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Paulo Coelho. O Alquimista
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Date: 14 Aug 2003
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Edi×Óo especial da pÑgina www.paulocoelho.com.br , venda proibida
¹ importante dizer alguma coisa sobre o fato de O Alquimista ser um
livro simbãlico, diferente de O DiÑrio de um Mago, que foi um trabalho de
nÓo-fic×Óo.
Durante onze anos de minha vida estudei Alquimia. A simples idÙia de
transformar metais em ouro, ou de descobrir o Elixir da Longa Vida, jÑ era
fascinante demais para passar despercebida a qualquer iniciante em Magia.
Confesso que o Elixir da Longa Vida me seduzia mais: antes de entender e
sentir a presen×a de Deus, a idÙia de que tudo ia acabar um dia era
desesperadora. De maneira que, ao saber da possibilidade de conseguir um
lÝquido capaz de prolongar por muitos anos minha existÚncia, resolvi
dedicar- me de corpo e alma Ð sua fabrica×Óo.
Era uma Ùpoca de grandes transforma×åes sociais o come×o dos anos
setenta e nÓo havia ainda publica×åes sÙrias a respeito de Alquimia.
Comecei, como um dos personagens do livro, a gastar o pouco dinheiro que
tinha na compra de livros importados, e dedicava muitas horas do meu dia ao
estudo da sua simbologia complicada. Procurei duas ou trÚs pessoas no Rio de
Janeiro que se dedicavam seriamente Ð Grande Obra, e elas se recusaram a me
receber. Conheci tambÙm muitas outras pessoas que se diziam alquimistas,
possuÝam seus laboratãrios, e prometiam me ensinar os segredos da Arte em
troca de verdadeiras fortunas; hoje entendo que elas nada sabiam daquilo que
pretendiam ensinar.
Mesmo com toda a minha dedica×Óo, os resultados eram absolutamente
nulos. NÓo acontecia nada do que os manuais de Alquimia afirmavam em sua
complicada linguagem. Era um sem-fim de sÝmbolos, de dragåes, leåes, sãis,
luas e mercêrios, e eu sempre tinha a impressÓo de estar no caminho errado,
porque a linguagem simbãlica permite uma gigantesca margem de equÝvocos. Em
1973, jÑ desesperado com a ausÚncia de progresso, cometi uma suprema
irresponsabilidade. Nesta Ùpoca eu era contratado pela Secretaria de
Educa×Óo de Mato Grosso para dar aulas de teatro naquele estado, e resolvi
utilizar meus alunos em laboratãrios teatrais que tinham como tema a TÑboa
da Esmeralda. Esta atitude, aliada a algumas incursåes minhas nas Ñreas
pantanosas da Magia, fizeram com que no ano seguinte eu pudesse experimentar
na prãpria carne a verdade do provÙrbio: "Aqui se faz, aqui se paga". Tudo a
minha volta ruiu por completo.
Passei os prãximos seis anos de minha vida numa atitude bastante cÙtica
com rela×Óo a tudo que dissesse respeito Ð Ñrea mÝstica. Neste exÝlio
espiritual, aprendi muitas coisas importantes: que sã aceitamos uma verdade
quando primeira a negamos do fundo da alma, que nÓo devemos fugir de nosso
prãprio destino, e que a mÓo de Deus Ù infinitamente generosa, apesar de Seu
rigor.
Em 1981, conheci RAM e o meu Mestre, que iria conduzir-me de volta ao
caminho que estÑ tra×ado para mim. E enquanto ele me treinava em seus
ensinamentos, voltei a estudar Alquimia por minha prãpria conta. Certa
noite, enquanto conversÑvamos depois de uma exaustiva sessÓo de telepatia,
perguntei porque a linguagem dos alquimistas era tÓo vaga e tÓo complicada.
Existem trÚs tipos de alquimistas disse meu Mestre. Aqueles que
sÓo vagos porque nÓo sabem o que estÓo falando; aqueles que sÓo vagos porque
sabem o que estÓo falando, mas sabem tambÙm que a linguagem da Alquimia Ù
uma linguagem dirigida ao cora×Óo, e nÓo Ð razÓo.
E qual o terceiro tipo? perguntei.
Aqueles que jamais ouviram falar em Alquimia, mas que conseguiram,
atravÙs de suas vidas, descobrir a Pedra Filosofal.
E com isto, meu Mestre que pertencia ao segundo tipo resolveu me
dar aulas de Alquimia. Descobri que a linguagem simbãlica, que tanto me
irritava e me desnorteava, era a ênica maneira de se atingir a Alma do
Mundo, ou o que Jung chamou de "inconsciente coletivo". Descobri a Lenda
Pessoal, e os Sinais de Deus, verdades que meu raciocÝnio intelectual se
recusava a aceitar por causa de sua simplicidade. Descobri que atingir a
Grande Obra nÓo Ù tarefa de poucos, mas de todos os seres humanos sobre a
face da Terra. ¹ claro que nem sempre a Grande Obra vem sob a forma de um
ovo e de um frasco com lÝquido, mas todos nãs podemos sem qualquer sombra
de dêvida mergulhar na Alma do Mundo.
Por isso, "O Alquimista" Ù tambÙm um texto simbãlico. No decorrer de
suas pÑginas, alÙm de transmitir tudo o que aprendi a respeito, procuro
homenagear grandes escritores que conseguiram atingir a Linguagem Universal:
Hemingway, Blake, Borges (que tambÙm utilizou a histãria persa para um de
seus contos), Malba Tahan, entre outros.
Para completar este extenso prefÑcio, e ilustrar o que meu Mestre
queria dizer com o terceiro tipo de alquimistas, vale a pena recordar uma
histãria que ele mesmo me contou no seu laboratãrio.
Nossa Senhora, com o Menino Jesus em seus bra×os, resolveu descer Ð
Terra e visitar um mosteiro. Orgulhosos, todos os padres fizeram uma grande
fila, e cada um chegava diante da Virgem para prestar sua homenagem. Um
declamou belos poemas, outro mostrou suas iluminuras para a BÝblia, um
terceiro disse o nome de todos os santos. E assim por diante, monge apãs
monge, homenageou Nossa Senhora e o Menino Jesus.
No êltimo lugar da fila, havia um padre, o mais humilde do convento,
que nunca havia aprendido os sÑbios textos da Ùpoca. Seus pais eram pessoas
simples, que trabalhavam num velho circo das redondezas, e tudo que lhe
haviam ensinado era atirar bolas para cima e fazer alguns malabarismos.
Quando chegou sua vez, os outros padres quiseram encerrar as
homenagens, porque o antigo malabarista nÓo tinha nada de importante para
dizer, e podia desmoralizar a imagem do convento. Entretanto, no fundo do
seu cora×Óo, tambÙm ele sentia uma imensa necessidade de dar alguma coisa de
si para Jesus e a Virgem.
Envergonhado, sentindo o olhar reprovador de seus irmÓos, ele tirou
algumas laranjas do bolso e come×ou a jogÑ-las para cima, fazendo
malabarismos, que era a ênica coisa que sabia fazer.
Foi sã neste instante que o Menino Jesus sorriu, e come×ou a bater
palmas no colo de Nossa Senhora. E foi para ele que a Virgem estendeu os
bra×os, deixando que segurasse um pouco o menino.
Para J.
Alquimista que conhece e utiliza os segredos da Grande Obra.
Indo eles pelo caminho, entraram em um certo povoado. E certa mulher,
chamada Marta, hospedou-o na sua casa.
Tinha ela uma irmÓ, chamada Maria, que sentou-se aos pÙs do Senhor, e
ficou ouvindo seus ensinamentos.
Marta agitava-se de um lado para o outro, ocupada em muitos servi×os.
EntÓo aproximou-se de Jesus e disse: Senhor! NÓo te importas de que
eu fique a servir sozinha? Ordena a minha
irmÓ que venha ajudar-me!
Respondeu-lhe o Senhor:
Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas.
"Maria, entretanto, escolheu a melhor parte, e esta nÓo lhe serÑ
tirada."
O Alquimista pegou um livro que alguÙm na caravana havia trazido. O
volume estava sem capa, mas conseguiu identificar seu autor: Oscar Wilde.
Enquanto folheava suas pÑginas, encontrou uma histãria sobre Narciso.
O Alquimista conhecia a lenda de Narciso, um belo rapaz que todos os
dias ia contemplar sua prãpria beleza num lago. Era tÓo fascinado por si
mesmo que certo dia caiu dentro do lago e morreu afogado. No lugar onde
caiu, nasceu uma flor, que chamaram de narciso.
Mas nÓo era assim que Oscar Wilde acabava a histãria.
Ele dizia que quando Narciso morreu, vieram as OrÙiades deusas do
bosque e viram o lago transformado, de um lago de Ñgua doce, num cÒntaro
de lÑgrimas salgadas.
Por que vocÚ chora? perguntaram as OrÙiades.
Choro por Narciso disse o lago
Ah, nÓo nos espanta que vocÚ chore por Narciso continuaram elas.
Afinal de contas, apesar de todas nãs sempre corrermos atrÑs dele pelo
bosque, vocÚ era o ênico que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua
beleza.
Mas Narciso era belo? perguntou o lago.
Quem mais do que vocÚ poderia saber disso? responderam, surpresas,
as OrÙiades.
Afinal de contas, era em suas margens que ele se debru×ava todos os
dias.
O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse:
Eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que Narciso era
belo.
"Choro por Narciso porque, todas as vezes que ele se deitava sobre
minhas margens eu podia ver, no fundo dos seus olhos, minha prãpria beleza
refletida".
"Que bela histãria", disse o Alquimista.
O rapaz chamava-se Santiago. Estava come×ando a escurecer quando chegou
com seu rebanho diante de uma velha igreja abandonada. O teto tinha
despencado hÑ muito tempo, e um enorme sicämoro havia crescido no local que
antes abrigava a sacristia.
Resolveu passar a noite ali. Fez com que todas as ovelhas entrassem
pela porta em ruÝnas, e entÓo colocou algumas tÑbuas de modo que elas nÓo
pudessem fugir durante a noite. NÓo haviam lobos naquela regiÓo, mas certa
vez um animal havia escapado durante a noite, e ele gastara todo o dia
seguinte procurando a ovelha desgarrada.
