz de n£o ter esperado vinte anos para isto.
E continuou a alimentar o fogo e a olhar o deserto. O rapaz ficou ao
seu lado por algum tempo, at© que o deserto come§ou a ficar rosado com a luz
do entardecer. Ent£o ele sentiu uma imensa vontade de ir at© l¡, para ver se
o silªncio conseguia responder suas perguntas.
Caminhou sem destino por algum tempo, mantendo as tamareiras do o¡sis
ao alcance de seus olhos. Escutava o vento, e sentia as pedras sob seus p©s.
€s vezes encontrava alguma concha, e sabia que aquele deserto, num tempo
remoto, havia sido um grande mar. Depois sentou-se numa pedra e deixou-se
hipnotizar pelo horizonte que existia
na sua frente. N£o conseguia entender o Amor sem o sentimento de posse;
mas F¡tima era uma mulher do deserto, e se algu©m podia lhe ensinar isto,
era o deserto.
Ficou assim, sem pensar em nada, at© que pressentiu um movimento sobre
sua cabe§a. Olhando para o c©u, viu que eram dois gaviåes, voando muito
alto.
O rapaz come§ou a olhar os gaviåes, e os desenhos que eles faziam no
c©u. Parecia uma coisa desordenada, entretanto, tinham algum sentido para o
rapaz. Apenas n£o conseguia compreender seu significado. Decidiu ent£o que
devia acompanhar com os olhos o movimento dos p¡ssaros, e talvez pudesse ler
alguma coisa. Talvez o deserto pudesse lhe explicar o amor sem posse.
Come§ou a sentir sono. Seu cora§£o pediu para que n£o dormisse: ao
inv©s disto, devia se entregar. "Estava penetrando na Linguagem do Mundo, e
tudo nesta terra faz sentido, at© mesmo o väo de gaviåes", disse. E
aproveitou para agradecer pelo fato de estar cheio de amor por uma mulher.
"Quando se ama, as coisas fazem ainda mais sentido", pensou.
De repente, um gavi£o deu um r¡pido mergulho no c©u e atacou o outro.
Quando fez este movimento, o rapaz teve uma sêbita e r¡pida vis£o: um
ex©rcito, de espadas desembainhadas, entrando no o¡sis. A vis£o logo sumiu,
mas aquilo lhe deixou sobressaltado. Havia ouvido falar das miragens, e j¡
havia visto algumas: eram desejos que se materializavam sobre a areia do
deserto. Entretanto, ele n£o desejava um ex©rcito invadindo o o¡sis.
Pensou em esquecer aquilo e voltar sua medita§£o. Tentou novamente
concentrar-se no deserto cär-de-rosa e nas pedras. Mas alguma coisa em seu
cora§£o n£o o deixava quieto.
"Siga sempre os sinais", dissera o velho rei. E o rapaz pensou em
F¡tima. Lembrou-se do que havia visto, e pressentiu que estava prãximo de
acontecer.
Com muita dificuldade, saiu do transe em que havia entrado.
Levantou-se, e come§ou a caminhar em dire§£o s tamareiras. Mais uma vez
percebia as muitas linguagens das coisas: desta vez, o deserto era seguro, e
o o¡sis se transformara em perigo.
O cameleiro estava sentado aos p©s de uma tamareira, tamb©m olhando o
pär-do-sol. Viu quando o rapaz surgiu por detr¡s de uma das dunas.
Um ex©rcito se aproxima disse. Tive uma vis£o.
O deserto enche de visåes o cora§£o de um homem respondeu o
cameleiro.
Mas o rapaz lhe contou dos gaviåes: estava olhando seu väo quando tinha
mergulhado de repente na Alma do Mundo.
O cameleiro ficou quieto; entendia o que o rapaz estava falando. Sabia
que qualquer coisa na face da terra pode contar a histãria de todas as
coisas. Se abrisse um livro em qualquer p¡gina, ou olhasse as m£os das
pessoas, ou cartas de baralho, ou väo dos p¡ssaros, ou seja l¡ o que fosse,
qualquer pessoa iria encontrar um la§o com a coisa que estava vivendo. Na
verdade, n£o eram as coisas que mostravam nada; eram as pessoas que, olhando
para as coisas, descobriam a maneira de penetrar na Alma do Mundo.
O deserto estava cheio de homens que ganhavam a vida porque podiam
penetrar com facilidade na Alma do Mundo. Eram conhecidos por Adivinhos, e
temidos por mulheres e velhos. Os Guerreiros raramente os consultavam,
porque era impossvel entrar numa batalha sabendo quando se vai morrer. Os
Guerreiros preferiam o sabor da luta e a emo§£o do desconhecido; o futuro
havia sido escrito por Allah, e o que quer que Ele
tivesse escrito, era sempre para o bem do homem. Ent£o os Guerreiros
viviam apenas o presente, porque o presente era cheio de surpresas, e eles
tinham que prestar aten§£o em muitas coisas: onde estava a espada do
inimigo, onde estava seu cavalo, qual o prãximo golpe que devia desferir
para salvar a vida.
O cameleiro n£o era Guerreiro, e j¡ havia consultado alguns adivinhos.
Muitos disseram coisas certas, outros disseram coisas erradas.
At© que um deles, o mais velho (e o mais temido), perguntou porque o
cameleiro estava t£o interessado em saber o futuro.
Para que possa fazer as coisas respondeu o cameleiro. E mudar o
que n£o gostaria que acontecesse.
Ent£o deixar¡ de ser seu futuro respondeu o adivinho.
Talvez ent£o eu queira saber o futuro para me preparar para as coisas
que vir£o.
Se forem coisas boas, isto ser¡ uma agrad¡vel surpresa disse o
adivinho. Se forem coisas ruins, vocª estar¡ sofrendo muito antes delas
acontecerem.
Quero saber o futuro porque sou um homem disse o cameleiro para o
adivinho. E os homens vivem em fun§£o do seu futuro.
O adivinho ficou quieto por algum tempo. Ele era especialista no jogo
de varetas, que eram atiradas no ch£o e interpretadas da maneira que caam.
Naquele dia ele n£o jogou as varetas. Envolveu-as num len§o e tornou a
colocar no bolso.
Ganho a vida adivinhando o futuro das pessoas disse ele. Conhe§o
a ciªncia das varetas, e sei como utiliz¡-la para penetrar neste espa§o onde
tudo est¡ escrito. Ali posso ler o passado, descobrir o que j¡ foi
esquecido, e entender os sinais do presente.
"Quando as pessoas me consultam, eu n£o estou lendo o futuro; estou
adivinhando o futuro. Porque o futuro pertence a Deus, e ele sã o revela em
circunst¢ncias extraordin¡rias. E como consigo adivinhar o futuro? Pelos
sinais do presente. No presente © que est¡ o segredo; se vocª prestar
aten§£o no presente, poder¡ melhor¡-lo. E se vocª melhorar o presente, o que
acontecer¡ depois tamb©m ser¡ melhor. Esque§a o futuro e viva cada dia de
sua vida nos ensinamentos da Lei, e na confian§a de que Deus cuida dos seus
filhos. Cada dia traz em si a Eternidade".
O cameleiro quis saber quais as circunst¢ncias em que Deus permitia ver
o futuro:
Quando Ele mesmo o mostra. E Deus mostra o futuro raramente, e por
uma ênica raz£o: © um futuro que foi escrito para ser mudado.
Deus tinha mostrado um futuro ao rapaz, pensou o cameleiro. Porque
queria que o rapaz fosse o Seu instrumento.
V¡ falar com os chefes tribais disse o cameleiro. Conte dos
guerreiros que se aproximam.
Eles v£o rir de mim.
S£o homens do deserto, e os homens do deserto est£o acostumados com
os sinais.
Ent£o j¡ devem saber.
N£o est£o preocupados com isto. Acreditam que se tiverem que saber
algo que Allah deseje lhe contar, alguma pessoa lhes dir¡ isto. J¡ aconteceu
muitas vezes antes. Mas hoje, esta pessoa © vocª.
O rapaz pensou em F¡tima. E resolveu ir ver os chefes tribais.
Trago sinais do deserto disse ao guarda que ficava na porta da
imensa tenda branca no centro do o¡sis. Quero ver os chefes.
O guarda n£o disse nada. Entrou e demorou-se muito l¡ dentro. Depois
saiu com um ¡rabe jovem, vestido de branco e ouro. O rapaz contou ao jovem o
que havia visto. Ele pediu que esperasse um pouco e tornou a entrar.
A noite caiu. Entraram e saram v¡rios ¡rabes e mercadores. Aos poucos
as fogueiras foram se apagando, e o o¡sis come§ou a ficar t£o silencioso
como o deserto. Sã a luz da grande tenda continuava acesa. Durante todo este
tempo, o rapaz pensava em F¡tima, ainda sem entender a conversa daquela
tarde.
Finalmente, depois de muitas horas de espera, o guarda mandou que o
rapaz entrasse.
O que viu deixou-o extasiado. Nunca poderia imaginar que, no meio do
deserto, existisse uma tenda como aquela. O ch£o estava coberto com os mais
belos tapetes que j¡ havia pisado, e do teto pendiam lustres de metal
amarelo trabalhado, coberto de velas acessas. Os chefes tribais estavam
sentados no fundo da tenda, em semicrculo, descansando seus bra§os e pernas
em almofadas de seda com ricos bordados. Criados entravam e saam com
bandejas de prata cheias de especiarias e ch¡. Alguns se encarregavam de
manter acesas as brasas dos narguil©s. Um suave perfume de fumo enchia o
ambiente.
Haviam oito chefes, mas o rapaz logo percebeu quem era o mais
importante: um ¡rabe vestido de branco e ouro, sentado no centro do
semicrculo. Ao seu lado estava o jovem ¡rabe com quem tinha conversado
antes.
Quem © o estrangeiro que fala de sinais? perguntou um dos chefes,
olhando para ele.
Eu sou respondeu. E contou o que havia visto.
E por que o deserto ia contar isto a um estranho, quando sabe que
estamos h¡ v¡rias gera§åes aqui? disse outro chefe tribal.
Porque meus olhos ainda n£o se acostumaram com o deserto respondeu
o rapaz. E eu posso ver coisas que os olhos habituados demais n£o
conseguem mais ver.
"‰ porque eu sei da Alma do Mundo", pensou consigo mesmo. Mas n£o falou
nada, porque os ¡rabes n£o acreditam nestas coisas.
O O¡sis © um terreno neutro. Ningu©m ataca um O¡sis disse um
terceiro chefe.
Eu conto apenas o que vi. Se n£o quiserem acreditar, n£o fa§am nada.
Um completo silªncio abateu-se sobre a tenda, seguido de uma exaltada
conversa entre os chefes tribais. Falavam num dialeto ¡rabe que o rapaz n£o
entendia, mas quando ele fez men§£o de ir embora, um guarda disse para
ficar. O rapaz come§ou a sentir medo; os sinais diziam que havia alguma
coisa errada. Lamentou haver conversado com o cameleiro a respeito.
De repente, o velho que estava no centro deu um sorriso quase
imperceptvel, e o rapaz tranqìilizou-se. O velho n£o havia participado da
discuss£o, e n£o dissera uma palavra at© aquele momento. Mas o rapaz j¡
estava acostumado com a Linguagem do Mundo, e pode sentir uma vibra§£o de
Paz cruzando a tenda de ponta a ponta. Sua intui§£o dizia que havia agido
corretamente em vir.
A discuss£o acabou. Ficaram em silªncio por algum tempo, ouvindo o
velho. Depois, ele se virou para o rapaz: desta vez seu rosto estava frio e
distante.
H¡ dois mil anos, numa terra distante, jogaram num po§o e venderam
como escravo um homem que acreditava em sonhos disse o velho. Nossos
mercadores o compraram e o trouxeram para o Egito. E todos nãs sabemos que,
quem acredita em sonhos, tamb©m sabe interpret¡-los.
"Embora nem sempre consiga realiz¡-los", pensou o rapaz, lembrando-se
da velha cigana.