Forrou o chÓo com seu casaco e deitou-se, usando o livro que acabara de
ler como travesseiro. Lembrou-se, antes de dormir, que precisava come×ar a
ler livros mais grossos: demoravam mais para acabar e eram travesseiros mais
confortÑveis durante a noite.
Ainda estava escuro quando acordou. Olhou para cima, e viu que as
estrelas brilhavam atravÙs do teto semidestruÝdo.
"Queria dormir um pouco mais", pensou ele. Tivera o mesmo sonho da
semana passada, e outra vez acordara antes do final.
Levantou-se e tomou um gole de vinho. Depois pegou o cajado e come×ou a
acordar as ovelhas que ainda dormiam. Ele havia reparado que, assim que
acordava, a maior parte dos animais tambÙm come×ava a despertar. Como se
houvesse alguma misteriosa energia unindo sua vida Ð vida daquelas ovelhas
que hÑ dois anos percorriam com ele a terra, em busca de Ñgua e alimento.
"Elas jÑ se acostumaram tanto a mim que conhecem meus horÑrios", disse em
voz baixa. Refletiu um momento, e pensou que podia ser tambÙm o contrÑrio:
ele que havia se acostumado ao horÑrio das ovelhas.
Haviam certas ovelhas, porÙm, que demoravam um pouco mais para
levantar. O rapaz acordou uma a uma com seu cajado, chamando cada qual pelo
seu nome. Sempre acreditara que as ovelhas eram capazes de entender o que
ele falava. Por isso costumava Ðs vezes ler para elas os trechos de livros
que o haviam impressionado, ou falar da solidÓo e da alegria de um pastor no
campo, ou comentar sobre as êltimas novidades que via nas cidades por onde
costumava passar.
Nos êltimos dois dias, porÙm, seu assunto tinha sido praticamente um
sã: a menina, filha do comerciante, que morava na cidade por onde ia chegar
daqui a quatro dias. Tinha estado apenas uma vez lÑ, no ano anterior. O
comerciante era dono de uma loja de tecidos, e gostava sempre de ver as
ovelhas tosquiadas na sua frente, para evitar falsifica×åes. Um certo amigo
tinha indicado a loja, e o pastor levou lÑ suas ovelhas.
"Preciso vender alguma lÓ", disse para o comerciante.
A loja do homem estava cheia, e o comerciante pediu que o pastor
esperasse atÙ o entardecer. Ele sentou-se na cal×ada da loja e tirou um
livro do alforje.
NÓo sabia que os pastores sÓo capazes de ler livros disse uma voz
feminina ao seu lado.
Era uma mo×a tÝpica da regiÓo de Andaluzia, com seus cabelos negros
escorridos, e os olhos que lembravam vagamente os antigos conquistadores
mouros.
¹ porque as ovelhas ensinam mais que os livros respondeu o rapaz.
Ficaram conversando por mais de duas horas. Ela contou que era filha do
comerciante, e falou da vida na aldeia, onde cada dia era igual ao outro. O
pastor contou dos campos de Andaluzia, das êltimas novidades que viu nas
cidades onde visitara. Estava contente por nÓo precisar conversar sempre com
as ovelhas.
Como aprendeu a ler? perguntou a mo×a a certa altura.
Como todas as outras pessoas respondeu o rapaz. Na escola.
E, se sabe ler, entÓo por que Ù apenas um pastor?
O rapaz deu uma desculpa qualquer para nÓo responder aquela pergunta.
Ele tinha certeza de que a mo×a jamais entenderia. Continuou a contar suas
histãrias de viagem, e os pequenos olhos mouros abriam-se e fechavam-se de
espanto e surpresa. ° medida que o tempo foi passando, o rapaz come×ou a
desejar que aquele dia nÓo acabasse nunca, que o pai da mo×a ficasse ocupado
por muito tempo e o mandasse esperar por trÚs dias. Percebeu que estava
sentindo uma coisa que nunca havia sentido antes: vontade de ficar morando
numa mesma cidade para sempre. Com a menina de cabelos negros, os dias nunca
seriam iguais.
Mas o comerciante finalmente chegou e mandou que ele tosquiasse quatro
ovelhas. Depois, pagou-lhe o que era devido, e pediu que voltasse no ano
seguinte.
Agora faltavam apenas quatro dias para chegar de novo Ð mesma aldeia.
Estava excitado e ao mesmo tempo inseguro: talvez a menina jÑ tivesse
esquecido. Por ali passavam muitos pastores para vender lÓ.
NÓo tem importÒncia disse o rapaz para as suas ovelhas. Eu tambÙm
conhe×o outras meninas em outras cidades.
Mas no fundo do seu cora×Óo, ele sabia que tinha importÒncia. E que
tanto os pastores, como os marinheiros, como os caixeiro-viajantes, sempre
conheciam uma cidade onde havia alguÙm capaz de fazer com que esquecessem a
alegria de viajar solto pelo mundo.
O dia come×ou a raiar e o pastor colocou as ovelhas seguindo em dire×Óo
ao sol. "Elas nunca precisam tomar uma decisÓo", pensou ele. "Talvez por
isso fiquem sempre juntos de mim". A ênica necessidade que as ovelhas
sentiam era de Ñgua e de alimento. Enquanto o rapaz conhecesse os melhores
pastos em Andaluzia, elas seriam sempre suas amigas. Mesmo que os dias
fossem todos iguais, com longas horas se arrastando entre o nascer e o
pär-do-sol; mesmo que elas jamais tivessem lido um sã livro em suas curtas
vidas, e nÓo conhecessem a lÝngua dos homens que contavam as novidades nas
aldeias. Elas estavam contentes com Ñgua e alimento, e isto bastava. Em
troca, ofereciam generosamente sua lÓ, sua companhia, e de vez em quando
sua carne.
"Se hoje eu me tornasse um monstro e resolvesse matar uma por uma, elas
sã iam perceber depois que quase todo o rebanho tivesse sido exterminado",
pensou o rapaz. "Porque confiam em mim, e se esqueceram de confiar nos seus
prãprios instintos. Sã porque as conduzo ao alimento e Ð comida".
O rapaz come×ou a estranhar seus prãprios pensamentos. Talvez a igreja,
com aquele sicämoro crescendo dentro, fosse mal-assombrada. Tinha feito com
que sonhasse um mesmo sonho pela segunda vez, e estava lhe dando uma
sensa×Óo de raiva contra suas companheiras, sempre tÓo fiÙis. Bebeu um pouco
de vinho que havia sobrado do jantar na noite anterior, e apertou contra o
corpo o seu casaco. Ele sabia que daqui a algumas horas, com o sol a pino, o
calor seria tÓo forte que nÓo ia poder
conduzir as ovelhas pelo campo. Era a hora que toda a Espanha dormia no
verÓo. O calor durava atÙ a noite, e durante todo este tempo ele tinha que
ficar carregando o casaco. Entretanto, quando pensava em reclamar do peso,
sempre lembrava que por causa dele nÓo havia sentido frio de manhÓ.
"Temos que estar sempre preparados para as surpresas do tempo", pensava
entÓo ele, e sentia-se grato pelo peso do casaco.
O casaco tinha um motivo, e o rapaz tambÙm. Em dois anos pelas
planÝcies de Andaluzia ele jÑ sabia de cor todas as cidades da regiÓo, e
esta era a grande razÓo de sua vida; viajar. Estava planejando explicar
desta vez Ð menina porque um simples pastor sabe ler: havia estado atÙ os
dezesseis anos num seminÑrio. Seus pais queriam que ele fosse padre, e
motivo de orgulho para uma simples famÝlia camponesa, que trabalhava apenas
para comida e Ñgua, como suas ovelhas. Estudou latim, espanhol, e teologia.
Mas desde crian×a sonhava em conhecer o mundo, e isto era muito mais
importante do que conhecer Deus ou os pecados dos homens. Certa tarde, ao
visitar a famÝlia, havia tomado coragem e dito para seu pai que nÓo queria
ser padre. Queria viajar.
Homens de todo o mundo jÑ passaram por esta aldeia, filho disse o
pai. VÚm em busca de coisas novas, mas continuam as mesmas pessoas. VÓo
atÙ o morro conhecer o castelo e acham que o passado era melhor que o
presente. TÚm cabelos louros ou pele escura, mas sÓo iguais aos homens de
nossa aldeia.
Mas nÓo conhe×o os castelos das terras de onde eles vÚm retrucou o
rapaz.
Estes homens, quando conhecem nossos campos e nossas mulheres, dizem
que gostariam de viver para sempre aqui continuou o pai.
Quero conhecer as mulheres e as terras de onde eles vieram disse o
rapaz. Porque eles nunca ficam por aqui.
Os homens trazem a bolsa cheia de dinheiro disse mais uma vez o
pai. Entre nãs, sã os pastores viajam.
EntÓo serei pastor.
O pai nÓo disse mais nada. No dia seguinte deu-lhe uma bolsa com trÚs
antigas moedas de ouro espanholas.
Achei certo dia no campo. Iam ser da Igreja, como seu dote. Compre
seu rebanho e corra o mundo atÙ aprender que nosso castelo Ù o mais
importante, e nossas mulheres sÓo as mais belas.
E o aben×oou. Nos olhos do pai ele leu tambÙm a vontade de correr o
mundo. Uma vontade que ainda vivia, apesar das dezenas de anos que ele a
tentou sepultar com Ñgua, comida, e o mesmo lugar para dormir toda noite.
O horizonte se tingiu de vermelho, e depois apareceu o sol. O rapaz
lembrou-se da conversa com o pai e sentiu-se alegre; tinha jÑ conhecido
muitos castelos e muitas mulheres (mas nenhuma igual Ðquela que o esperava
em dois dias). Tinha um casaco, um livro que podia trocar por outro, e um
rebanho de ovelhas. O mais importante, entretanto, Ù que todo dia realizava
o grande sonho de sua vida; viajar. Quando cansasse dos campos de Andaluzia,
podia vender suas ovelhas e tornar-se marinheiro. Quando cansasse do mar,
teria conhecido muitas cidades, muitas mulheres, muitas oportunidades de ser
feliz.