Por causa dos sonhos do faraã com vacas magras e gordas, este homem
livrou o Egito da fome. Seu nome era Jos©. Era tamb©m um estrangeiro numa
terra estrangeira, como vocª, e devia ter mais ou menos a sua idade.
O silªncio continuou. Os olhos do velho se mantinham frios.
Sempre seguimos a Tradi§£o. A Tradi§£o salvou o Egito da fome naquela
©poca, e o fez o mais rico entre os povos. A Tradi§£o ensina como os homens
devem atravessar o deserto e casar suas filhas. A Tradi§£o diz que um O¡sis
© um terreno neutro, porque ambos os lados tem O¡sis, e s£o vulner¡veis.
Ningu©m disse qualquer palavra enquanto o velho falava.
Mas a Tradi§£o diz tamb©m para acreditarmos nas mensagens do deserto.
Tudo que sabemos foi o deserto que nos ensinou.
O velho fez um sinal e todos os ¡rabes se levantaram. A reuni£o estava
para terminar. Os narguil©s foram apagados, e os guardas se colocaram em
posi§£o de sentido. O rapaz preparou-se para sair, mas o velho falou ainda
mais uma vez:
Amanh£ nãs vamos romper um acordo que diz que ningu©m no o¡sis pode
portar armas. Durante o dia inteiro aguardaremos os inimigos. Quando o sol
descer no horizonte, os homens me devolver£o as armas. Para cada dez
inimigos mortos, vocª receber¡ uma moeda de ouro.
"Entretanto, as armas n£o podem sair do seu lugar sem experimentarem a
batalha. S£o caprichosas como o deserto, e se as acostumamos com isto, da
prãxima vez podem ter pregui§a de disparar. Se nenhuma delas tiver sido
utilizada amanh£, pelo menos uma ser¡ usada em vocª."
O o¡sis estava iluminado apenas pela lua cheia quando o rapaz saiu.
Eram vinte minutos de caminhada at© sua tenda, e ele come§ou a andar.
Estava assustado com tudo que havia acontecido. Tinha mergulhado na
Alma do Mundo, e o pre§o por acreditar naquilo era a sua vida. Uma aposta
alta. Mas tinha apostado alto desde o dia em que havia vendido suas ovelhas
para seguir sua Lenda Pessoal. E como dizia o cameleiro, morrer amanh£ era
t£o bom como morrer em qualquer outro dia. Todo dia era feito para ser
vivido ou para abandonar o mundo. Tudo dependia apenas de uma palavra:
"Maktub".
Caminhou em silªncio. N£o estava arrependido. Se morresse amanh£, seria
porque Deus n£o estava com vontade de mudar o futuro. Mas teria morrido
depois de haver cruzado o estreito, trabalhado em uma loja de cristais,
conhecido o silªncio do deserto e os olhos de F¡tima. Tinha vivido
intensamente cada um dos seus dias, desde que havia sado de casa, h¡ tanto
tempo atr¡s. Se morresse amanh£, seus olhos teriam visto muito mais coisas
do que os olhos dos outros pastores, e o rapaz tinha orgulho disto.
De repente ouviu um estrondo, e foi jogado subitamente por terra, com o
impacto de um vento que n£o conhecia. O lugar encheu-se de poeira, que quase
cobriu a lua. Na sua frente, um enorme cavalo branco empinou soltando um
relincho aterrador.
O rapaz mal podia ver o que se passava, mas quando a poeira assentou um
pouco, sentiu um pavor que jamais havia sentido antes. Em cima do cavalo
estava um cavaleiro todo vestido de negro, com um falc£o em seu ombro
esquerdo. Usava um turbante e um len§o que lhe cobria todo o rosto, deixando
apenas os olhos de fora. Parecia o mensageiro do deserto, mas sua presen§a
era mais forte do que todas as pessoas que havia conhecido na vida.
O estranho cavaleiro puxou a enorme espada curva que trazia presa
sela. O a§o brilhou com a luz da lua.
Quem ousou ler o väo dos gaviåes? perguntou com uma voz t£o forte
que pareceu ecoar entre as cinqìenta mil tamareiras do Al-fayoum.
Eu ousei disse o rapaz. Lembrou-se imediatamente da imagem de
Santiago Matamouros do seu cavalo branco com os infi©is sob as patas. Era
exatamente assim. Sã que agora a situa§£o estava invertida.
Eu ousei repetiu o rapaz, e abaixou a cabe§a para receber o golpe
da espada. Muitas vidas ser£o salvas, porque vocªs n£o contavam com a Alma
do Mundo.
A espada, por©m, n£o desceu r¡pido. A m£o do estranho foi abaixando
lentamente, at© que a ponta da l¢mina tocou na testa do rapaz. Era t£o
afiada que saiu uma gota de sangue.
O cavaleiro estava completamente imãvel. O rapaz tamb©m. N£o pensou um
minuto sequer em fugir. Dentro do seu cora§£o, uma estranha alegria tomou
conta dele: ia morrer por sua Lenda Pessoal. E por F¡tima. Os sinais eram
verdadeiros, enfim. Ali estava o Inimigo, e por causa disto ele n£o
precisava se preocupar com a morte, porque havia uma Alma do Mundo. Daqui a
pouco ele estaria fazendo parte dela. E amanh£ o Inimigo faria parte dela
tamb©m.
O estranho, por©m, apenas mantinha a espada em sua testa.
Por que vocª leu o väo dos p¡ssaros?
Li apenas o que os p¡ssaros queriam contar. Eles querem salvar o
o¡sis, e vocªs morrer£o. O o¡sis tem mais homens que vocªs.
A espada continuava em sua testa.
Quem © vocª para mudar o destino de Allah?
Allah fez os ex©rcitos, e fez tamb©m os p¡ssaros. Allah me mostrou a
linguagem dos p¡ssaros. Tudo foi escrito pela mesma M£o, disse o rapaz,
lembrando as palavras do cameleiro.
O estranho finalmente retirou a espada da testa. O rapaz sentiu um
certo alvio. Mas n£o podia fugir.
Cuidado com as adivinha§åes disse o estranho. Quando as coisas
est£o escritas, n£o h¡ como evit¡-las.
Apenas vi um ex©rcito disse o rapaz. N£o vi o resultado de uma
batalha.
O cavaleiro parecia contente com a resposta. Mas mantinha a espada na
sua m£o.
O que faz um estrangeiro numa terra estrangeira?
Busco minha Lenda Pessoal. Algo que vocª n£o entender¡ nunca.
O cavaleiro colocou a espada na bainha, e o falc£o no seu ombro deu um
grito estranho. O rapaz come§ou a relaxar.
Precisava testar sua coragem disse o estranho. A coragem © o dom
mais importante para quem busca a Linguagem do Mundo.
O rapaz ficou surpreso. Aquele homem estava falando em coisas que pouca
gente conhecia.
‰ preciso n£o relaxar nunca, mesmo tendo chegado t£o longe
continuou ele. ‰ preciso amar o deserto, mas jamais confiar inteiramente
nele. Porque o deserto © uma prova para todos os homens: testa cada passo, e
mata quem se distrai.
Suas palavras lembravam as palavras do velho rei.
Se os guerreiros chegarem, e sua cabe§a ainda estiver sobre o pesco§o
depois que o sol morrer, me procure disse o estranho.
A mesma m£o que havia segurado a espada, empunhou um chicote. O cavalo
empinou de novo, levantando uma nuvem de poeira.
Onde vocª mora? gritou o rapaz, enquanto o cavaleiro se afastava.
A m£o com chicote apontou em dire§£o ao sul.
O rapaz tinha encontrado o Alquimista.
Na manh£ seguinte haviam dois mil homens armados entre as tamareiras de
Al-Fayoum. Antes que o sol chegasse ao topo do c©u, quinhentos guerreiros
apareceram no horizonte. Os cavaleiros entraram no o¡sis pela parte norte;
parecia uma expedi§£o de paz, mas haviam armas escondidas sobre os mantos
brancos. Quando chegaram perto da grande tenda que ficava no centro de
Al-Fayoum, puxaram as cimitarras e as espingardas. E atacaram uma tenda
vazia.
Os homens do o¡sis cercaram os cavaleiros do deserto. Em meia hora
haviam quatrocentos e noventa e nove corpos espalhados pelo ch£o. As
crian§as estavam no outro extremo do bosque de tamareiras, e n£o viram nada.
As mulheres rezavam por seus maridos nas tendas, e tamb©m n£o viram nada.
N£o fosse pelos corpos espalhados, o o¡sis parecia viver um dia normal.
Apenas um guerreiro foi poupado, o comandante do batalh£o. De tarde ele
foi conduzido diante dos chefes tribais, que lhe perguntaram porque havia
rompido a Tradi§£o. O comandante disse que seus homens estavam com fome e
sede, exaustos por tantos dias de batalha, e haviam decidido tomar um o¡sis
para poder recome§ar a luta.
O chefe tribal disse que sentia pelos guerreiros, mas a Tradi§£o jamais
pode ser rompida. A ênica coisa que muda no deserto s£o as dunas, quando
sopra o vento.
Depois condenou o comandante a uma morte sem honra. Ao inv©s do a§o ou
da bala de fuzil, ele foi enforcado numa tamareira tamb©m morta. Seu corpo
balan§ou com o vento do deserto.
O chefe tribal chamou o estrangeiro e lhe deu cinqìenta moedas de ouro.
Depois tornou a recordar a histãria de Jos© no Egito, e pediu para que fosse
o Conselheiro do O¡sis.
Quando o sol se päs por completo, e as primeiras estrelas come§aram a
aparecer (n£o brilhavam muito, porque a lua cheia continuava), o rapaz andou
em dire§£o ao sul. Havia apenas uma tenda, e alguns ¡rabes que passavam
diziam que o lugar era cheio de djins. Mas o rapaz sentou-se e esperou
durante muito tempo.
O Alquimista apareceu quando a lua j¡ estava alto no c©u. Trazia dois
gaviåes mortos no ombro.
Aqui estou disse o rapaz.
N£o devia estar respondeu o Alquimista. Ou sua Lenda Pessoal era
chegar at© aqui?
Existe uma guerra entre os cl£s. N£o © possvel cruzar o deserto.
O Alquimista desceu do seu cavalo, e fez um sinal para que o rapaz
entrasse com ele na tenda. Era uma tenda igual a todas as outras que havia
conhecido no o¡sis exceto a grande tenda central, que tinha o luxo dos
contos de fada. Ele procurou os aparelhos e fornos de alquimia, mas n£o
encontrou nada. Havia apenas uns poucos livros empilhados, um fog£o para
cozinhar, e os tapetes cheios de desenhos misteriosos.
Sente-se, que vou preparar um ch¡ disse o Alquimista. E comeremos
juntos estes gaviåes.
O rapaz suspeitou que eram os mesmos p¡ssaros que havia visto no dia
anterior, mas n£o disse nada. O Alquimista acendeu o fogo, e em pouco tempo
um delicioso cheiro de carne enchia a tenda. Era melhor que o perfume dos
narguil©s.
Por que quis me ver? disse o rapaz.
Por causa dos sinais respondeu o Alquimista O vento me contou que
vocª viria. E que ia precisar de ajuda.
N£o sou eu. ‰ o outro estrangeiro, o Inglªs. Ele © que o estava
buscando.
Ele tem que encontrar outras coisas antes de me encontrar. Mas est¡
no caminho certo. Passou a olhar o deserto.
E eu?
Quando se quer uma coisa, todo o Universo conspira para que a pessoa
consiga realizar seu sonho disse o Alquimista, repetindo as palavras do
velho rei. O rapaz entendeu. Outro homem estava no seu caminho, para
conduzi-lo at© sua Lenda Pessoal.
Ent£o vocª vai me ensinar?
N£o. Vocª j¡ sabe de tudo que precisa. Vou apenas lhe fazer seguir em
dire§£o ao seu tesouro.
Existe uma guerra entre os cl£s. repetiu o rapaz.
Eu conhe§o o deserto.
J¡ encontrei meu tesouro. Tenho um camelo, o dinheiro das lojas de
cristais, e cinqìenta moedas de ouro. Posso ser um homem rico na minha
terra.
Mas nada disto est¡ perto das Pir¢mides disse o Alquimista.
Tenho F¡tima. ‰ um tesouro maior que todo este que consegui juntar.
Tamb©m ela n£o est¡ perto das Pir¢mides.
Comeram os gaviåes em silªncio. O Alquimista abriu uma garrafa e
derramou um lquido vermelho no copo do rapaz. Era vinho, um dos melhores
vinhos que havia tomado em sua vida. Mas o vinho era proibido pela lei.
O mal n£o © o que entra na boca do homem disse o Alquimista. O
mal © o que sai dela.
O rapaz come§ou a sentir-se alegre com o vinho. Mas o Alquimista lhe
inspirava medo. Sentaram-se do lado de fora da tenda, olhando o brilho da
lua, que ofuscava as estrelas.
Beba e se distraia um pouco disse o Alquimista, notando que o rapaz
come§ava a ficar cada vez mais alegre. Repouse como um guerreiro sempre
repousa antes do combate. Mas n£o esque§a que o seu cora§£o est¡ onde est¡ o
seu tesouro. E que seu tesouro precisa ser encontrado, para que tudo isto
que vocª descobriu no caminho possa fazer sentido.
"Amanh£ venda seu camelo e compre um cavalo. Os camelos s£o
trai§oeiros: andam milhares de passos, e n£o d£o qualquer sinal de cansa§o.
De repente, por©m, ajoelham e morrem. Os cavalos v£o se cansando aos poucos.
E vocª poder¡ saber sempre o quanto pode pedir deles, ou a ©poca em que v£o
morrer".
Na noite seguinte o rapaz apareceu com um cavalo na tenda do
Alquimista. Esperou um pouco e ele apareceu, montado em seu animal, e com o
falc£o no ombro esquerdo.
Mostre-me a vida no deserto disse o Alquimista. Sã quem acha
vida, pode encontrar tesouros.
Come§aram a caminhar pelas areias, com a lua ainda brilhando sobre os
dois. "N£o sei se vou conseguir encontrar vida no deserto", pensou o rapaz.
"N£o conhe§o ainda o deserto".
Quis virar-se e dizer isto ao Alquimista, mas tinha medo dele. Chegaram
ao lugar de pedras, onde o rapaz havia visto os gaviåes no c©u; entretanto,
tudo era silªncio e vento.
N£o consigo encontrar vida no deserto disse o rapaz. Sei que ela
existe, mas n£o consigo encontr¡-la.
A vida atrai a vida respondeu o Alquimista.
E o rapaz entendeu. Na mesma hora soltou as r©deas de seu cavalo e ele
saiu livremente pelas pedras e areia. O Alquimista seguia em silªncio, e o
cavalo do rapaz andou por quase meia-hora. J¡ n£o podiam mais ver as
tamareiras do o¡sis, apenas a lua gigantesca no c©u, e as rochas brilhando
com a cor prata. De repente, num lugar onde jamais havia estado antes, o
rapaz notou que seu cavalo parava.
Aqui existe vida respondeu o rapaz ao Alquimista. N£o conhe§o a
linguagem do deserto, mas meu cavalo conhece a linguagem da vida.
Desmontaram. O Alquimista n£o disse nada. Come§ou a olhar as pedras,
caminhando devagar. De repente, ele parou, e abaixou-se com todo cuidado.
Havia um buraco no ch£o, entre as pedras; o Alquimista enfiou a m£o dentro
do buraco, e depois enfiou o bra§o at© o ombro. Alguma coisa se mexeu l¡
dentro, e os olhos do Alquimista ele sã podia ver os olhos se encolherem
de esfor§o e tens£o. O bra§o parecia lutar com o que estava dentro do
buraco. Mas num salto que assustou o rapaz, o Alquimista retirou o bra§o e
ficou imediatamente de p©. Sua m£o trazia unia serpente agarrada pelo rabo.
O rapaz tamb©m deu um salto, sã que para tr¡s. A cobra debatia-se sem
cessar, emitindo rudos e silvos que feriam o silªncio do deserto. Era uma
naja, cujo veneno podia matar um homem em poucos minutos.
"Cuidado com o veneno", chegou a pensar o rapaz. Mas o Alquimista havia
colocado a m£o no buraco, e j¡ devia ter sido mordido. Seu rosto, por©m,
estava tranqìilo. "O Alquimista tem duzentos anos", havia falado o Inglªs.
J¡ devia saber como lidar com cobras no deserto.
O rapaz viu quando seu companheiro foi at© o cavalo e puxou a longa
espada em forma de meia-lua. Com ela, tra§ou um crculo no ch£o e colocou a
cobra no meio. O animal aquietou-se imediatamente
Pode ficar tranqìilo disse o Alquimista. Ela n£o vai sair dali. E
vocª descobriu a vida no deserto, o sinal que eu estava precisando.
Por que isto era t£o importante?
Porque as Pir¢mides est£o cercadas de deserto.
O rapaz n£o queria ouvir falar nas Pir¢mides. Seu cora§£o estava pesado
e triste, desde a noite anterior. Porque seguir em busca do seu tesouro,
significava ter que abandonar F¡tima.
Vou gui¡-lo pelo deserto falou o Alquimista.
Quero ficar no o¡sis respondeu o rapaz. J¡ encontrei F¡tima. E
ela, para mim, vale mais que o tesouro.
F¡tima © uma mulher do deserto disse o Alquimista. Sabe que os
homens devem partir, para poderem voltar. Ela j¡ encontrou seu tesouro:
vocª. Agora espera que vocª encontre o que busca.
E se eu resolver ficar?
Ser¡ o Conselheiro do O¡sis. Tem ouro suficiente para comprar muitas
ovelhas e muitos camelos. Vai casar-se com F¡tima e viver£o felizes o
primeiro ano. Aprender¡ a amar o deserto e vai conhecer cada uma das
cinqìenta mil tamareiras. Perceber¡ como elas crescem, mostrando um mundo
que muda sempre. E ir¡ cada vez entender mais os sinais, porque o deserto ©
um mestre melhor que todos os mestres.
"No segundo ano vocª se lembrar¡ que existe um tesouro. Os sinais
come§ar£o a falar insistentemente sobre isto, e vocª tentar¡ ignor¡-los.
Usar¡ seu conhecimento apenas para o bem-estar do o¡sis e dos seus
habitantes. Os chefes tribais lhe agradecer£o por isto. Os seus camelos lhe
trar£o riqueza e poder.
"No terceiro ano os sinais continuar£o a falar sobre seu tesouro e sua
Lenda Pessoal. Vocª vai ficar noites e noites andando pelo o¡sis, e F¡tima
ser¡ uma mulher triste, porque fez com que seu caminho fosse interrompido.
Mas vocª lhe dar¡ amor, e ser¡ correspondido. Vocª vai se lembrar que ela
jamais pediu que ficasse, porque uma mulher do deserto sabe esperar seu
homem. Por isso n£o vai culp¡-la. Mas vai andar muitas noites pelas areias
do deserto, e por entre as tamareiras, pensando que talvez pudesse ter ido
adiante, ter confiado mais no seu amor por F¡tima. Porque o que o manteve no
o¡sis foi seu prãprio medo de n£o voltar nunca. E a esta altura, os sinais
lhe indicar£o que seu tesouro est¡ enterrado para sempre.
No quarto ano, os sinais o abandonar£o, porque vocª n£o quis ouvi-los.
Os Chefes Tribais ir£o entender isto, e vocª ser¡ destitudo do Conselho. A
esta altura ser¡ um rico comerciante, com muitos camelos e muitas
mercadorias. Mas passar¡ o resto dos seus dias vagando entre as tamareiras e
o deserto, sabendo que n£o cumpriu sua Lenda Pessoal, e que agora © tarde
demais para isto.
"Sem jamais compreender que o Amor nunca impede um homem de seguir sua
Lenda Pessoal. Quando isto acontece, © porque n£o era o verdadeiro Amor,
aquele que fala a Linguagem do Mundo".
O Alquimista desfez o crculo no ch£o, e a cobra correu e desapareceu
entre as pedras. O rapaz lembrava o mercador de cristais que sempre quis ir
Meca, e o Inglªs que buscava um Alquimista. O rapaz lembrava de uma mulher
que confiou no deserto, e o deserto um dia lhe trouxe a pessoa que desejava
amar.
Montaram em seus cavalos, e desta vez foi o rapaz que seguiu o
Alquimista. O vento trazia os rudos do o¡sis, e ele tentava identificar a
voz de F¡tima. Naquele dia n£o tinha ido ao po§o por causa da batalha.
Mas esta noite, enquanto olhavam uma cobra dentro de um crculo, o
estranho cavaleiro com seu falc£o no ombro havia falado de amor e de
tesouros, das mulheres do deserto e da sua Lenda Pessoal.
Vou com vocª disse o rapaz. E imediatamente sentiu paz no seu
cora§£o.
Partimos amanh£ antes que o sol nas§a foi a ênica resposta do
Alquimista.
O rapaz passou a noite inteira em claro. Duas horas antes do amanhecer,
acordou um dos rapazes que dormia na sua tenda, e pediu para lhe mostrar
onde morava F¡tima. Saram juntos, e foram at© l¡. Em troca, o rapaz lhe deu
dinheiro para comprar uma ovelha.
Depois pediu que descobrisse onde F¡tima dormia, e que lhe acordasse e
dissesse que o rapaz a estava esperando. O jovem ¡rabe fez isto, e em troca
ganhou dinheiro para comprar outra ovelha.
Agora deixe-nos a sãs disse o rapaz ao jovem ¡rabe, que voltou
sua tenda para dormir, orgulhoso de haver ajudado o Conselheiro do O¡sis; e
contente por ter dinheiro para comprar ovelhas.
F¡tima apareceu na porta da tenda. Os dois saram para andar entre as
tamareiras. O rapaz sabia que era contra a Tradi§£o, mas isto n£o tinha
nenhuma import¢ncia agora.
Vou partir disse. E quero que saiba que vou voltar. Eu te amo
porque...
N£o diga nada interrompeu F¡tima. Ama-se porque se ama. N£o h¡
qualquer raz£o para amar.
Mas o rapaz continuou:
Eu te amo porque tive um sonho, encontrei um rei, vendi cristais,
cruzei o deserto, os cl£s declararam guerra, e estive num po§o para saber
onde morava um Alquimista. Eu te amo porque todo o Universo conspirou para
que eu chegasse at© vocª.
Os dois se abra§aram. Era a primeira vez que um corpo tocava no
outro.
Voltarei repetiu o rapaz.
Antes eu olhava o deserto com desejo disse F¡tima. Agora ser¡ com
esperan§a. Meu pai um dia partiu, mas voltou para minha m£e, e continua
voltando sempre.
E n£o disseram mais nada. Andaram um pouco entre as tamareiras, e o
rapaz a deixou na porta da tenda.
Voltarei como seu pai voltou para a sua m£e disse.
Reparou que os olhos de F¡tima estavam cheios d'¡gua.
Vocª chora?
Sou uma mulher do deserto disse ela, escondendo o rosto. Mas
acima de tudo, sou uma mulher.
F¡tima entrou na tenda. Daqui a pouco o sol ia aparecer. Quando o dia
chegasse, ela ia sair e fazer aquilo que havia feito durante tantos anos;
mas tudo havia mudado. O rapaz j¡ n£o estava mais no o¡sis, e o o¡sis n£o
teria mais o significado que tinha at© pouco tempo antes. N£o seria mais o
lugar com cinqìenta mil tamareiras e trezentos po§os, onde os peregrinos
chegavam contentes depois de uma longa viagem. O o¡sis, daquele dia em
diante, seria um lugar vazio para ela.
A partir daquele dia, o deserto ia ser mais importante. Iria olhar para
ele sempre, tentando saber qual estrela o rapaz estava seguindo em busca do
tesouro. Haveria de mandar seus beijos pelo vento, na esperan§a de que ele
tocasse o rosto do rapaz, e lhe contasse que estava viva, esperando por ele,
como uma mulher espera um homem de coragem, que segue em busca de sonhos e
tesouros. A partir daquele dia, o deserto ia ser apenas uma coisa: a
esperan§a de sua volta.