"NÓo sei como buscam Deus no seminÑrio", pensou, enquanto olhava o sol
que nascia. Sempre que possÝvel, buscava um caminho diferente para andar.
Nunca havia estado naquela igreja antes, apesar de haver passado tantas
vezes por ali. O mundo era grande e inesgotÑvel, e se ele deixasse que as
ovelhas o guiassem apenas um pouquinho, ia terminar descobrindo mais coisas
interessantes. "O problema Ù que elas nÓo se dÓo conta de que estÓo fazendo
caminhos novos cada dia. NÓo percebem que os pastos mudaram, que as esta×åes
sÓo diferentes porque estÓo apenas ocupadas com Ñgua e comida."
"Talvez seja assim com todos nãs" pensou o pastor. "Mesmo comigo, que
nÓo penso em outras mulheres desde que conheci a filha do comerciante".
Olhou o cÙu, e pelos seus cÑlculos estaria antes do almo×o em Tarifa. LÑ
poderia trocar seu livro por um volume mais grosso, encher a garrafa de
vinho, e fazer a barba e o cabelo; tinha que estar pronto para encontrar a
menina, e nÓo queria pensar na possibilidade de outro pastor ter chegado
antes dele, com mais ovelhas, para pedir sua mÓo.
"¹ justamente a possibilidade de realizar um sonho que torna a vida
interessante", refletiu enquanto olhava novamente o cÙu e apressava o passo.
Tinha acabado de se lembrar que em Tarifa morava uma velha capaz de
interpretar sonhos. E ele tinha tido um sonho repetido aquela noite.
A velha conduziu o rapaz atÙ um quarto no fundo da casa, separado da
sala por uma cortina feita de tiras de plÑstico colorido. LÑ dentro tinha
uma mesa, uma imagem do Sagrado Cora×Óo de Jesus, e duas cadeiras.
A velha sentou-se e pediu que ele fizesse o mesmo. Depois segurou as
duas mÓos do rapaz e rezou baixo.
Parecia uma reza cigana. O rapaz jÑ havia encontrado muitos ciganos
pelo caminho; eles viajavam e entretanto nÓo cuidavam de ovelhas. As pessoas
diziam que a vida de um cigano era sempre enganar aos outros. Diziam tambÙm
que eles tinham pacto com demänios, e que raptavam crian×as para servirem de
escravas em seus misteriosos acampamentos. Quando era pequeno, o rapaz
sempre tinha morrido de medo de ser raptado pelos ciganos, e este temor
antigo voltou enquanto a velha segurava suas mÓos.
"Mas existe a imagem do Sagrado Cora×Óo de Jesus", pensou ele,
procurando ficar mais calmo. NÓo queria que sua mÓo come×asse a tremer e a
velha percebesse seu medo . Rezou um pai-nosso em silÚncio.
Que interessante disse a velha, sem tirar os olhos da mÓo do rapaz.
E voltou a ficar quieta.
O rapaz estava ficando nervoso. Suas mÓos come×aram involuntariamente a
tremer, e a velha percebeu. Ele puxou as mÓos rapidamente.
NÓo vim aqui para ler as mÓos disse, jÑ arrependido de ter entrado
naquela casa. Pensou por um momento que era melhor pagar a consulta e ir-se
embora sem saber de nada. Estava dando importÒncia demais a um sonho
repetido.
VocÚ veio saber de sonhos respondeu a velha. E os sonhos sÓo a
linguagem de Deus. Quando ele fala a linguagem do mundo, eu posso
interpretar. Mas se ele falar a linguagem de sua alma, sã vocÚ pode
entender. E vou cobrar a consulta de qualquer maneira.
Mais um truque, pensou o rapaz. Entretanto, resolveu arriscar. Um
pastor corre sempre o risco dos lobos ou da seca, e isto Ù que faz a
profissÓo de pastor mais excitante.
Tive o mesmo sonho duas vezes seguidas disse. Sonhei que estava
num pasto com minhas ovelhas quando aparecia uma crian×a, e come×ava a
brincar com os animais. NÓo gosto que mexam nas minhas ovelhas, elas ficam
com medo de estranhos. Mas as crian×as sempre conseguem mexer com os animais
sem que eles se assustem. NÓo sei porquÚ. NÓo sei como os animais sabem a
idade dos seres humanos.
Volte para seu sonho disse a velha. Tenho uma panela no fogo.
AlÙm disso vocÚ tem pouco dinheiro e nÓo pode tomar todo o meu tempo.
A crian×a continuava a brincar com as ovelhas por algum tempo
continuou o rapaz, um pouco constrangido. E de repente, me pegava pelas
mÓos e me levava atÙ as PirÒmides do Egito.
O rapaz esperou um pouco para ver se a velha sabia o que eram as
PirÒmides do Egito. Mas a velha continuou quieta.
EntÓo, nas PirÒmides do Egito, ele falou as trÚs êltimas palavras
lentamente, para que a velha pudesse entender bem a crian×a me dizia: "se
vocÚ vier atÙ aqui, vai encontrar um tesouro escondido". E quando ela foi me
mostrar o local exato, eu acordei. Nas duas vezes.
A velha continuou em silÚncio por algum tempo. Depois tornou a pegar as
mÓos do rapaz e estudÑ-las atentamente.
NÓo vou lhe cobrar nada agora disse a velha. Mas quero um dÙcimo do
tesouro, se vocÚ encontrÑ-lo.
O rapaz riu. De felicidade. EntÓo iria economizar o pouco dinheiro que
tinha, por causa de um sonho que falava em tesouros escondidos! A velha
devia ser mesmo uma cigana os ciganos sÓo burros.
EntÓo interprete o sonho pediu o rapaz.
Antes jure. Jure que vocÚ vai me dar a dÙcima parte do seu tesouro em
troca do que eu lhe disser.
O rapaz jurou. A velha pediu para que ele repetisse o juramento olhando
para a imagem do Sagrado Cora×Óo de Jesus.
¹ um sonho da Linguagem do Mundo disse ela. Posso interpretÑ-lo,
e Ù uma interpreta×Óo muito difÝcil. Por isso acho que mere×o minha parte no
seu achado.
"E a interpreta×Óo Ù esta: vocÚ deve ir atÙ as PirÒmides do Egito.
Nunca ouvi falar delas, mas se foi uma crian×a que lhe mostrou, Ù porque
existem. LÑ vocÚ encontrarÑ um tesouro que lhe farÑ rico".
O rapaz ficou surpreso, e depois irritado. NÓo precisava ter procurado
a velha para isto.
Finalmente lembrou-se de que nÓo estava pagando nada.
Para isto eu nÓo precisava perder meu tempo disse.
Por isso lhe falei que seu sonho era difÝcil. As coisas simples sÓo
as mais extraordinÑrias, e sã os sÑbios conseguem vÚ-las. JÑ que nÓo sou uma
sÑbia, tenho que conhecer outras artes, como a leitura de mÓos.
E como eu vou chegar atÙ o Egito?
Eu sã interpreto sonhos. NÓo sei transformÑ-los em realidade. Por
isso tenho que viver do que minhas filhas me dÓo.
E se eu nÓo chegar atÙ o Egito?
Eu fico sem pagamento. NÓo serÑ a primeira vez.
E a velha nÓo disse mais nada. Pediu para que o rapaz saÝsse, pois jÑ
tinha perdido muito tempo com ele.
O rapaz saiu decepcionado e decidido a nunca mais acreditar em sonhos.
Lembrou-se de que tinha vÑrias providÚncias a tomar: foi ao armazÙm arranjar
alguma comida, trocou seu livro por um livro mais grosso, e sentou-se num
banco da pra×a para saborear o vinho novo que havia comprado. Era um dia
quente, e o vinho, por um destes mistÙrios insondÑveis, conseguia resfriar
um pouco seu corpo. As ovelhas estavam na entrada da cidade, no estÑbulo de
um novo amigo seu. Conhecia muita gente por aquelas bandas e por isso
gostava de viajar. A gente sempre acaba fazendo amigos novos, e nÓo precisa
ficar com eles dia apãs dia. Quando a gente vÚ sempre as mesmas pessoas e
isto acontecia no seminÑrio terminamos fazendo com que elas passem a fazer
parte de nossas vidas. E como elas fazem parte de nossas vidas, passam
tambÙm a querer modificar nossas vidas. Se a gente nÓo for como elas esperam
ficar, chateadas. Porque todas as pessoas tem a no×Óo exata de como devemos
viver nossa vida.
E nunca tÚm no×Óo de como devem viver as suas prãprias vidas. Como a
mulher dos sonhos, que nÓo sabia transformÑ-los em realidade.
Resolveu esperar o sol descer um pouco, antes de seguir com suas
ovelhas em dire×Óo ao campo. Daqui a trÚs dias iria estar com a filha do
comerciante.
Come×ou a ler o livro que tinha conseguido com o padre de Tarifa. Era
um livro grosso, que falava de um enterro logo na primeira pÑgina. AlÙm
disso, o nome dos personagens eram complicadÝssimos. Se algum dia escrevesse
um livro, pensou ele, ia colocar um personagem aparecendo de cada vez, para
que os leitores nÓo tivessem que ficar decorando nomes.
Quando conseguiu concentrar-se um pouco na leitura, e era boa, porque
falava de um enterro na neve, o que lhe transmitia uma sensa×Óo de frio
debaixo daquele imenso sol um velho sentou-se ao seu lado e come×ou a
puxar conversa.
O que eles estÓo fazendo? perguntou o velho, apontando para as
pessoas da pra×a.
Trabalhando respondeu o rapaz, secamente, e voltou a fingir que
estava concentrado na leitura. Na verdade, estava pensando em tosquiar as
ovelhas na frente da filha do comerciante, para ela atestar como ele era
capaz de fazer coisas interessantes. JÑ havia imaginado esta cena uma por×Óo
de vezes; em todas elas, a menina ficava deslumbrada quando ele come×ava a
lhe explicar que as ovelhas devem ser tosquiadas de trÑs para frente. TambÙm
tentava se lembrar de algumas boas histãrias para contar a ela enquanto
tosquiava as ovelhas. A maior parte ele tinha lido nos livros, mas iria
contar como se tivesse vivido pessoalmente. Ela nunca ia saber a diferen×a,
porque nÓo sabia ler livros.