N£o pense no que ficou para tr¡s disse o Alquimista, quando
come§aram a cavalgar pelas areias do deserto. Tudo est¡ gravado na Alma do
Mundo, e ali permanecer¡ para sempre.
Os homens sonham mais com a volta do que com a partida disse o
rapaz, que j¡ estava se acostumando de novo com o silªncio do deserto.
Se o que vocª encontrou © feito de mat©ria pura, jamais apodrecer¡. E
vocª poder¡ voltar um dia. Se foi apenas um momento de luz, como a explos£o
de uma estrela, ent£o n£o vai encontrar nada quando voltar. Mas ter¡ visto
uma explos£o de luz. E sã isto j¡ valeu a pena.
O homem falava em linguagem de alquimia. Mas o rapaz sabia que ele
estava se referindo F¡tima.
Era difcil n£o pensar no que havia ficado para tr¡s. O deserto, com
sua paisagem quase sempre igual, costumava encher-se de sonhos. O rapaz
ainda via as tamareiras, os po§os, e o rosto da mulher amada. Via o Inglªs
com seu laboratãrio, e o cameleiro que era um mestre e n£o sabia. "Talvez o
Alquimista jamais tenha amado", pensou o rapaz.
O Alquimista cavalgava na sua frente, com o falc£o nos ombros. O falc£o
conhecia bem a linguagem do deserto, e quando paravam, ele saa do ombro do
Alquimista e voava em busca de alimento. No primeiro dia trouxe uma lebre.
No segundo dia trouxe dois p¡ssaros.
De noite, estendiam seus cobertores e n£o acendiam fogueiras. As noites
do deserto eram frias, e foram ficando escuras medida que a lua come§ou a
diminuir no c©u. Durante uma semana andaram em silªncio, conversando apenas
sobre as precau§åes necess¡rias para evitar os combates entre os cl£s. A
guerra continuava, e o vento s vezes trazia o cheiro adocicado de sangue.
Alguma batalha havia sido travada por perto, e o vento recordava ao rapaz
que havia a Linguagem dos Sinais, sempre pronta para mostrar o que seus
olhos n£o conseguiam ver.
Quando completaram sete dias de viagem, o Alquimista resolveu acampar
mais cedo do que de costume. O falc£o saiu em busca de ca§a, e ele tirou o
cantil de ¡gua e ofereceu ao rapaz.
Vocª agora est¡ quase no final da viagem disse o Alquimista. Meus
parab©ns por haver seguido sua Lenda Pessoal.
E vocª est¡ me guiando em silªncio disse o rapaz. Pensei que ia
me ensinar aquilo que sabe. Faz algum tempo que estive no deserto com um
homem que tinha livros de Alquimia. Mas n£o consegui aprender nada.
Sã existe uma maneira de aprender respondeu o Alquimista ‰
atrav©s da a§£o. Tudo que vocª precisava saber, a viagem lhe ensinou. Falta
apenas uma coisa.
O rapaz quis saber o que era, mas o Alquimista manteve os olhos fixos
no horizonte, esperando pela volta do falc£o.
Por que o chamam de Alquimista?
Porque sou.
E o que havia de errado com os outros alquimistas, que buscaram ouro
e n£o conseguiram?
Buscavam apenas ouro respondeu seu companheiro. Buscavam o
tesouro de sua Lenda Pessoal, sem desejarem viver a prãpria Lenda.
O que me falta saber? insistiu o rapaz.
Mas o Alquimista continuou olhando o horizonte. Depois de algum tempo o
falc£o retornou com a comida. Cavaram um buraco e acenderam a fogueira
dentro dele, para que ningu©m pudesse ver a luz das chamas.
Sou um Alquimista porque sou um Alquimista disse ele, enquanto
preparavam a comida. Aprendi a ciªncia de meus avãs, que aprenderam de
seus avãs, e assim at© a cria§£o do mundo. Naquela ©poca, toda a ciªncia da
Grande Obra podia ser escrita numa simples esmeralda. Mas os homens n£o
deram import¢ncia s coisas simples, e come§aram a escrever tratados,
interpreta§åes, e estudos filosãficos. Come§aram tamb©m a dizer que sabiam
melhor o caminho que os outros.
"Mas a T¡boa da Esmeralda continua viva at© hoje".
O que estava escrito na T¡boa da Esmeralda? quis saber o rapaz.
O Alquimista come§ou a desenhar na areia, e n£o demorou mais do que
cinco minutos. Enquanto ele desenhava, o rapaz lembrou-se do velho rei, e da
pra§a onde haviam se encontrado um dia; parecia que tinham se passado muitos
e muitos anos.
Isto estava escrito na T¡boa da Esmeralda disse o Alquimista,
quando acabou de escrever.
O rapaz aproximou-se e leu as palavras na areia.
‰ um cãdigo disse o rapaz, um pouco decepcionado com a T¡boa da
Esmeralda. Parece com os livros do Inglªs.
N£o respondeu o Alquimista. ‰ como o väo dos gaviåes; n£o deve
ser compreendida simplesmente pela raz£o. A T¡boa da Esmeralda © uma
passagem direta para a Alma do Mundo.
"Os s¡bios entenderam que este mundo natural © apenas uma imagem e uma
cãpia do Paraso. A simples existªncia deste mundo © a garantia de que
existe um mundo mais perfeito que ele. Deus o criou para que, atrav©s das
coisas visveis, os homens pudessem compreender seus ensinamentos
espirituais, e as maravilhas de sua sabedoria. Isto © que eu chamo de A§£o".
Devo entender a T¡boa da Esmeralda? perguntou o rapaz.
"Talvez, se vocª estivesse num laboratãrio de Alquimia, agora seria o
momento certo para estudar a melhor maneira de entender a T¡boa da
Esmeralda. Entretanto, vocª est¡ no Deserto. Ent£o mergulhe no deserto. Ele
serve para compreender o mundo tanto como qualquer outra coisa sobre a face
da terra. Vocª nem precisa de entender o deserto: basta contemplar um
simples gr£o de areia, e ver¡ nele todas as maravilhas da Cria§£o".
Como fa§o para mergulhar no deserto?
Escute seu cora§£o. Ele conhece todas as coisas, porque veio da Alma
do Mundo, e um dia retornar¡ para ela.
Andaram em silªncio mais dois dias. O Alquimista estava muito mais
cauteloso, porque se aproximavam da zona de combates mais violentos. E o
rapaz procurava escutar seu cora§£o.
Era um cora§£o difcil; antes estava acostumado a partir sempre, e
agora queria chegar a todo custo. €s vezes, seu cora§£o ficava muitas horas
contando histãrias de saudades, outras vezes se emocionava com o nascer do
sol no deserto, e fazia o rapaz chorar escondido. O cora§£o batia mais
r¡pido quando falava para o rapaz sobre o tesouro e ficava mais vagaroso
quando os olhos do rapaz se perdiam no horizonte sem fim do deserto. Mas
nunca estava em silªncio, mesmo que o rapaz n£o trocasse uma palavra com o
Alquimista.
Por que temos que escutar o cora§£o? perguntou o rapaz quando
acamparam aquele dia.
Porque, onde ele estiver, © onde estar¡ o seu tesouro.
Meu cora§£o © agitado disse o rapaz. Tem sonhos, se emociona, e
est¡ apaixonado por uma mulher do deserto. Ele me pede coisas e n£o me deixa
dormir muitas noites, quando penso nela.
‰ bom. Seu cora§£o est¡ vivo. Continue a ouvir o que ele tem para
dizer.
Nos trªs dias seguintes os dois passaram por alguns guerreiros, e viram
outros guerreiros no horizonte. O cora§£o do rapaz come§ou a falar sobre o
medo. Contava para o rapaz histãrias que tinha ouvido da Alma do Mundo,
histãrias de homens que foram em busca de seus tesouros e jamais o
encontraram. €s vezes assustava o rapaz com o pensamento de que poderia n£o
conseguir o tesouro, ou poderia morrer no deserto. Outras vezes dizia para o
rapaz que j¡ estava satisfeito, que j¡ havia encontrado um amor e muitas
moedas de ouro.
Meu cora§£o © trai§oeiro disse o rapaz ao Alquimista, quando eles
pararam para descansar um pouco os cavalos. N£o quer que eu continue.
Isto © bom respondeu o Alquimista. Prova que seu cora§£o est¡
vivo. ‰ natural ter medo de trocar por um sonho tudo aquilo que j¡ se
conseguiu.
Ent£o, para que devo escutar meu cora§£o?
Porque vocª n£o vai conseguir jamais mantª-lo calado. E mesmo que
finja n£o escutar o que ele diz, ele estar¡ dentro do seu peito, repetindo
sempre o que pensa sobre a vida e o mundo.
Mesmo que ele seja trai§oeiro?
A trai§£o © o golpe que vocª n£o espera. Se vocª conhecer bem seu
cora§£o, ele jamais conseguir¡ isto. Porque vocª conhecer¡ seus sonhos e
seus desejos, e saber¡ lidar com eles.
"Ningu©m consegue fugir do seu cora§£o. Por isso © melhor escutar o que
ele fala. Para que jamais venha um golpe que vocª n£o espera".
O rapaz continuou a escutar seu cora§£o, enquanto caminhavam pelo
deserto. Passou a conhecer suas artimanhas e seus truques, e passou a
aceit¡-lo como era. Ent£o o rapaz deixou de ter medo, e deixou de ter
vontade de voltar, porque certa tarde o seu cora§£o lhe disse que estava
contente. "Mesmo que eu reclame um pouco", dizia seu cora§£o, "© porque sou
um cora§£o de homem, e os cora§åes de homens s£o assim. Tªm medo de realizar
seus maiores sonhos, porque acham que n£o o merecem, ou n£o v£o
consegui-los. Nãs, os cora§åes, morremos de medo sã de pensar em amores que
partiram para sempre, em momentos que poderiam ter sido bons e que n£o
foram, em tesouros que poderiam ter sido descobertos e ficaram para sempre
escondidos na areia. Porque quando isto acontece, terminamos sofrendo
muito".
Meu cora§£o tem medo de sofrer disse o rapaz para o Alquimista, uma
noite em que olhavam o c©u sem lua.
Diga para ele que o medo de sofrer © pior do que o prãprio
sofrimento. E que nenhum cora§£o jamais sofreu quando foi em busca de seus
sonhos, porque cada momento de busca © um momento de encontro com Deus e com
a Eternidade.
"Cada momento de busca © um momento de encontro", disse o rapaz ao seu
cora§£o. "Enquanto procurei meu tesouro, todos os dias foram dias luminosos,
porque eu sabia que cada hora fazia parte do sonho de encontrar. Enquanto
procurei este meu tesouro, descobri no caminho coisas que jamais teria
sonhado encontrar, se n£o tivesse tido a coragem de tentar coisas
impossveis aos pastores".
Ent£o seu cora§£o ficou quieto por uma tarde inteira. De noite, o rapaz
dormiu tranqìilo, e quando acordou, o seu cora§£o come§ou a lhe contar as
coisas da Alma do Mundo. Disse que todo homem feliz era um homem que trazia
Deus dentro de si. E que a felicidade poderia ser encontrada num simples
gr£o de areia do deserto, como o Alquimista havia falado. Porque um gr£o de
areia © um momento da Cria§£o, e o Universo demorou milhares de milhåes de
anos para cri¡-lo. "Cada homem na face da Terra tem um tesouro que est¡
esperando por ele", disse seu cora§£o. Nãs, os cora§åes, costumamos falar
pouco destes tesouros, porque os homens j¡ n£o querem mais encontr¡-los. Sã
falamos dele para as crian§as. Depois deixamos que a vida encaminhe cada um
em dire§£o ao seu destino. Mas, infelizmente, poucos seguem o caminho que
lhes est¡ tra§ado, e que © o caminho da Lenda Pessoal, e da felicidade.
Acham o mundo uma coisa amea§adora e por causa disto o mundo se torna uma
coisa amea§adora.
"Ent£o nãs, os cora§åes, vamos falando cada vez mais baixo, mas n£o nos
calamos nunca. E torcemos para que nossas palavras n£o sejam ouvidas: n£o
queremos que os homens sofram porque n£o seguiram seus cora§åes".
Por que os cora§åes n£o contam aos homens que devem continuar
seguindo seus sonhos? perguntou o rapaz ao Alquimista.
Porque, neste caso, o cora§£o © o que sofre mais. E os cora§åes n£o
gostam de sofrer.
O rapaz entendeu seu cora§£o a partir daquele dia. Pediu que nunca mais
o deixasse. Pediu que, quando estivesse longe de seus sonhos, o cora§£o
apertasse no peito e desse o sinal de alarme. O rapaz jurou que sempre que
escutasse este sinal, tamb©m o seguiria.
Naquela noite conversou tudo com o Alquimista. E o Alquimista entendeu
que o cora§£o do rapaz havia voltado para a Alma do Mundo .
O que fa§o agora? perguntou o rapaz.
Siga em dire§£o s Pir¢mides disse o Alquimista. E continue
atento aos sinais. Seu cora§£o j¡ © capaz de lhe mostrar o tesouro.
Era isto que estava faltando saber?
N£o. respondeu o Alquimista. O que est¡ faltando saber © o
seguinte:
"Sempre antes de realizar um sonho, a Alma do Mundo resolve testar tudo
aquilo que foi aprendido durante a caminhada. Ela faz isto n£o porque seja
m¡, mas para que possamos, junto com o nosso sonho, conquistar tamb©m as
li§åes que aprendemos seguindo em dire§£o a ele. ‰ o momento em que a maior
parte das pessoas desiste. ‰ o que chamamos, em linguagem do deserto, de
`morrer de sede quando as tamareiras j¡ apareceram no horizonte' ".
"Uma busca come§a sempre com a Sorte de Principiante. E termina sempre
com a Prova do Conquistador".
O rapaz lembrou-se de um velho prov©rbio de sua terra. Dizia que a hora
mais escura era a que vinha antes do sol nascer.
No dia seguinte apareceu o primeiro sinal concreto de perigo. Trªs
guerreiros se aproximaram e perguntaram o que os dois estavam fazendo por
ali.
Vim ca§ar com o meu falc£o respondeu o Alquimista.
Precisamos revist¡-los para ver se n£o levam armas disse um dos
guerreiros.
O Alquimista desceu devagar de seu cavalo. O rapaz fez o mesmo.
Para quª tanto dinheiro? perguntou o guerreiro, quando viu a bolsa
do rapaz.
Para chegar ao Egito disse ele.
O guarda que estava revistando o Alquimista encontrou um pequeno frasco
de cristal cheio de lquido, e um ovo de vidro amarelado, pouco maior que o
ovo de uma galinha.
Que s£o estas coisas? perguntou o guarda.
‰ a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida. ‰ a grande obra dos
Alquimistas. Quem tomar este elixir jamais ficar¡ doente, e uma lasca desta
pedra transforma qualquer metal em ouro.
Os guardas riram pra valer, e o Alquimista riu com eles. Tinham achado
a resposta muito engra§ada, e os deixaram partir sem maiores contratempos,
com todos os seus pertences.
Vocª est¡ louco? perguntou o rapaz ao Alquimista, quando j¡ haviam
se distanciado bastante. Para que vocª fez isto?
Para mostrar a vocª uma simples lei do mundo respondeu o
Alquimista. Quando temos os grandes tesouros diante de nãs, nunca
percebemos. E sabe por quª? Porque os homens n£o acreditam em tesouros.
Continuaram andando pelo deserto. A cada dia que passava, o cora§£o do
rapaz ia ficando mais silencioso. J¡ n£o queria saber das coisas passadas ou
das coisas futuras; contentava-se em contemplar tamb©m o deserto, e beber
junto com o rapaz da Alma do Mundo. Ele e seu cora§£o tornaram-se grandes
amigos um passou a ser incapaz de trair o outro.
Quando o cora§£o falava, era para dar estmulo e for§a ao rapaz, que s
vezes achava terrivelmente ma§ante os dias de silªncio. O cora§£o contou-lhe
pela primeira vez suas grandes qualidades: sua coragem ao abandonar as
ovelhas, ao viver sua Lenda Pessoal, e seu entusiasmo na loja de cristais.
Contou-lhe tamb©m mais uma coisa, que o rapaz nunca havia notado: os
perigos que passaram perto e que ele nunca tinha percebido. Seu cora§£o
disse que certa vez havia escondido a pistola que ele havia roubado do pai,
pois havia uma grande chance de que se ferisse com ela. E lembrou um dia que
o rapaz havia passado mal em pleno campo, vomitado, e depois dormido por
muito tempo: haviam dois assaltantes mais adiante, que estavam planejando
roubar suas ovelhas, e assassin¡-lo. Mas como o rapaz n£o aparecia,
resolveram ir embora, achando que ele tinha mudado de rota.
Os cora§åes sempre ajudam os homens? perguntou o rapaz ao
Alquimista.
Sã os que vivem sua Lenda Pessoal. Mas ajudam muito as crian§as, os
bªbados, e os velhos.
Quer dizer ent£o que n£o h¡ perigo?
Quer dizer apenas que os cora§åes se esfor§am ao m¡ximo respondeu o
Alquimista.
Certa tarde passaram pelo acampamento de um dos cl£s. Haviam ¡rabes em
vistosas roupas brancas, com armas ensilhadas em todos os cantos. Os homens
fumavam narguil© e conversavam sobre os combates. Ningu©m prestou maior
aten§£o aos dois viajantes.
N£o h¡ qualquer perigo disse o rapaz, quando j¡ tinham se afastado
um pouco do acampamento.
O Alquimista ficou furioso.
Confie em seu cora§£o disse, mas n£o se esque§a de que vocª est¡ no
deserto. Quando os homens est£o em guerra, a Alma do Mundo tamb©m sente os
gritos de combate. Ningu©m deixa de sofrer as conseqìªncias de cada coisa
que se passa debaixo do sol.
"Tudo © uma coisa ênica", pensou o rapaz.
E como se o deserto quisesse mostrar que o velho Alquimista estava
certo, dois cavaleiros surgiram por detr¡s dos viajantes.
N£o podem seguir adiante disse um deles. Vocªs est£o nas areias
onde os combates s£o travados.
N£o vou muito longe respondeu o Alquimista, olhando fundo nos olhos
dos guerreiros. Eles ficaram quietos por alguns minutos, e depois
concordaram com a viagem dos dois.
O rapaz assistiu aquilo tudo fascinado.
Vocª dominou os guardas com o olhar comentou ele.
Os olhos mostram a for§a da alma respondeu o Alquimista.
Era verdade, pensou o rapaz. Havia percebido que, no meio da multid£o
de soldados no acampamento, um deles estava olhando fixo para os dois. E
estava t£o distante, que n£o dava sequer para ver direito sua face. Mas o
rapaz tinha certeza de que estava olhando para eles.
Finalmente, quando come§aram a cruzar uma montanha que se estendia por
todo o horizonte, o Alquimista disse que faltavam dois dias para chegarem
at© s Pir¢mides.
Se vamos nos separar logo respondeu o rapaz me ensine Alquimia.
Vocª j¡ sabe. ‰ penetrar na Alma do Mundo, e descobrir o tesouro que
ela reservou para nãs.
N£o © isto que quero saber. Falo de transformar chumbo em ouro.
O Alquimista respeitou o silªncio do deserto, e sã respondeu ao rapaz
quando pararam para comer.
Tudo no Universo evolui disse ele. E para os s¡bios, o ouro © o
metal mais evoludo. N£o pergunte porquª; n£o sei. Sei apenas que a Tradi§£o
est¡ sempre certa.
"Os homens © que n£o interpretaram bem as palavras dos s¡bios. E ao
inv©s de smbolo de evolu§£o, o ouro passou a ser o sinal das guerras.
As coisas falam muitas linguagens disse o rapaz. Vi quando o
relincho de camelo era apenas um relincho, depois passou a ser sinal de
perigo, e finalmente tornou- se de novo um relincho.
Mas calou-se. O Alquimista devia saber tudo aquilo.
Conheci verdadeiros alquimistas continuou. Se trancavam no
laboratãrio e tentavam evoluir como o ouro; descobriam a Pedra Filosofal.
Porque haviam entendido que quando uma coisa evolui, evolui tamb©m tudo que
est¡ a sua volta.
"Outros conseguiram a pedra por acidente. J¡ tinham o dom, suas almas
estavam mais despertas que a das outras pessoas. Mas estes n£o contam,
porque s£o raros.
"Outros, enfim, buscavam apenas o ouro. Estes jamais descobriram o
segredo. Esqueceram-se de que o chumbo, o cobre, o ferro, tamb©m tªm sua
Lenda Pessoal para cumprir. Quem interfere na Lenda Pessoal dos outros,
nunca descobrir¡ a sua".
As palavras do Alquimista soaram como uma maldi§£o. Ele abaixou-se e
pegou uma concha no solo do deserto.
Isto um dia j¡ foi um mar disse.
J¡ tinha reparado respondeu o rapaz. O Alquimista pediu ao rapaz
para colocar a concha no ouvido. Ele tinha feito isto muitas vezes quando
era crian§a, e escutou o barulho do mar.
O mar continua dentro desta concha, porque © sua Lenda Pessoal. E
jamais a abandonar¡, at© que o deserto se cubra novamente de ¡gua.
Depois montaram em seus cavalos, e seguiram em dire§£o s Pir¢mides do
Egito.
O sol tinha come§ado a descer quando o cora§£o do rapaz deu sinal de
perigo. Estavam no meio de gigantescas dunas, e o rapaz olhou o Alquimista,
mas este parecia n£o haver notado nada. Cinco minutos depois o rapaz
percebeu dois cavaleiros a sua frente, as silhuetas cortadas contra o sol.
Antes que pudesse falar com o Alquimista, os dois cavaleiros se
transformaram em dez, depois em cem, at© que as gigantescas dunas ficaram
cobertas deles.
Eram guerreiros vestidos de azul, com uma tiara negra sobre o turbante.
Os rostos estavam cobertos por outro v©u azul, deixando apenas os olhos de
fora.
Mesmo distante, os olhos mostravam a for§a de suas almas. E os olhos
falavam em morte.
Levaram os dois para um acampamento militar nas imedia§åes. Um soldado
empurrou o rapaz e o Alquimista para dentro de uma tenda. Era uma tenda
diferente das que havia conhecido no o¡sis; ali estava um comandante reunido
com seu estado-maior.
S£o os espiåes disse um dos homens.
Somos apenas viajantes respondeu o Alquimista.
Vocªs foram vistos no acampamento inimigo h¡ trªs dias atr¡s. E
conversaram com um dos guerreiros.
Sou um homem que caminha pelo deserto e conhece as estrelas disse o
Alquimista. N£o tenho informa§åes de tropas, ou o movimento dos cl£s. Apenas
guiava meu amigo at© aqui.
Quem © seu amigo? perguntou o comandante.
Um Alquimista disse o Alquimista. Conhece os poderes da natureza.
E deseja mostrar ao comandante sua capacidade extraordin¡ria.
O rapaz ouvia em silªncio. E com medo.
O que faz um estrangeiro numa terra estrangeira? disse outro homem.
Trouxe dinheiro para oferecer a seu cl£ respondeu o Alquimista,
antes que o rapaz dissesse qualquer palavra. E pegando a bolsa do rapaz,
entregou as moedas de ouro ao general.
O ¡rabe aceitou em silªncio. Dava para comprar muitas armas.
O que © um Alquimista? perguntou, finalmente.
Um homem que conhece a natureza e o mundo. Se ele quisesse, destrua
este acampamento apenas com a for§a do vento.
Os homens riram. Estavam acostumados com a for§a da guerra, e o vento
n£o det©m um golpe mortal. Dentro do peito de cada um, por©m, seus cora§åes
apertaram. Eram homens do deserto e tinham medo dos feiticeiros.