O velho, entretanto, insistiu. Falou que estava cansado, com sede, e
pediu um gole de vinho ao rapaz. O rapaz ofereceu sua garrafa; talvez o
velho ficasse quieto.
Mas o velho queria conversar de qualquer maneira. Perguntou que livro o
rapaz estava lendo. Ele pensou em ser rude e mudar de banco, mas seu pai
havia lhe ensinado o respeito pelos mais velhos. EntÓo estendeu o livro para
o velho, por duas razåes: a primeira Ù que nÓo sabia pronunciar o tÝtulo. E
a segunda era que, se o velho nÓo soubesse ler, ia ele mesmo mudar de banco
para nÓo sentir-se humilhado.
Humm... disse o velho, olhando o volume por todos os lados, como se
fosse um objeto estranho. ¹ um livro importante, mas Ù muito chato.
O rapaz ficou surpreso. O velho tambÙm lia, e jÑ lera aquele livro. E
se o livro era chato como ele dizia, ainda dava tempo de trocar por outro.
¹ um livro que fala o que quase todos os livros falam continuou o
velho. Da incapacidade que as pessoas tÚm de escolher seu prãprio destino.
E termina fazendo com que todo mundo acredite na maior mentira do mundo.
Qual Ù a maior mentira do mundo? indagou surpreso o rapaz.
¹ esta: em determinado momento de nossa existÚncia, perdemos o
controle de nossas vidas, e ela passa a ser governada pelo destino. Esta Ù a
maior mentira do mundo.
Comigo nÓo aconteceu isto disse o rapaz. Queriam que eu fosse
padre, e eu resolvi ser pastor.
Assim Ù melhor disse o velho. Porque vocÚ gosta de viajar.
"Ele adivinhou meu pensamento", refletiu o rapaz. O velho, entretanto,
folheava o livro grosso, sem a menor inten×Óo de devolvÚ-lo. O rapaz notou
que ele vestia uma roupa estranha; parecia um Ñrabe, o que nÓo era raro
naquela regiÓo. A ±frica ficava a apenas algumas horas da Tarifa; e era sã
cruzar o pequeno estreito num barco. Muitas vezes apareciam Ñrabes na
cidade, fazendo compras e rezando ora×åes estranhas vÑrias vezes por dia.
De onde Ù o senhor? perguntou.
De muitas partes.
NinguÙm pode ser de muitas partes o rapaz falou. Eu sou um pastor
e estou em muitas partes, mas sou de um ênico lugar, de uma cidade perto de
um castelo antigo. Ali foi onde nasci.
EntÓo podemos dizer que eu nasci em SalÙm.
O rapaz nÓo sabia onde era SalÙm, mas nÓo quis perguntar para nÓo
sentir- se humilhado com a prãpria ignorÒncia. Ficou mais algum tempo
olhando a pra×a. As pessoas iam e vinham, e pareciam muito ocupadas.
Como estÑ SalÙm? perguntou o rapaz, procurando alguma pista.
Como sempre esteve.
Ainda nÓo era uma pista. Mas sabia que SalÙm nÓo estava em Andaluzia.
SenÓo, ele jÑ a teria conhecido.
E o que vocÚ faz em SalÙm? insistiu.
O que fa×o em SalÙm? o velho pela primeira vez deu uma gostosa
gargalhada. Ora, eu sou o Rei de SalÙm!
As pessoas dizem coisas muito estranhas, pensou o rapaz. °s vezes Ù
melhor estar com as ovelhas, que sÓo caladas, e apenas procuram alimento e
Ñgua. Ou Ù melhor estar com os livros, que contam estãrias incrÝveis sempre
nas horas que a gente quer ouvir. Mas quando a gente fala com pessoas, elas
dizem certas coisas e ficamos sem saber como continuar a conversa.
Meu nome Ù Melquisedec disse o velho. Quantas ovelhas vocÚ tem?
O suficiente respondeu o rapaz. O velho estava querendo saber
demais sobre sua vida.
EntÓo estamos diante de um problema. NÓo posso ajudÑ-lo enquanto vocÚ
achar que tem ovelhas suficientes.
O rapaz se irritou. NÓo estava pedindo ajuda. O velho Ù que tinha
pedido vinho, conversa, e livro.
Me devolva o livro disse. Tenho que ir buscar minhas ovelhas e
seguir adiante.
Me dÚ um dÙcimo de suas ovelhas disse o velho. E eu lhe ensino
como chegar atÙ o tesouro escondido.
O rapaz tornou entÓo a lembrar-se do sonho, e de repente tudo ficou
claro. A velha nÓo tinha cobrado nada, mas o velho que era talvez seu
marido ia conseguir arrancar muito mais dinheiro em troca de uma
informa×Óo que nÓo existia. O velho devia ser cigano tambÙm.
Antes que o rapaz dissesse qualquer coisa, porÙm, o velho abaixou-se,
pegou um graveto, e come×ou a escrever na areia da pra×a. Quando ele se
abaixou, alguma coisa brilhou dentro do seu peito, com tanta intensidade que
quase cegou o rapaz. Mas num movimento rÑpido demais para alguÙm de sua
idade, tornou a cobrir o brilho com o manto. Os olhos do rapaz voltaram ao
normal e ele pode enxergar o que o velho estava escrevendo.
Na areia da pra×a principal da pequena cidade, ele leu o nome do seu
pai e de sua mÓe.
Leu a histãria de sua vida atÙ aquele momento, as brincadeiras de
infÒncia, as noites frias do seminÑrio. Leu o nome da filha do comerciante,
que nÓo sabia. Leu coisas que jamais contara para alguÙm, como o dia em que
roubou a arma do seu pai para matar veados, ou sua primeira e solitÑria
experiÚncia sexual.
"Sou o Rei de SalÙm", dissera o velho.
Por que um rei conversa com um pastor? perguntou o rapaz,
envergonhado e admiradÝssimo.
Existem vÑrias razåes. Mas vamos dizer que a mais importante Ù que
vocÚ tem sido capaz de cumprir sua Lenda Pessoal.
O rapaz nÓo sabia o que era Lenda Pessoal.
¹ aquilo que vocÚ sempre desejou fazer. Todas as pessoas, no come×o
da juventude, sabem qual Ù sua Lenda Pessoal.
"Nesta altura da vida, tudo Ù claro, tudo Ù possÝvel, e elas nÓo tÚm
medo de sonhar e desejar tudo aquilo que gostariam de ver fazer em suas
vidas. Entretanto, Ð medida em que o tempo vai passando, uma misteriosa
for×a come×a a tentar provar que Ù impossÝvel realizar a Lenda Pessoal.
O que o velho estava dizendo nÓo fazia muito sentido para o rapaz. Mas
ele queria saber o que eram "for×as misteriosas"; a filha do comerciante ia
ficar boquiaberta com isto.
SÓo as for×as que parecem ruins, mas na verdade estÓo ensinando a
vocÚ como realizar sua Lenda Pessoal. EstÓo preparando seu espÝrito e sua
vontade, porque existe uma grande verdade neste planeta: seja vocÚ quem for
ou o que fa×a, quando quer com vontade alguma coisa, Ù porque este desejo
nasceu na alma do Universo. ¹ sua missÓo na Terra.
Mesmo que seja apenas viajar? Ou casar com a filha de um comerciante
de tecidos?
Ou buscar um tesouro. A Alma do Mundo Ù alimentada pela felicidade
das pessoas. Ou pela infelicidade, inveja, ciême. Cumprir sua Lenda Pessoal
Ù a ênica obriga×Óo dos homens. Tudo Ù uma coisa sã.
"E quando vocÚ quer alguma coisa, todo o Universo conspira para que
vocÚ realize seu desejo".
Durante algum tempo ficaram em silÚncio, olhando a pra×a e as pessoas.
Foi o velho quem falou primeiro.
Por que vocÚ cuida de ovelhas?
Porque gosto de viajar.
Ele apontou um pipoqueiro, com sua carrocinha vermelha, que estava num
canto da pra×a.
Aquele pipoqueiro tambÙm sempre desejou viajar, quando crian×a. Mas
preferiu comprar uma carrocinha de pipoca, juntar dinheiro durante anos.
Quando estiver velho, vai passar um mÚs na ±frica. Jamais entendeu que a
gente sempre tem condi×åes para fazer o que sonha.
Devia ter escolhido ser um pastor pensou em voz alta o rapaz.
Ele pensou nisto disse o velho. Mas os pipoqueiros sÓo mais
importantes que os pastores. Os pipoqueiros tÚm uma casa, enquanto os
pastores dormem ao relento. As pessoas preferem casar suas filhas com
pipoqueiros do que com pastores.
O rapaz sentiu uma pontada no cora×Óo, pensando na filha do
comerciante. Em sua cidade devia haver um pipoqueiro.
Enfim, o que as pessoas pensam sobre pipoqueiros e sobre pastores
passa a ser mais importante para elas que a Lenda Pessoal.
O velho folheou o livro, e distraiu-se lendo uma pÑgina. O rapaz
esperou um pouco, e o interrompeu da mesma maneira como ele o havia
interrompido.
Por que vocÚ fala estas coisas comigo?
Porque vocÚ tenta viver sua Lenda Pessoal. E estÑ a ponto de desistir
dela.
E vocÚ aparece sempre nestas horas?
Nem sempre desta forma, mas jamais deixei de aparecer. °s vezes
apare×o sob a forma de uma boa saÝda, uma boa idÙia. Outras vezes, num
momento crucial, fa×o as coisas ficarem mais fÑceis. E assim por diante; mas
a maior parte das pessoas nÓo nota isto.
O velho contou que na semana passada ele tinha sido for×ado a aparecer
para um garimpeiro sob a forma de uma pedra. O garimpeiro tinha largado tudo
para ir em busca de esmeraldas. Durante cinco anos trabalhou num rio, e
tinha quebrado 999.999 pedras em busca de uma esmeralda. Neste ponto o
garimpeiro pensou em desistir, e sã faltava uma pedra apenas UMA PEDRA
para ele descobrir sua esmeralda. Como ele tinha sido um homem que havia
apostado em sua Lenda Pessoal, o velho resolveu interferir. Transformou-se
numa pedra que rolou sobre o pÙ do garimpeiro. Este, com a raiva e
frustra×Óo dos cinco anos perdidos, atirou a pedra longe. Mas atirou com
tanta for×a que ela bateu em outra pedra e esta se quebrou, mostrando a mais
bela esmeralda do mundo.
As pessoas aprendem muito cedo sua razÓo de viver disse o velho com
uma certa amargura nos olhos. Talvez seja por isso que elas desistem tÓo
cedo tambÙm. Mas assim Ù o mundo.
EntÓo o rapaz se lembrou que a conversa havia come×ado com o tesouro
escondido.
Os tesouros sÓo levantados da terra pela torrente de Ñgua, e
enterrados por estas mesmas enchentes disse o velho. Se vocÚ quiser
saber sobre seu tesouro, terÑ que me ceder um dÙcimo de suas ovelhas.
E nÓo serve um dÙcimo do tesouro?
O velho ficou decepcionado.
Se vocÚ sair prometendo o que ainda nÓo tem, vai perder sua vontade
de consegui-lo.
O rapaz entÓo contou que tinha prometido um dÙcimo Ð cigana.
Os ciganos sÓo espertos suspirou o velho. De qualquer maneira Ù
bom vocÚ aprender que tudo na vida tem um pre×o. ¹ isto que os Guerreiros da
Luz tentam ensinar.
O velho devolveu o livro ao rapaz.
AmanhÓ, nesta mesma hora, vocÚ me traz um dÙcimo de suas ovelhas. Eu
lhe ensinarei como conseguir o tesouro escondido. Boa tarde.
E sumiu numa das esquinas da pra×a.
O rapaz tentou ler o livro, mas nÓo conseguiu concentrar-se mais.
Estava agitado e tenso, porque sabia que o velho falava a verdade. Foi atÙ o
pipoqueiro, comprou um saco de pipocas, enquanto pensava se devia ou nÓo
contar a ele o que o velho dissera. "°s vezes Ù melhor deixar as coisas como
estÓo", pensou o rapaz, e ficou quieto. Se dissesse algo, o pipoqueiro ia
ficar trÚs dias pensando em largar tudo, mas estava muito acostumado com sua
carrocinha.
Ele podia evitar este sofrimento ao pipoqueiro. Come×ou a andar sem
rumo pela cidade, e foi atÙ o porto. Havia um pequeno prÙdio, e no prÙdio
havia uma janelinha onde as pessoas compravam passagens. O Egito estava na
±frica.
Quer alguma coisa? perguntou o sujeito no guichÚ.
Talvez amanhÓ disse o rapaz se afastando. Se vendesse apenas uma
ovelha podia chegar atÙ o outro lado do estreito. Era uma idÙia que o
apavorava.
Mais um sonhador disse o sujeito do guichÚ ao seu assistente,
enquanto o rapaz se afastava. NÓo tem dinheiro para viajar.
Quando estava no guichÚ, o rapaz havia se lembrado de suas ovelhas, e
sentiu medo de voltar para junto delas. Dois anos haviam passado aprendendo
tudo sobre a arte do pastoreio; sabia tosquiar, cuidar das ovelhas grÑvidas,
proteger os animais contra os lobos. Conhecia todos os campos e pastos de
Andaluzia. Conhecia o pre×o justo de comprar e vender cada um dos seus
animais.
Resolveu voltar atÙ o estÑbulo de seu amigo pelo caminho mais longo. A
cidade tambÙm tinha um castelo, e ele resolveu subir a rampa de pedra e
sentar-se numa de suas muradas. LÑ de cima ele podia ver a ±frica. AlguÙm
certa vez havia lhe explicado que por ali chegaram os mouros, que ocuparam
durante tantos anos quase toda a Espanha. O rapaz detestava os mouros. Eles
Ù que tinham trazido os ciganos.
De lÑ podia ver tambÙm quase toda a cidade, inclusive a pra×a onde
havia conversado com o velho.
"Maldita hora em que encontrei este velho", pensou ele. Tinha ido
apenas buscar uma mulher que interpretasse sonhos. Nem a mulher nem o velho
davam qualquer importÒncia para o fato de que ele era um pastor. Eram
pessoas solitÑrias, que jÑ nÓo acreditavam mais na vida, e nÓo entendiam que
os pastores terminam apegados Ðs suas ovelhas. Ele conhecia em detalhes cada
uma delas: sabia qual mancava, qual iria dar cria daqui a dois meses, e
quais eram as mais pregui×osas. Sabia tambÙm como tosquiÑ-las, e como
matÑ-las. Se resolvesse partir, elas sofreriam.
Um vento come×ou a soprar. Ele conhecia aquele vento: as pessoas o
chamavam de Levante, porque com este vento chegaram tambÙm as hordas de
infiÙis. AtÙ conhecer Tarifa, nunca havia pensado que a ±frica estava tÓo
perto. Isto era um grande perigo: os mouros poderiam invadir novamente.
O Levante come×ou a soprar mais forte. "Estou entre as ovelhas e o
tesouro", pensava o rapaz. Tinha que decidir-se entre alguma coisa que havia
se acostumado e alguma coisa que gostaria de ter. Havia tambÙm a filha do
comerciante, mas ela nÓo era tÓo importante como as ovelhas, porque nÓo
dependia dele. Talvez sequer se lembrasse dele. Teve certeza de que, se nÓo
aparecesse daqui a dois dias, a menina nÓo iria notar: para ela todos os
dias eram iguais, e quando todos os dias ficam iguais, Ù porque as pessoas
deixaram de perceber as coisas boas que aparecem em suas vidas sempre que o
sol cruza o cÙu.
"Eu larguei meu pai, minha mÓe, e o castelo da minha cidade. Eles se
acostumaram e eu me acostumei. As ovelhas tambÙm vÓo se acostumar com a
minha falta", pensou o rapaz.
De lÑ de cima ele olhou a pra×a. O pipoqueiro continuava vendendo suas
pipocas. Um jovem casal sentou-se no banco onde ele havia conversado com o
velho, e deram um longo beijo.
"O pipoqueiro", disse para si mesmo, sem completar a frase. Porque o
Levante havia come×ado a soprar com mais for×a, e ele ficou sentindo o vento
no rosto. Ele trazia os mouros, Ù verdade, mas tambÙm trazia o cheiro do
deserto e das mulheres cobertas com vÙu. Trazia o suor e os sonhos dos
homens que um dia haviam partido em busca do desconhecido, de ouro, de
aventuras e de pirÒmides. O rapaz come×ou a invejar a liberdade do vento,
e percebeu que poderia ser como ele. Nada o impedia, exceto ele prãprio. As
ovelhas, a filha do comerciante, os campos de Andaluzia, eram apenas os
passos de sua Lenda Pessoal.
No dia seguinte o rapaz encontrou-se com o velho ao meio-dia. Trazia
seis ovelhas consigo.
Estou surpreso disse ele. Meu amigo comprou imediatamente as
ovelhas. Disse que a vida inteira havia sonhado em ser pastor, e aquilo era
um bom sinal.
¹ sempre assim disse o velho. Chamamos de PrincÝpio FavorÑvel. Se
vocÚ for jogar baralho pela primeira vez, com quase toda certeza irÑ ganhar.
Sorte de principiante.
E por que?
Porque a vida quer que vocÚ viva sua Lenda Pessoal.
Depois come×ou a examinar as seis ovelhas, e descobriu que uma mancava.
O rapaz explicou que isto nÓo tinha importÒncia, porque ela era a mais
inteligente, e produzia bastante lÓ.
Onde estÑ o tesouro? perguntou.
O tesouro estÑ no Egito, perto das PirÒmides.
O rapaz levou um susto. A velha tinha dito a mesma coisa, mas nÓo tinha
cobrado nada.
Para chegar atÙ ele, vocÚ terÑ que seguir os sinais. Deus escreveu no
mundo o caminho que cada homem deve seguir. ¹ sã ler o que ele escreveu para
vocÚ.
Antes que o rapaz dissesse alguma coisa, uma mariposa come×ou a
esvoa×ar entre ele e o velho. Lembrou-se de seu avä; quando ele era crian×a,
seu avä lhe dissera que as mariposas eram sinal de boa sorte. Como os
grilos, as esperan×as, as lagartixas, e os trevos de quatro folhas.
Isto disse o velho, que era capaz de ler seus pensamentos.
Exatamente como seu avä lhe ensinou. Estes sÓo os sinais.
Depois o velho abriu o manto que lhe cobria o peito. O rapaz ficou
impressionado com o que viu, e lembrou-se do brilho que havia notado no dia
anterior. O velho tinha um peitoral de ouro maci×o, coberto de pedras
preciosas.
Era realmente um rei. Devia estar disfar×ado assim para fugir dos
salteadores.
Tome disse o velho, tirando uma pedra branca e uma pedra negra que
estavam presas no centro do peitoral de ouro. Chamam-se Urim e Tumim. A
preta quer dizer "sim", a branca quer dizer "nÓo". Quando vocÚ nÓo conseguir
enxergar os sinais, elas servem. Fa×a sempre uma pergunta objetiva.
"Mas de uma maneira geral, procure tomar suas decisåes. O tesouro estÑ
nas PirÒmides e isto vocÚ jÑ sabia; mas teve que pagar seis ovelhas porque
eu lhe ajudei a tomar uma decisÓo".
O rapaz guardou as pedras no alforje . Daqui por diante, tomaria suas
prãprias decisåes.
NÓo se esque×a de que tudo Ù uma coisa sã. NÓo se esque×a da
linguagem dos sinais. E, sobretudo, nÓo se esque×a de ir atÙ o fim de sua
Lenda Pessoal.
"Antes, porÙm, gostaria de contar-lhe uma pequena histãria.