Quero ver disse o general.
Precisamos de trªs dias respondeu o Alquimista. E ele vai se
transformar em vento, apenas para mostrar a for§a de seu poder. Se n£o
conseguir, nãs lhe oferecemos humildemente nossas vidas, pela honra de seu
cl£.
N£o pode me oferecer o que j¡ © meu disse, arrogante, o general.
Mas concedeu os trªs dias aos viajantes.
O rapaz estava paralisado de terror. Saiu da tenda porque o Alquimista
lhe segurou os bra§os.
N£o deixe que eles percebam seu medo disse o Alquimista. S£o
homens corajosos, e desprezam os covardes.
O rapaz, por©m, estava sem voz. Sã conseguiu falar depois de algum
tempo, enquanto caminhavam pelo meio do acampamento. N£o havia necessidade
de pris£o: os ¡rabes apenas tiraram seus cavalos. E mais uma vez o mundo
mostrou suas muitas linguagens: o deserto, antes um terreno livre e sem fim,
era agora uma muralha intransponvel.
Vocª deu todo o meu tesouro! disse o rapaz. Tudo que eu ganhei em
toda a minha vida!
E para que lhe adiantaria isto, se tivesse que morrer? respondeu, o
Alquimista. Seu dinheiro o salvou por trªs dias. Poucas vezes o dinheiro
serve para adiar a morte.
Mas o rapaz estava apavorado demais para ouvir palavras s¡bias. N£o
sabia como transformar-se em vento. N£o era um Alquimista.
O Alquimista pediu ch¡ a um guerreiro, e colocou um pouco nos pulsos do
rapaz. Uma onda de tranqìilidade encheu seu corpo, enquanto o Alquimista
dizia algumas palavras que ele n£o conseguia compreender.
N£o se entregue ao desespero disse o Alquimista, com uma voz
estranhamente doce. Isto faz com que vocª n£o consiga conversar com seu
cora§£o.
Mas eu n£o sei transformar-me em vento.
Quem vive sua Lenda Pessoal, sabe tudo que precisa saber. Sã uma
coisa torna um sonho impossvel: o medo de fracassar.
N£o tenho medo de fracassar. Apenas n£o sei transformar-me em vento.
Pois ter¡ que aprender. Sua vida depende disto.
E se eu n£o conseguir?
Vai morrer enquanto vivia sua Lenda Pessoal. ‰ muito melhor do que
morrer como milhåes de pessoas, que jamais souberam que a Lenda Pessoal
existia.
"Entretanto, n£o se preocupe. Geralmente a morte faz com que as pessoas
fiquem mais sensveis vida."
O primeiro dia se passou. Houve uma grande batalha nas imedia§åes, e
v¡rios feridos foram trazidos para o acampamento militar. "Nada muda com a
morte", pensava o rapaz. Os guerreiros que morriam eram substitudos por
outros, e a vida continuava.
Poderias ter morrido mais tarde, meu amigo disse o guarda para o
corpo de um companheiro seu. Poderias ter morrido quando chegasse a paz.
Mas irias terminar morrendo de qualquer jeito.
No final do dia, o rapaz foi procurar o Alquimista. Estava levando o
falc£o para o deserto.
N£o sei transformar-me em vento repetiu o rapaz.
Lembre-se do que eu lhe disse: de que o mundo © apenas a parte
visvel de Deus. De que a Alquimia © trazer para o plano material a
perfei§£o espiritual.
O que vocª faz?
Alimento meu falc£o.
Se eu n£o conseguir transformar-me em vento, nãs vamos morrer disse
o rapaz. Para que alimentar o falc£o?
Quem vai morrer © vocª disse o Alquimista. Eu sei transformar-me
em vento.
No segundo dia o rapaz foi para o alto de uma rocha que ficava perto do
acampamento. As sentinelas o deixaram passar; j¡ ouviram falar do bruxo que
se transformava em vento, e n£o queriam chegar perto dele. Al©m disso, o
deserto era uma grande e intransponvel muralha.
Ficou o resto da tarde do segundo dia olhando o deserto. Escutou seu
cora§£o. E o deserto escutou seu medo.
Ambos falavam a mesma lngua.
No terceiro dia o general reuniu-se com os principais comandantes.
Vamos ver o garoto que se transforma em vento disse o General ao
Alquimista.
Vamos ver respondeu o Alquimista.
O rapaz os conduziu at© o lugar onde havia estado no dia anterior.
Ent£o pediu que todos se sentassem.
Vai demorar um pouco disse o rapaz.
N£o temos pressa respondeu o General. Somos homens do deserto.
O rapaz come§ou a olhar o horizonte a sua frente. Haviam montanhas ao
longe, haviam dunas, rochas e plantas rasteiras que insistiam em viver onde
a sobrevivªncia era impossvel. Ali estava o deserto, que ele havia
percorrido durante tantos meses, e que, mesmo assim, sã conhecia uma parte
muito pequena. Nesta pequena parte ele havia encontrado ingleses, caravanas,
guerras de cl£s, e um o¡sis com cinqìenta mil tamareiras e trezentos po§os.
O que vocª quer aqui hoje? perguntou o deserto. J¡ n£o nos
contemplamos o suficiente ontem?
Em algum ponto vocª guarda a pessoa que eu amo disse o rapaz.
Ent£o, quando olho suas areias contemplo tamb©m a ela. Quero voltar a ela e
preciso de sua ajuda para transformar-me em vento.
O que © o amor? perguntou o deserto.
O amor © quando o falc£o voa sobre suas areias. Porque para ele vocª
© um campo verde, e ele nunca voltou sem ca§a. Ele conhece suas rochas, suas
dunas, e suas montanhas, e vocª © generoso com ele.
O bico do falc£o tira peda§os de mim disse o deserto. Durante
anos eu cultivo sua ca§a, alimento com a pouca ¡gua que tenho, mostro onde
est¡ a comida. E um dia, desce o falc£o do c©u, justamente quando eu ia
sentir o carinho da ca§a sobre minhas areias. Ele carrega aquilo que eu
criei.
Mas foi para isto que vocª criou a ca§a respondeu o rapaz. Para
alimentar o falc£o. E o falc£o alimentar¡ o homem. E o homem ent£o
alimentar¡ um dia tuas areias, de onde a ca§a tornar¡ a surgir. Assim
move-se o mundo.
‰ isto o amor?
‰ isto o amor. ‰ o que faz a ca§a transformar-se em falc£o, o falc£o
em homem, e o homem de novo em deserto. ‰ isto que faz o chumbo
transformar-se em ouro; e o ouro voltar a esconder-se sob a terra.
N£o entendo suas palavras disse o deserto.
Ent£o entenda que em algum lugar de suas areias, uma mulher me
espera. E para isto, tenho que transformar-me em vento.
O deserto ficou em silªncio por alguns instantes.
Eu lhe dou minhas areias para que o vento possa soprar. Mas sozinho,
n£o posso fazer nada. Pe§a ajuda ao vento.
Uma pequena brisa come§ou a soprar. Os comandantes olhavam o rapaz ao
longe, falando uma linguagem que eles n£o conheciam.
O Alquimista sorria.
O vento chegou perto do rapaz e tocou seu rosto. Havia escutado sua
conversa com o deserto, porque os ventos sempre conhecem tudo. Percorriam o
mundo sem um lugar onde nascer e sem um lugar onde morrer.
Me ajude disse o rapaz ao vento. Certo dia escutei em vocª a voz
da minha amada.
Quem lhe ensinou a falar a linguagem do deserto e do vento?
Meu cora§£o respondeu o rapaz.
O vento tinha muitos nomes. Ali ele era chamado de siroco, porque os
¡rabes acreditavam que ele vinha das terras cobertas de ¡gua, onde habitavam
homens negros. Na terra distante de onde vinha o rapaz, eles o chamavam de
Levante, porque acreditavam que trazia as areias do deserto e os gritos de
guerra dos mouros. Talvez num lugar mais distante dos campos de ovelhas, os
homens pensassem que o vento nascia em Andaluzia. Mas o vento n£o vinha de
lugar nenhum, e n£o ia para lugar nenhum, e por isso era mais forte que o
deserto. Um dia eles poderiam plantar ¡rvores no deserto, e at© mesmo criar
ovelhas, mas jamais iriam conseguir dominar o vento.
Vocª n£o pode ser o vento disse o vento. Somos de naturezas
diferentes.
N£o © verdade disse o rapaz. Conheci os segredos da Alquimia,
enquanto vagava o mundo com vocª. Tenho em mim os ventos, os desertos, os
oceanos, as estrelas, e tudo que foi criado no Universo. Fomos feitos pela
mesma M£o, e temos a mesma Alma. Quero ser como vocª, penetrar em todos os
cantos, atravessar os mares, tirar a areia que cobre meu tesouro, trazer
para perto a voz de minha amada.
Ouvi sua conversa com o Alquimista outro dia disse o vento. Ele
falou que cada coisa tem sua Lenda Pessoal. As pessoas n£o podem se
transformar em vento.
Me ensine a ser vento por alguns instantes, disse o rapaz. Para
que possamos conversar sobre as possibilidades ilimitadas dos homens e dos
ventos.
O vento era curioso, e aquilo era uma coisa que ele n£o conhecia.
Gostaria de conversar sobre aquele assunto, mas n£o sabia como transformar
homens em vento. E olha que ele conhecia tanta coisa! Construa desertos,
afundava navios, derrubava florestas inteiras, e passeava por cidades cheias
de mêsica e de rudos estranhos. Achava que era ilimitado, e no entanto ali
estava um rapaz dizendo que ainda havia mais coisas que um vento podia
fazer.
‰ isto que chamam de Amor disse o rapaz, ao ver que o vento estava
quase cedendo ao seu pedido. Quando se ama © que se consegue ser qualquer
coisa da Cria§£o. Quando se ama n£o temos necessidade nenhuma de entender o
que acontece, porque tudo passa a acontecer dentro de nãs, e os homens podem
se transformar em vento. Desde que os ventos ajudem, © claro.
O vento era muito orgulhoso, e ficou irritado com o que o rapaz dizia.
Come§ou a soprar com mais velocidade, levantando as areias do deserto. Mas
finalmente teve que reconhecer que, mesmo havendo percorrido o mundo
inteiro, n£o sabia como transformar homens em ventos. E n£o conhecia o Amor.
Enquanto passeava pelo mundo, notei que muitas pessoas falavam de
amor olhando para o c©u disse o vento, furioso por ter que aceitar suas
limita§åes. Talvez seja melhor perguntar ao c©u.
Ent£o me ajude disse o rapaz. Encha este lugar de poeira, para
que eu possa olhar o sol sem ficar cego.
O vento ent£o soprou com muita for§a, e o c©u ficou cheio de areia,
deixando apenas um disco dourado no lugar do sol.
No acampamento estava ficando difcil de enxergar. Os homens do deserto
j¡ conheciam aquele vento. Chamava-se Simum, e era pior que uma tempestade
no mar porque eles n£o conheciam o mar. Os cavalos relinchavam, e as armas
come§aram a ficar cobertas de areia.
No rochedo, um dos comandantes virou-se para o general, e disse:
Talvez seja melhor pararmos com isto. Eles j¡ quase n£o podiam
enxergar o rapaz. Os rostos estavam cobertos pelos len§os azuis, e os olhos
agora significavam apenas espanto.
Vamos parar com isto insistiu outro comandante.
Quero ver a grandeza de Allah disse com respeito o general. Quero
ver como os homens se transformam em vento.
Mas anotou mentalmente o nome dos dois homens que haviam tido medo.
Assim que o vento parasse, ia destitu-los de seus comandos, porque os
homens do deserto n£o sentem medo.
O vento me disse que vocª conhece o Amor disse o rapaz ao Sol. Se
vocª conhece o Amor, conhece tamb©m a Alma do Mundo, que © feita de Amor.
Daqui de onde estou disse o sol posso ver a Alma do Mundo. Ela se
comunica com minha alma, e nãs, juntos, fazemos as plantas crescerem e as
ovelhas caminharem em busca de sombra. Daqui de onde estou e estou muito
longe do mundo aprendi a amar. Sei que, se eu me aproximar um pouco mais
da Terra, tudo que est¡ nela morrer¡, e a Alma do Mundo deixar¡ de existir.