"Certo mercador enviou seu filho para aprender o Segredo da Felicidade
com o mais sÑbio de todos os homens. O rapaz andou durante quarenta dias
pelo deserto,
atÙ chegar a um belo castelo, no alto de uma montanha. LÑ vivia o SÑbio
que o rapaz buscava.
"Ao invÙs de encontrar um homem santo, porÙm, o nosso herãi entrou numa
sala e viu uma atividade imensa; mercadores entravam e saÝam, pessoas
conversavam pelos cantos, uma pequena orquestra tocava melodias suaves, e
havia uma farta mesa com os mais deliciosos pratos daquela regiÓo do mundo.
O SÑbio conversava com todos, e o rapaz teve que esperar duas horas atÙ
chegar sua vez de ser atendido.
"O SÑbio ouviu atentamente o motivo da visita do rapaz, mas disse-lhe
que naquele momento nÓo tinha tempo de explicar-lhe o Segredo da Felicidade.
Sugeriu que o rapaz desse um passeio por seu palÑcio, e voltasse daqui a
duas horas.
" Entretanto, quero lhe pedir um favor completou o SÑbio, entregando
ao rapaz uma colher de chÑ, onde pingou duas gotas de ãleo. Enquanto vocÚ
estiver caminhando, carregue esta colher sem deixar que o ãleo seja
derramado.
"O rapaz come×ou a subir e descer as escadarias do palÑcio, mantendo
sempre os olhos fixos na colher. Ao final de duas horas, retornou Ð presen×a
do SÑbio.
" EntÓo perguntou o SÑbio vocÚ viu as tape×arias da PÙrsia que
estÓo na minha sala de jantar? Viu o jardim que o Mestre dos Jardineiros
demorou dez anos para criar? Reparou nos belos pergaminhos de minha
biblioteca?
"O rapaz, envergonhado, confessou que nÓo havia visto nada. Sua ênica
preocupa×Óo era nÓo derramar as gotas de ãleo que o SÑbio lhe havia
confiado.
" Pois entÓo volte e conhe×a as maravilhas do meu mundo disse o
SÑbio. VocÚ nÓo pode confiar num homem se nÓo conhece sua casa.
"JÑ mais tranqìilo, o rapaz pegou a colher e voltou a passear pelo
palÑcio, desta vez reparando em todas as obras de arte que pendiam do teto e
das paredes. Viu os jardins, as montanhas ao redor, a delicadeza das flores,
o requinte com que cada obra de arte estava colocada em seu lugar. De volta
Ð presen×a do SÑbio, relatou pormenorizadamente tudo que havia visto.
" Mas onde estÓo as duas gotas de ãleo que lhe confiei? perguntou o
SÑbio.
"Olhando para a colher, o rapaz percebeu que as havia derramado.
" Pois este Ù o ênico conselho que eu tenho para lhe dar disse o
mais SÑbio dos SÑbios. O segredo da felicidade estÑ em olhar todas as
maravilhas do mundo, e nunca se esquecer das duas gotas de ãleo na colher".
O rapaz ficou em silÚncio. Havia compreendido a histãria do velho rei.
Um pastor gosta de viajar, mas jamais esquece suas ovelhas.
O velho olhou para o rapaz, e com as duas mÓos espalmadas fez alguns
gestos estranhos em sua cabe×a. Depois, pegou os animais e seguiu seu
caminho.
No alto da pequena cidade de Tarifa existe um velho forte construÝdo
pelos mouros, e quem senta em suas muralhas consegue enxergar uma pra×a, um
pipoqueiro, e um peda×o da ±frica. Melquisedec, o Rei de SalÙm, sentou-se na
murada do forte aquela tarde, e sentiu o vento Levante no rosto. As ovelhas
esperneavam ao seu lado, com medo
do novo dono, e excitadas com tantas mudan×as. Tudo que elas queriam
era apenas comida e Ñgua.
Melquisedec olhou o pequeno navio que estava zarpando do porto. Nunca
mais tornaria a ver o rapaz, da mesma maneira como jamais tornou a ver
AbraÓo, depois de lhe ter cobrado o dÝzimo. Entretanto, esta era a sua obra.
Os deuses nÓo devem ter desejos, porque os deuses nÓo tÚm Lenda
Pessoal. Entretanto, o Rei de SalÙm torceu intimamente para que o rapaz
tivesse Úxito.
"Pena que ele vai esquecer logo meu nome", pensou. "Devia ter repetido
mais de uma vez. Assim, quando falasse a meu respeito, diria que sou
Melquisedec, o Rei de SalÙm."
Depois olhou para o cÙu meio arrependido: "sei que Ù vaidade das
vaidades, como Tu disseste, Senhor. Mas um velho rei Ðs vezes tem que sentir
orgulho de si mesmo".
"Como Ù estranha a ±frica", pensou o rapaz.
Estava sentado numa espÙcie de bar igual a outros bares que ele havia
encontrado nas ruelas estreitas da cidade. Algumas pessoas fumavam um
cachimbo gigante, que era passado de boca em boca. Em poucas horas havia
visto homens de mÓos dadas, mulheres com o rosto coberto, e sacerdotes que
subiam em longas torres e come×avam a cantar enquanto todos Ð sua volta se
ajoelhavam e batiam com a cabe×a no solo.
"Coisa de infiÙis", disse para si mesmo. Quando crian×a, via sempre na
igreja da sua aldeia uma imagem de SÓo Santiago Matamouros em seu cavalo
branco, com a espada desembainhada, e figuras como aquelas debaixo de seus
pÙs. O rapaz sentia-se mal e terrivelmente sã. Os infiÙis tinham um olhar
sinistro.
AlÙm disso, na pressa de viajar, ele havia se esquecido de um detalhe,
um ênico detalhe, que podia afastÑ-lo do seu tesouro por muito tempo:
naquele paÝs todos falavam Ñrabe.
O dono do bar se aproximou e o rapaz apontou para uma bebida que tinha
sido servida em outra mesa. Era um chÑ amargo. O rapaz preferia beber vinho.
Mas nÓo devia preocupar-se com isto agora. Tinha que pensar apenas no
seu tesouro, e a maneira de consegui-lo. A venda das ovelhas lhe havia
deixado com bastante dinheiro no bolso, e o rapaz sabia que o dinheiro era
mÑgico: com ele ninguÙm jamais estÑ sozinho. Daqui a pouco, talvez em alguns
dias, estaria junto das PirÒmides. Um velho, com todo aquele ouro no peito,
nÓo precisava mentir para ganhar seis ovelhas.
O velho lhe havia falado de sinais. Enquanto atravessava o mar, ele
havia pensado nos sinais. Sim, sabia do que ele estava falando: durante o
tempo em que estivera nos campos de Andaluzia, havia se acostumado a ler na
terra e nos cÙus as condi×åes do caminho que devia seguir. Aprendera que
certo pÑssaro indicava uma cobra por perto, e que determinado arbusto era
sinal de Ñgua daqui a alguns quilämetros. As ovelhas lhe haviam ensinado
isto.
"Se Deus conduz tÓo bem as ovelhas, tambÙm conduzirÑ o homem",
refletiu, e ficou mais tranqìilo. O chÑ parecia menos amargo.
Quem Ù vocÚ? ouviu uma voz em espanhol.
O rapaz ficou imensamente aliviado. Estava pensando em sinais e alguÙm
tinha aparecido.
Como vocÚ fala espanhol? perguntou. O recÙm-chegado era um rapaz
vestido Ð maneira dos ocidentais, mas a cor de sua pele indicava que devia
ser daquela cidade. Tinha mais ou menos sua altura e sua idade.
Quase todo mundo aqui fala espanhol. Estamos hÑ apenas duas horas da
Espanha.
Sente-se e pe×a alguma coisa por minha conta disse o rapaz. E
pe×a um vinho para mim. Detesto este chÑ.
NÓo hÑ vinho no paÝs disse o recÙm-chegado. A religiÓo nÓo
permite.
O rapaz disse entÓo que precisava chegar atÙ as PirÒmides. Quase ia
falando do tesouro, mas resolveu ficar calado. SenÓo era bem capaz do Ñrabe
querer uma parte para levÑ-lo atÙ lÑ. Lembrou-se do que o velho lhe dissera
a respeito de ofertas.
Gostaria que me levasse atÙ lÑ, se puder. Posso lhe pagar como guia.
VocÚ tem idÙia de como chegar atÙ lÑ?
O rapaz reparou que o dono do bar estava por perto, ouvindo atentamente
a conversa. Sentia-se incomodado com a presen×a dele. Mas tinha encontrado
um guia, e nÓo ia perder esta oportunidade.
VocÚ tem que atravessar todo o deserto de Saara disse o
recÙm-chegado. E para isto precisamos de dinheiro. Quero saber se vocÚ tem
dinheiro suficiente.
O rapaz achou estranha a pergunta. Mas confiava no velho, e o velho lhe
falara que quando se quer uma coisa, o universo sempre conspira a favor.
Tirou seu dinheiro do bolso e mostrou ao recÙm-chegado. O dono do bar
aproximou-se e olhou tambÙm. Os dois trocaram algumas palavras em Ñrabe. O
dono do bar parecia irritado.
Vamos embora disse o recÙm-chegado.
Ele nÓo quer que continuemos aqui.
O rapaz ficou aliviado. Levantou-se para pagar a conta, mas o dono o
agarrou e come×ou a falar sem parar. O rapaz era forte, mas estava numa
terra estrangeira. Foi seu novo amigo que empurrou o dono para o lado e
puxou o rapaz para fora.
Ele queria seu dinheiro disse. TÒnger nÓo Ù igual ao resto da
±frica. Estamos num porto e os portos tÚm sempre muito ladråes.
Ele podia confiar em seu novo amigo. Tinha lhe ajudado numa situa×Óo
crÝtica. Tirou o dinheiro do bolso e contou.
Podemos chegar amanhÓ nas PirÒmides disse o outro, pegando o
dinheiro. Mas preciso comprar dois camelos.
SaÝram andando pelas ruas estreitas de TÒnger. Em todo canto haviam
barracas de coisas para vender. Chegaram enfim no meio de uma grande pra×a,
onde funcionava o mercado. Haviam milhares de pessoas discutindo, vendendo,
comprando, hortali×as misturadas com adagas, tapetes junto com todo tipo de
cachimbos. Mas o rapaz nÓo tirava o olho de seu novo amigo. Afinal de
contas, ele estava com todo o seu dinheiro nas mÓos. Pensou em pedi-lo de
volta, mas achou que seria indelicado. Ele nÓo conhecia o costume das terras
estranhas que estava pisando.
"Basta vigiÑ-lo", disse para si mesmo. Era mais forte que o outro.
De repente, no meio de toda aquela confusÓo, estava a mais bela espada
que seus olhos jÑ haviam visto. A bainha era prateada, e o cabo negro,
cravejado de pedras. O rapaz prometeu a si mesmo que, quando voltasse do
Egito, ia comprar aquela espada.
Pergunte ao dono da barraca quanto custa disse ele ao amigo. Mas
percebeu que tinha ficado dois segundos distraÝdo, olhando a espada.
Seu cora×Óo ficou pequeno, como se o peito tivesse subitamente
encolhido. Teve medo de olhar para o lado, porque sabia o que ia encontrar.
Os olhos continuaram fixos na bela espada por mais alguns momentos, atÙ que
o rapaz tomou coragem e se virou.
Em volta dele o mercado, as pessoas indo e vindo, gritando e comprando,
os tapetes misturados com avelÓs, as alfaces junto Ðs bandejas de cobre, os
homens de mÓos dadas pelas ruas, as mulheres de vÙu, o cheiro de comida
estranha, e em nenhum lugar, mas em nenhum lugar mesmo, o rosto de seu
companheiro.
O rapaz ainda quis pensar que haviam se perdido por acaso. Resolveu
ficar ali mesmo, esperando que o outro voltasse. Pouco tempo depois um
sujeito subiu numa daquelas torres e come×ou a cantar; todas as pessoas
ajoelharam-se no chÓo, bateram com a cabe×a no solo, e cantaram tambÙm.
Depois, como um bando de formigas trabalhadoras, desfizeram as barracas e
foram embora.
O sol come×ou a ir embora tambÙm. O rapaz olhou o sol durante muito
tempo, atÙ que ele se escondeu atrÑs das casas brancas que davam a volta na
pra×a. Lembrou-se que quando aquele sol nascera de manhÓ, ele estava em
outro continente, era um pastor, tinha sessenta ovelhas, e um encontro
marcado com uma mo×a. De manhÓ ele sabia tudo que iria acontecer enquanto
andava pelos campos.
Entretanto, agora que o sol se escondia, ele estava num paÝs diferente,
um estranho numa terra estranha, onde nem sequer podia entender a lÝngua que
falavam. JÑ nÓo era um pastor, e nÓo tinha mais nada na vida, nem mesmo
dinheiro para voltar e come×ar tudo de novo.
"Tudo isto entre o nascente e o poente do mesmo sol" pensou o rapaz.
E sentiu pena de si mesmo, porque Ðs vezes as coisas mudam na vida no espa×o
de um simples grito, antes que as pessoas possam se acostumar com elas.
Tinha vergonha de chorar. Jamais havia chorado na frente de suas
prãprias ovelhas. Entretanto, o mercado estava vazio e ele estava longe da
pÑtria.
O rapaz chorou. Chorou porque Deus era injusto, e retribuÝa desta
maneira Ðs pessoas que acreditavam em seus prãprios sonhos. "Quando eu
estava com as ovelhas eu era feliz, e espalhava sempre felicidade Ð minha
volta. As pessoas me viam chegar e me recebiam bem.
"Mas agora estou triste e infeliz. O que farei? Vou ser mais amargo e
nÓo vou confiar nas pessoas, porque uma pessoa me traiu. Vou odiar aqueles
que encontraram tesouros escondidos, porque eu nÓo encontrei o meu. E vou
sempre procurar manter o pouco que tenho, porque sou pequeno demais para
abra×ar o mundo".
Abriu seu alforje para ver o que tinha lÑ dentro; talvez tivesse
sobrado alguma coisa do sanduÝche que havia comido no barco. Mas sã
encontrou o livro grosso, o casaco, e as duas pedras que o velho lhe dera.
Ao olhar as pedras, sentiu uma imensa sensa×Óo de alÝvio. Tinha trocado
seis ovelhas por duas pedras preciosas, saÝdas de um peitoral de ouro. Podia
vender as pedras e comprar a passagem de volta. "Agora serei mais esperto",
pensou o rapaz, tirando as pedras do alforje para escondÚ-las dentro do
bolso. Ali era um porto, e esta era a ênica verdade que aquele homem lhe
dissera; um porto estÑ sempre cheio de ladråes.
Agora entendia tambÙm o desespero do dono do bar: estava tentando
dizer- lhe para nÓo confiar naquele homem. "Sou como todas as pessoas: vejo
o mundo da maneira que desejava que as coisas acontecessem, e nÓo da maneira
que as coisas acontecem".
Ficou olhando as pedras. Tocou com cuidado cada uma, sentindo a
temperatura e a superfÝcie lisa. Elas eram seu tesouro. O simples toque das
pedras lhe deu mais tranqìilidade. Elas lhe lembravam do velho.
"Quando vocÚ quer uma coisa, todo o Universo conspira para que possa
consegui-la", dissera-lhe o velho.
Queria entender como aquilo podia ser verdade. Estava ali num mercado
vazio, sem um centavo no bolso, e sem ovelhas para guardar aquela noite. Mas
as pedras eram a prova de que tinha encontrado um rei um rei que sabia a
sua histãria, sabia da arma do seu pai e da sua primeira experiÚncia sexual.
"As pedras servem para adivinha×Óo. Chamam-se Urim e Tumim". O rapaz
colocou de novo as pedras dentro do saco e resolveu experimentar. O velho
havia falado que fizesse perguntas claras, porque as pedras sã serviam para
quem sabe o que quer.
O rapaz entÓo perguntou se a bÚn×Óo do velho continuava ainda com ele.
Tirou uma das pedras. Era "sim".
"Vou encontrar meu tesouro?" perguntou o rapaz.
Enfiou a mÓo no alforje e ia pegando uma das pedras, quando ambas
escorregaram por buraco no tecido. O rapaz nunca havia percebido que seu
alforje estava rasgado. Abaixou-se para pegar o Urim e o Tumim, e colocÑ-los
de novo dentro do saco. Ao vÚ-las no chÓo, porÙm, uma outra frase surgiu em
sua cabe×a.
"Aprenda a respeitar e seguir os sinais", havia falado o velho rei.
Um sinal. O rapaz riu para si mesmo. Depois apanhou as duas pedras no
chÓo e as recolocou no alforje. NÓo pensava costurar o buraco as pedras
poderiam escapar por ali sempre que desejassem. Ele havia entendido que
certas coisas a gente nÓo devia perguntar para nÓo fugir do prãprio
destino. "Prometi tomar minhas prãprias decisåes", disse para si mesmo.
Mas as pedras tinham dito que o velho, continuava com ele, e isto lhe
deu mais confian×a. Olhou de novo para o mercado vazio, e nÓo sentiu o
desespero de antes. NÓo era um mundo estranho; era um mundo novo.
Pois, afinal de contas, tudo que ele queria era exatamente isto:
conhecer mundos novos. Mesmo que ele jamais chegasse atÙ as PirÒmides, ele
jÑ tinha ido muito mais longe do que qualquer pastor que conhecia. "Ah, se
eles soubessem que a apenas duas horas de barco existem tantas coisas
diferentes".
O mundo novo aparecia na sua frente sob a forma de um mercado vazio,
mas ele jÑ vira aquele mercado cheio de vida, e nunca mais ia se esquecer.
Lembrou-se da espada foi um pre×o caro contemplÑ-la um pouco, mas tambÙm
nunca tinha visto nada igual antes. Sentiu de repente que ele podia olhar o
mundo como uma pobre vÝtima de um ladrÓo, ou como um aventureiro em busca de
um tesouro.
"Sou um aventureiro em busca de um tesouro", pensou, antes de cair
exausto no sono.
Acordou com um sujeito lhe cutucando. Tinha dormido no meio do mercado,
e a vida daquela pra×a estava prestes a recome×ar de novo.
Olhou em volta, procurando suas ovelhas, e percebeu que estava em outro
mundo. Ao invÙs de sentir-se triste, ficou feliz. NÓo tinha mais que seguir
em busca de Ñgua e comida; podia seguir em busca de um tesouro. NÓo tinha um
centavo no bolso, mas tinha fÙ na vida. Havia escolhido, na noite anterior,
ser um aventureiro igual aos personagens dos livros que costumava ler.
Come×ou a andar sem pressa pela pra×a. Os mercadores colocaram em pÙ
suas barracas; ajudou um doceiro a montar a sua. Havia um sorriso diferente
no rosto daquele doceiro: estava alegre, desperto para a vida, pronto para
come×ar um bom dia de trabalho. Era um sorriso que lembrava alguma coisa do
velho, aquele velho e misterioso rei que havia conhecido. "Este doceiro nÓo
estÑ fazendo doces porque quer viajar, ou porque quer casar com a filha de
um comerciante. "Este doceiro faz doce porque gosta disto", pensou o rapaz,
e notou que podia fazer a mesma coisa que o velho saber se uma pessoa estÑ
prãxima ou distante de sua Lenda Pessoal. Sã em olhar para ela. "¹ fÑcil, e
eu nunca havia percebido isto."
Quando acabaram de montar a barraca, o doceiro lhe estendeu o primeiro
doce que havia feito. O rapaz comeu satisfeito, agradeceu, e seguiu seu
caminho. Quando jÑ
havia se afastado um pouco, lembrou-se que a barraca havia sido montada
com uma pessoa falando Ñrabe e a outra, espanhol.
E tinham se entendido perfeitamente.
"Existe uma linguagem que estÑ alÙm das palavras", pensou o rapaz. "Eu
jÑ experimentei isto com as ovelhas, e agora estou experimentando com os
homens."
Estava aprendendo vÑrias coisas novas. Coisas que ele jÑ havia
experimentado, e que no entanto eram novas, porque tinham passado por ele
que tivesse percebido. E nÓo tinha percebido, porque estava acostumado com
elas. "Se eu aprender a decifrar esta linguagem sem palavras, eu vou
conseguir decifrar o mundo".