Ent£o nos contemplamos e nos queremos, e eu lhe dou vida e calor, e ela me
d¡ uma raz£o para viver.
Vocª conhece o Amor disse o rapaz.
E conhe§o a Alma do Mundo, porque conversamos muito nesta viagem sem
fim pelo Universo. Ela me fala que seu maior problema © que at© hoje, sã os
minerais e os vegetais entenderam que tudo © uma coisa sã. E para isto, n£o
precisa que o ferro seja igual ao cobre, e que o cobre seja igual ao ouro.
Cada um cumpre sua fun§£o exata nesta coisa ênica, e tudo seria uma Sinfonia
de Paz se a M£o que escreveu tudo isto tivesse parado no quinto dia da
cria§£o.
"Mas houve um sexto dia", disse o Sol.
Vocª © s¡bio porque vª tudo dist¢ncia respondeu o rapaz. Mas
n£o conhece o Amor. Se n£o houvesse um sexto dia da cria§£o, n£o haveria o
homem, e o cobre seria sempre cobre, e o chumbo seria sempre chumbo. Cada um
tem sua Lenda Pessoal, © verdade, mas um dia esta Lenda Pessoal ser¡
cumprida. Ent£o © preciso transformar-se em algo melhor, e ter uma nova
Lenda Pessoal, at© que a Alma do Mundo seja realmente uma coisa sã.
O sol ficou pensativo e resolveu brilhar mais forte. O vento, que
estava gostando da conversa, soprou tamb©m mais forte, para que o sol n£o
cegasse o rapaz.
Para isto existe a Alquimia disse o rapaz. Para que cada homem
busque seu tesouro, e o encontre, e depois queira ser melhor do que foi na
sua vida anterior. O chumbo cumprir¡ seu papel at© que o mundo n£o precise
mais de chumbo; ent£o ele ter¡ que transformar-se em ouro.
"Os Alquimistas fazem isto. Mostram que, quando buscamos ser melhores
do que somos, tudo em volta se torna melhor tamb©m".
E por que vocª diz que eu n£o conhe§o o Amor? perguntou o Sol.
Porque o amor n£o © estar parado como o deserto, nem correr o mundo
como o vento, nem ver tudo de longe, como vocª. O Amor © a for§a que
transforma e melhora a Alma do Mundo. Quando penetrei nela pela primeira
vez, achei que fosse perfeita. Mas depois vi que ela era um reflexo de todas
as criaturas, e tinha suas guerras e suas paixåes. Somos nãs que alimentamos
a Alma do Mundo, e a terra onde vivemos ser¡ melhor ou pior, se formos
melhores ou piores. A © que entra a for§a do Amor, porque quando amamos,
sempre desejamos ser melhores do que somos.
O que vocª quer de mim? perguntou o Sol.
Que me ajude a transformar-me em vento respondeu o rapaz.
A Natureza me conhece como a mais s¡bia de todas as criaturas disse
o Sol. Mas n£o sei como transform¡-lo em vento.
Com quem devo falar, ent£o?
Por um momento o sol ficou quieto. O vento estava ouvindo, e ia
espalhar por todo o mundo que sua sabedoria era limitada. Entretanto, n£o
tinha jeito de fugir daquele rapaz, que falava a Linguagem do Mundo.
Converse com a M£o que escreveu tudo disse o Sol.
O vento gritou de contentamento, e soprou com mais for§a do que nunca.
As tendas come§aram a ser arrancadas da areia, e os animais soltaram-se de
suas r©deas. No rochedo, os homens se agarravam uns aos outros para n£o
serem atirados longe.
O rapaz se virou ent£o para a M£o que Tudo Havia Escrito. E ao inv©s de
falar qualquer coisa, sentiu que o Universo ficava em silªncio, e ficou em
silªncio tamb©m.
Uma for§a de Amor jorrou de seu cora§£o, e o rapaz come§ou a rezar. Era
uma ora§£o que nunca tinha feito antes, porque era uma ora§£o sem palavras
ou sem pedidos. N£o estava agradecendo pelas ovelhas haverem encontrado um
pasto, nem implorando para vender mais cristais, nem pedindo para que a
mulher que havia encontrado estivesse esperando sua volta. No silªncio que
se seguiu, o rapaz entendeu que o deserto, o vento, e o sol tamb©m buscavam
os sinais que aquela M£o havia escrito, e procuravam cumprir seus caminhos e
entender o que estava escrito numa simples esmeralda. Sabia que aqueles
sinais estavam espalhados na Terra e no Espa§o, e que em sua aparªncia n£o
tinham qualquer motivo ou significado, e que nem os desertos, nem os ventos,
nem os sãis, e nem os homens sabiam porque tinham sido criados. Mas aquela
M£o tinha um motivo para tudo isto, e sã ela era capaz de operar milagres,
de transformar oceanos em desertos, e homens em vento. Porque sã ela
entendia que um desgnio maior empurrava o Universo a um ponto onde os seis
dias da cria§£o se transformariam na Grande Obra.
E o rapaz mergulhou na Alma do Mundo, e viu que a Alma do Mundo era a
parte da Alma de Deus, e viu que a Alma de Deus era a sua prãpria alma. E
que podia, ent£o, realizar milagres.
O simum soprou naquele dia como jamais havia soprado. Durante muitas
gera§åes os ¡rabes contaram entre si a lenda de um rapaz que havia se
transformado em vento, quase destrudo um acampamento militar, e desafiado o
poder do mais importante general do deserto.
Quando o simum parou de soprar, todos olharam para o lugar onde o rapaz
estava. Ele n£o estava mais l¡; estava junto a um sentinela quase coberto de
areia, e que vigiava o outro lado do acampamento.
Os homens estavam apavorados com a bruxaria. Sã duas pessoas sorriam: o
Alquimista, porque tinha encontrado seu discpulo certo, e o General, porque
o discpulo tinha entendido a glãria de Deus.
No dia seguinte, o general despediu-se do rapaz e do Alquimista, e
pediu que uma escolta os acompanhasse at© onde os dois quisessem.
Caminharam o dia inteiro. Quando estava entardecendo, chegaram em
frente a um mosteiro copta. O Alquimista dispensou a escolta, e desceu de
seu cavalo.
Daqui para frente vocª vai sozinho disse o Alquimista. S£o apenas
trªs horas at© as Pir¢mides.
Obrigado disse o rapaz. Vocª me ensinou a Linguagem do Mundo.
Eu apenas recordei o que vocª j¡ sabia.
O Alquimista bateu na porta do mosteiro. Um monge todo vestido de preto
veio atender. Conversaram alguma coisa em copta, e o alquimista convidou o
rapaz para entrar.
Pedi que me emprestasse um pouco a cozinha disse ele.
Foram at© a cozinha do mosteiro. O Alquimista acendeu o fogo, e o monge
trouxe um pouco de chumbo, que o Alquimista derreteu dentro de um vaso de
ferro. Quando o chumbo tinha virado lquido, o Alquimista tirou do seu saco
aquele estranho ovo de vidro amarelado. Raspou uma camada do tamanho de um
fio de cabelo, envolveu-o em cera, e atirou na panela com o chumbo.
A mistura ganhou uma cor vermelha, como o sangue. O Alquimista ent£o
tirou a panela do fogo e a deixou esfriar. Enquanto isto, conversava com o
monge a respeito da guerra dos cl£s.
Deve durar muito disse ele para o monge.
O monge estava aborrecido. Fazia tempo que as caravanas estavam paradas
em Gizeh, esperando que a guerra acabasse. "Mas seja feita a vontade de
Deus", disse o monge.
Exatamente respondeu o Alquimista.
Quando a panela acabou de esfriar, o monge e o rapaz olharam
deslumbrados. O chumbo tinha secado na forma circular da panela, mas j¡ n£o
era mais chumbo. Era ouro.
Aprenderei a fazer isto um dia? perguntou o rapaz.
Esta foi minha Lenda Pessoal, e n£o a sua respondeu o Alquimista.
Mas queria lhe mostrar que © possvel.
Caminharam de novo at© a porta do convento. Ali, o Alquimista dividiu o
disco em quatro partes.
Esta © para vocª disse ele, estendendo uma parte para o monge.
Por sua generosidade com os peregrinos.
Estou recebendo um pagamento al©m da minha generosidade respondeu o
monge.
Jamais repita isto. A vida pode escutar, e lhe dar menos da prãxima
vez.
Depois aproximou-se do rapaz.
Esta © para vocª. Para pagar o que deixou com o general.
O rapaz ia dizer que era muito mais do que havia deixado com o general.
Mas ficou quieto, porque tinha ouvido o coment¡rio do Alquimista com o monge
...
Esta © para mim disse o Alquimista, guardando uma parte. Porque
tenho que voltar pelo deserto, e existe uma guerra entre os cl£s.
Ent£o pegou o quarto peda§o e deu de novo para o monge.
Esta © para o rapaz. Caso ele necessite.
Mas estou indo em busca do meu tesouro disse o rapaz. Estou perto
dele agora!
E tenho certeza que ir¡ encontr¡-lo falou o Alquimista.
Ent£o por que isto?
Porque vocª j¡ perdeu duas vezes, com o ladr£o e com o general, o
dinheiro que ganhou em sua viagem. Eu sou um velho ¡rabe supersticioso, que
acredito nos prov©rbios de minha terra. E existe um prov©rbio que diz:
"Tudo que acontece uma vez, pode nunca mais acontecer. Mas tudo que
acontece duas vezes, acontecer¡ certamente uma terceira".
Montaram em seus cavalos.
Quero lhe contar uma histãria sobre sonhos disse o Alquimista.
O rapaz aproximou seu cavalo.
Na antiga Roma, na ©poca do imperador Tib©rio, vivia um homem muito
bom, que tinha dois filhos: um era militar, e quando entrou para o ex©rcito,
foi enviado para as mais distantes regiåes do Imp©rio. O outro filho era
poeta, e encantava toda Roma com seus belos versos.
"Certa noite, o velho teve um sonho. Um anjo lhe aparecia para dizer
que as palavras de um de seus filhos seriam conhecidas e repetidas no mundo
inteiro, por todas as gera§åes vindouras. O velho homem acordou agradecido e
chorando naquela noite, porque a vida era generosa, e havia lhe revelado uma
coisa que qualquer pai teria orgulho de saber.
"Pouco tempo depois, o velho morreu ao tentar salvar uma crian§a que ia
ser esmagada pelas rodas de uma carruagem. Como tinha se comportado de
maneira correta e justa por toda a sua vida, foi direto para o c©u, e
encontrou-se com o anjo que havia aparecido em seu sonho.
" Vocª foi um homem bom disse-lhe o anjo. Viveu sua existªncia com
amor, e morreu com dignidade. Posso realizar agora qualquer desejo que
tenha.
" A vida tamb©m foi boa para mim respondeu o velho. Quando vocª
apareceu em um sonho, senti que todos os meus esfor§os estavam justificados.
Porque os versos de meu filho ficar£o entre os homens pelos s©culos
vindouros. Nada tenho a pedir para mim; entretanto, todo pai se orgulharia
de ver a fama de algu©m que ele cuidou quando crian§a e educou quando jovem.
Gostaria de ver, no futuro distante, as palavras do meu filho.
"O anjo tocou no ombro do velho, e os dois foram projetados para um
futuro distante. Em volta deles apareceu um lugar imenso, com milhares de
pessoas, que falavam numa lngua estranha.
"O velho chorou de alegria.
" Eu sabia que os versos do meu filho poeta eram bons e imortais
disse para o anjo, entre l¡grimas. Gostaria que vocª me dissesse qual de
suas poesias estas pessoas est£o repetindo.
"O anjo ent£o se aproximou do velho com carinho, e sentaram-se num dos
bancos que havia naquele imenso lugar.
" Os versos de seu filho poeta foram muito populares em Roma disse o
anjo. Todos gostavam, e se divertiam com eles. Mas quando o reinado de
Tib©rio acabou, seus versos tamb©m foram esquecidos. Estas palavras s£o de
seu filho que entrou para o ex©rcito.
"O velho olhou surpreso para o anjo.
" Seu filho foi servir num lugar distante, e tornou-se centuri£o. Era
tamb©m um homem justo e bom. Certa tarde, um dos seus servos ficou doente, e
estava para morrer. Seu filho, ent£o, ouviu falar de um rabi que curava os
doentes, e andou dias e dias em busca deste homem. Enquanto caminhava,
descobriu que o homem que estava procurando era o Filho de Deus. Encontrou
outras pessoas que haviam sido curadas por ele, aprendeu seus ensinamentos,
e mesmo sendo um centuri£o romano converteu-se sua f©. At© que certa manh£
chegou perto do Rabi.
" Contou-lhe que tinha um servo doente. E o Rabi se prontificou a ir
at© sua casa. Mas o centuri£o era um homem de f©, e olhando no fundo dos
olhos do Rabi, compreendeu que estava mesmo diante do Filho de Deus, quando
as pessoas em volta deles se levantaram.
" Estas s£o as palavras de seu filho disse o anjo ao velho . S£o
as palavras que ele disse ao Rabi naquele momento, e que nunca mais foram
esquecidas". Dizem: "Senhor eu n£o sou digno que entreis em minha casa, mas
dizei uma sã palavra e meu servo ser¡ salvo".
O Alquimista moveu seu cavalo.
N£o importa o que fa§a, cada pessoa na Terra est¡ sempre
representando o papel principal da Histãria do mundo disse ele.
E normalmente n£o sabe disto.
O rapaz sorriu. Nunca havia pensado que a vida pudesse ser t£o
importante para um pastor.
Adeus disse o Alquimista.
Adeus respondeu o rapaz.
O rapaz caminhou duas horas e meia pelo deserto, procurando escutar
atentamente o que seu cora§£o dizia. Era ele que iria revelar o local exato
onde o tesouro estava escondido.
"Onde estiver seu tesouro, ali estar¡ tamb©m o seu cora§£o", dissera o
Alquimista.
Mas seu cora§£o falava em outras coisas.
Contava com orgulho a histãria de um pastor que havia deixado suas
ovelhas para seguir um sono que se repetiu duas noites. Contava da Lenda
Pessoal, e de muitos homens que fizeram isto, que foram em busca de terras
distantes ou de mulheres bonitas, enfrentando os homens de sua ©poca com
seus preconceitos e conceitos. Falou durante todo aquele tempo de viagens,
de descobertas, de livros e de grandes mudan§as.
Quando ia come§ar a subir uma duna e sã naquele momento foi que seu
cora§£o sussurrou ao seu ouvido "esteja atento para o lugar onde vocª
chorar. Porque neste lugar estou eu, e neste lugar est¡ seu tesouro".
O rapaz come§ou a subir a duna lentamente. O c©u, coberto de estrelas,
mostrava de novo uma lua cheia; haviam caminhado um mªs pelo deserto. A lua
iluminava tamb©m a duna, num jogo de sombras, que fazia com que o deserto
parecesse um mar cheio de ondas, e fazia com que o rapaz se lembrasse do dia
em que soltara livremente um cavalo pelo deserto, dando um bom sinal ao
Alquimista. Finalmente a lua iluminava o silªncio do deserto, e a jornada
que fazem os homens que buscam tesouros.
Quando, depois de alguns minutos, chegou ao topo da duna, seu cora§£o
deu um salto. Iluminadas pela luz da lua cheia e pelo branco do deserto,
erguiam-se majestosas e solenes as Pir¢mides do Egito.
O rapaz caiu de joelhos e chorou. Agradecia a Deus por haver acreditado
em sua Lenda Pessoal, e por haver encontrado certo dia um rei, um mercador,
um inglªs, e um alquimista. Sobretudo, por haver encontrado uma mulher do
deserto, que lhe tinha feito entender que o Amor jamais vai separar o homem
de sua Lenda Pessoal.
Os muitos s©culos das Pir¢mides do Egito contemplavam, do alto, o
rapaz. Se ele quisesse, podia agora voltar ao o¡sis, pegar F¡tima, e viver
como simples pastor de ovelhas. Porque o Alquimista vivia no deserto, mesmo
compreendendo a Linguagem do Mundo, mesmo sabendo transformar chumbo em
ouro. N£o tinha que mostrar a ningu©m sua ciªncia e sua arte. Enquanto
caminhava em dire§£o sua Lenda Pessoal, havia aprendido tudo que
precisava, e havia vivido tudo que tinha sonhado viver.
Mas havia chegado ao seu tesouro, e uma obra sã est¡ completa quando o
objetivo © atingido. Ali, naquela duna, o rapaz havia chorado. Olhou para o
ch£o e viu que, no local onde haviam cado suas l¡grimas, um escaravelho
passeava. Durante o tempo que havia passado no deserto, tinha aprendido que,
no Egito, os escaravelhos eram o smbolo de Deus.
Ali estava mais um sinal. E o rapaz come§ou a cavar, depois de
lembrar-se do mercador de cristais; ningu©m conseguiria ter uma Pir¢mide no
seu quintal, mesmo que amontoasse pedras por toda a sua vida.
Durante a noite inteira o rapaz cavou no lugar marcado, sem encontrar
nada. Do alto das Pir¢mides, os s©culos o contemplavam, em silªncio . Mas o
rapaz n£o desistia:
cavava e cavava, lutando com o vento, que muitas vezes tornava a trazer
a areia de volta para o buraco. Suas m£os ficaram cansadas depois feridas,
mas o rapaz acreditava em seu cora§£o. E seu cora§£o dissera para cavar onde
suas l¡grimas cassem.
De repente, quando estava tentando tirar algumas pedras que haviam
aparecido, o rapaz ouviu passos. Algumas pessoas se aproximaram dele.
Estavam contra a lua, e o rapaz n£o podia ver seus olhos, nem seus rostos.
O que vocª est¡ fazendo a? perguntou um dos vultos.
O rapaz n£o respondeu. Mas sentiu medo. Tinha agora um tesouro para
desenterrar, e por isso tinha medo.
Somos refugiados da guerra dos cl£s disse outro vulto. Precisamos
saber o que vocª esconde a. Precisamos de dinheiro.
N£o escondo nada respondeu o rapaz.
Mas um dos rec©m-chegados agarrou-o e o puxou para fora do buraco.
Outro come§ou a revistar seus bolsos. E encontraram o peda§o de ouro.
Ele tem ouro disse um dos salteadores.
A lua iluminou a face de quem o estava revistando, e ele viu, em seus
olhos, a morte.
Deve haver mais ouro escondido no ch£o disse outro.
E obrigaram o rapaz a cavar. O rapaz continuou cavando, e n£o havia
nada. Ent£o come§aram a bater no rapaz. Espancaram o rapaz at© que
aparecessem no c©u os primeiros raios de sol. Sua roupa ficou em frangalhos,
e ele sentiu que a morte estava prãxima.
"De que adianta o dinheiro, se tiver que morrer? Poucas vezes o
dinheiro © capaz de livrar algu©m da morte", dissera o Alquimista.
Estou procurando um tesouro! gritou finalmente o rapaz. E mesmo com
a boca ferida e inchada de pancadas, contou aos salteadores que havia
sonhado duas vezes com um tesouro escondido junto das Pir¢mides do Egito.
O que parecia o chefe ficou um longo tempo em silªncio. Depois falou
com um deles:
Pode deix¡-lo. Ele n£o tem mais nada. Deve ter roubado este ouro.
O rapaz caiu com o rosto na areia. Dois olhos procuraram os seus; era o
chefe dos salteadores. Mas o rapaz estava olhando as Pir¢mides.
Vamos embora disse o chefe para os outros.
Depois, virou-se para o rapaz:
Vocª n£o vai morrer disse. Vai viver e aprender que o homem n£o
pode ser t£o estêpido. A, neste lugar onde vocª est¡, eu tamb©m tive um
sonho repetido h¡ quase dois anos atr¡s. Sonhei que devia ir at© os campos
da Espanha, buscar uma igreja em runas onde os pastores costumavam dormir
com suas ovelhas, e que tinha um sicämoro crescendo dentro da sacristia, se
eu cavasse na raiz deste sicämoro, haveria de encontrar um tesouro
escondido. Mas n£o sou estêpido de cruzar um deserto sã porque tive um sonho
repetido.
Depois foi embora.
O rapaz levantou-se com dificuldade, e olhou mais uma vez para as
Pir¢mides. As Pir¢mides sorriram para ele, e ele sorriu de volta, com o
cora§£o repleto de felicidade.
Havia encontrado o tesouro.
O rapaz chamava-se Santiago. Chegou na pequena igreja abandonada quando
j¡ estava quase anoitecendo. O sicämoro ainda continuava na sacristia, e
ainda se podiam ver as estrelas atrav©s do teto semidestrudo. Lembrou-se
que certa vez havia estado ali com suas ovelhas, e que tinha sido uma noite
tranqìila, exceto pelo sonho.
Agora ele estava sem o seu rebanho. Ao inv©s disto, trazia uma p¡.
Ficou muito tempo olhando o c©u. Depois tirou do alforje uma garrafa de
vinho, e bebeu. Lembrou-se da noite no deserto, quando tinha tamb©m olhado
as estrelas e bebido vinho com o Alquimista. Pensou nos muitos caminhos que
tinha andado, e a maneira estranha de Deus lhe mostrar o tesouro. Se n£o
tivesse acreditado em sonhos repetidos, n£o tinha encontrado a cigana, nem o
rei, nem o salteador, nem... "bom, a lista © muito grande. Mas o caminho
estava escrito pelos sinais, e eu n£o tinha como errar", disse para si
mesmo.
Dormiu sem perceber, e quando acordou, o sol j¡ ia alto. Ent£o come§ou
a escavar a raiz do sicämoro.
"Velho bruxo", pensava o rapaz. "Vocª sabia de tudo. Deixou at© mesmo
um pouco de ouro para que eu pudesse voltar at© esta Igreja. O monge riu
quando me viu voltar em frangalhos. N£o podia me poupar isto?"
"N£o", ele escutou o vento dizer: "Se eu tivesse lhe contado, vocª n£o
teria visto as Pir¢mides. S£o muito bonitas, n£o acha?"
Era a voz do Alquimista. O rapaz sorriu e continuou a cavar. Meia hora
depois, a p¡ bateu em algo sãlido. Uma hora depois ele tinha diante de si um
baê cheio de velhas moedas de ouro espanholas. Havia tamb©m pedrarias,
m¡scaras de ouro com penas brancas e vermelhas, dolos de pedra cravejados
de brilhantes. Pe§as de uma conquista que o pas j¡ havia esquecido h¡ muito
tempo, e que o conquistador se esquecera de contar para seus filhos.
O rapaz tirou o Urim e o Tumim do alforje. Tinha utilizado as duas
pedras apenas uma vez, quando estava certa manh£, num mercado. A vida e o
seu caminho estiveram sempre cheios de sinais.
Guardou o Urim e o Tumim no baê de ouro. Eram tamb©m parte de seu
tesouro, porque lembravam um velho rei que jamais tornaria a encontrar.
"Realmente a vida © generosa com quem vive sua Lenda Pessoal", pensou o
rapaz. Ent£o lembrou-se de que tinha que ir at© Tarifa, e dar um d©cimo
daquilo tudo para a cigana. "Como s£o espertos os ciganos", pensou. Talvez
fosse porque viajavam tanto.
Mas o vento voltou a soprar. Era o Levante, o vento que vinha da
frica. N£o trazia o cheiro do deserto, nem a amea§a de invas£o dos mouros.
Ao inv©s disto, trazia um perfume que ele conhecia bem, e o som de um beijo
que veio vindo devagar, devagar, at© parar em seus l¡bios.
O rapaz sorriu. Era a primeira vez que ela fazia isto.
Estou indo, F¡tima disse ele.
Last-modified: Thu, 21 Aug 2003 17:26:13 GMT