"Tudo Ù uma coisa sã", falava o velho.
Resolveu andar sem pressa e sem ansiedade pelas pequenas ruas de
TÒnger: sã desta maneira ia conseguir perceber os sinais. Isto exigia muita
paciÚncia, mas esta Ù a primeira virtude que um pastor aprende. Mais uma vez
percebeu que estava aplicando naquele mundo estranho as mesmas li×åes que
suas ovelhas lhe ensinaram.
"Tudo Ù uma coisa sã", havia falado o velho.
O Mercador de Cristais viu o dia nascer, e sentiu a mesma angêstia que
experimentava todas as manhÓs. Estava hÑ quase trinta anos naquele mesmo
lugar, uma loja no alto de uma ladeira, onde raramente passava um comprador.
Agora era tarde para mudar qualquer coisa: tudo que havia aprendido na vida
era vender e comprar cristais. Houve um tempo em que muita gente conhecia
sua loja: mercadores Ñrabes, geãlogos franceses e ingleses, soldados alemÓes
sempre com dinheiro no bolso. Naquela Ùpoca era uma grande aventura vender
cristais, e ele pensava como ia ficar rico, e como ia ter belas mulheres em
sua velhice.
Depois o tempo foi passando, e a cidade tambÙm. Ceuta cresceu mais que
TÒnger, e o comÙrcio mudou de rumo. Os vizinhos mudaram-se, e ficaram apenas
algumas lojas na ladeira. NinguÙm ia subir uma ladeira por causa de umas
poucas lojas.
Mas o Mercador de Cristais nÓo tinha escolha. Tinha vivido trinta anos
de sua vida comprando e vendendo pe×as de cristal, e agora era tarde demais
para mudar de rumo.
Durante a manhÓ inteira ficou olhando o pequeno movimento da rua. Fazia
aquilo hÑ anos, e jÑ sabia o horÑrio de cada pessoa. Quando faltavam alguns
minutos para o almo×o, um rapaz estrangeiro parou diante de sua vitrine.
Estava vestido normalmente, mas os olhos experimentados do Mercador de
Cristais concluÝram que ele nÓo tinha dinheiro. Mesmo assim resolveu entrar
e esperar alguns instantes, atÙ que o rapaz fosse embora.
Havia um cartaz na porta dizendo que ali se falavam vÑrias lÝnguas. O
rapaz viu um homem aparecer atrÑs do balcÓo.
Posso limpar estes vasos se vocÚ quiser disse o rapaz. Assim como
eles estÓo, nenhum comprador vai querer comprar.
O homem olhou sem dizer nada
Em troca, vocÚ me paga um prato de comida.
O homem continuou em silÚncio, e o rapaz sentiu que precisava tomar uma
decisÓo. Dentro de seu alforje havia o casaco nÓo ia precisar mais dele no
deserto. Tirou o casaco e come×ou a limpar os vasos. Durante meia hora
limpou todos os vasos da vitrine; neste meio tempo entraram dois fregueses e
compraram cristais do homem.
Quando acabou de limpar tudo, ele pediu ao homem um prato de comida.
Vamos comer disse o Mercador de Cristais.
Colocou uma tabuleta na porta, e foram atÙ um minêsculo bar no alto na
ladeira. Assim que sentaram na ênica mesa existente, o Mercador de Cristais
sorriu.
NÓo era preciso limpar nada disse. A lei do AlcorÓo obriga a dar
de comer a quem tem fome.
EntÓo por que me deixou fazer isto? perguntou o rapaz.
Porque os cristais estavam sujos. E tanto vocÚ como eu precisÑvamos
limpar as cabe×as dos maus pensamentos.
Quando acabaram de comer, o Mercador virou-se para o rapaz:
Queria que vocÚ trabalhasse na minha loja . Hoje entraram dois
fregueses enquanto vocÚ limpava os vasos, e isto Ù um bom sinal.
"As pessoas falam muito em sinais", pensou o pastor. "Mas nÓo percebem
o que estÓo dizendo. Da mesma maneira que eu nÓo percebia que hÑ muitos anos
falava com minhas ovelhas uma linguagem sem palavras".
Quer trabalhar para mim? insistiu o Mercador.
Posso trabalhar o resto do dia respondeu o rapaz. Limparei atÙ de
madrugada todos os cristais da loja. Em troca, preciso de dinheiro para
estar amanhÓ no Egito.
O velho riu de novo.
Mesmo que vocÚ limpasse meus cristais durante um ano inteiro, mesmo
que vocÚ ganhasse uma boa comissÓo de vendas em cada um deles, ainda ia ter
que arranjar dinheiro emprestado para ir ao Egito. Existem milhares de
quilämetros de deserto entre TÒnger e as PirÒmides.
Houve um momento de silÚncio tÓo grande, que a cidade parecia ter
adormecido. JÑ nÓo haviam mais os bazares, as discussåes dos mercadores, os
homens que subiam em minaretes e cantavam, as belas espadas com seus punhos
cravejados. JÑ nÓo havia mais a esperan×a e a aventura, velhos reis e Lendas
Pessoais, o tesouro e as pirÒmides. Era como se todo o mundo estivesse
quieto, porque a alma do rapaz estava em silÚncio. NÓo havia. nem dor, nem
sofrimento, nem decep×Óo: apenas um olhar vazio atravÙs da pequena porta do
bar, e uma vontade imensa de morrer, de que tudo acabasse para sempre
naquele minuto.
O Mercador olhou espantado para o rapaz. Era como se toda a alegria que
tinha visto aquela manhÓ houvesse subitamente desaparecido.
Posso lhe dar dinheiro para voltar Ð sua terra, meu filho disse o
Mercador de Cristais.
O rapaz continuou em silÚncio. Depois levantou-se, ajeitou as roupas, e
pegou seu alforje.
Vou trabalhar com o senhor disse.
E depois de outro silÚncio demorado, concluiu:
Preciso de dinheiro para comprar algumas ovelhas.
HÑ quase um mÚs o rapaz estava trabalhando para o Mercador de Cristais,
e nÓo era exatamente o tipo de emprego que lhe fazia feliz. O Mercador
passava o dia inteiro resmungando atrÑs do balcÓo, pedindo que tomasse
cuidado com as pe×as, que nÓo deixasse quebrar nada.
Mas continuava no emprego porque o Mercador era um velho rabujento, mas
nÓo era injusto; o rapaz recebia uma boa comissÓo em cada pe×a vendida, e jÑ
havia conseguido juntar algum dinheiro. Naquela manhÓ havia feito certos
cÑlculos: se continuasse a trabalhar todos os dias como estava trabalhando,
ia precisar de um ano inteiro para poder comprar algumas ovelhas.
Gostaria de fazer uma estante para os cristais disse o rapaz ao
Mercador. Ela pode ser colocada do lado de fora, e atrair quem estÑ
passando lÑ embaixo da ladeira.
Nunca fiz uma estante antes respondeu o Mercador. As pessoas
passam e esbarram. Os cristais se quebram.
Quando eu andava pelo campo com as ovelhas, elas podiam morrer se
encontrassem uma cobra. Mas isto faz parte da vida das ovelhas e dos
pastores.
O Mercador atendeu um freguÚs que desejava trÚs vasos de cristal.
Estava vendendo melhor do que nunca, como se o mundo tivesse voltado no
tempo, para a Ùpoca em que a rua era uma das principais atra×åes de TÒnger.
O movimento jÑ melhorou bastante disse ao rapaz, quando o freguÚs
saiu. O dinheiro permite que eu viva melhor, e lhe devolverÑ as suas
ovelhas em pouco tempo. Para que exigir mais da vida?
Porque temos que seguir os sinais falou o rapaz, quase sem querer;
e arrependeu-se do que dissera, porque o Mercador nunca havia encontrado um
rei.
"Chama-se PrincÝpio FavorÑvel, sorte de principiante. Porque a vida
quer que vocÚ viva sua Lenda Pessoal", falara o velho.
O Mercador, entretanto, estava entendendo o que o rapaz falava. A
simples presen×a dele na loja era um sinal, e com o passar dos dias, com o
dinheiro entrando na caixa, ele nÓo estava arrependido de haver contratado o
espanhol. Mesmo que o rapaz estivesse ganhando mais do que devia; como ele
sempre havia achado que as vendas nÓo mudavam mais, tinha oferecido uma
comissÓo alta, e sua intui×Óo dizia que em breve o garoto estaria de volta
Ðs suas ovelhas.
Por que vocÚ queria conhecer as PirÒmides? perguntou, para mudar o
assunto da estante.
Porque sempre me falaram nelas disse o rapaz, evitando falar no seu
sonho. Agora o tesouro era uma lembran×a sempre dolorosa, e o rapaz evitava
pensar nisto.
Eu nÓo conhe×o ninguÙm aqui que queira atravessar o deserto sã para
conhecer as PirÒmides disse o Mercador. SÓo apenas um monte de pedras.
VocÚ pode construir uma no seu quintal.
VocÚ nunca teve sonhos de viajar disse o rapaz, atendendo mais um
freguÚs que entrava na loja.
Dois dias depois o velho procurou o rapaz para falar da estante.
NÓo gosto de mudan×as disse o Mercador. Nem eu nem vocÚ somos
como Hassan, o rico comerciante. Se ele erra numa compra, isto nÓo o afeta
muito. Mas nãs dois temos sempre que conviver com nossos erros.
"¹ verdade", pensou o rapaz.
Para que vocÚ quer a estante? disse o Mercador.
Quero voltar mais rÑpido para minhas ovelhas. Temos que aproveitar
quando a sorte estÑ do nosso lado, e fazer tudo para ajudÑ-la da mesma
maneira que ela estÑ nos ajudando. Chama-se PrincÝpio FavorÑvel. Ou "sorte
de principiante".
O velho ficou calado por algum tempo. Depois disse:
O Profeta nos deu o AlcorÓo, e nos deixou apenas cinco obriga×åes
para serem seguidas em nossa existÚncia. A mais importante Ù a seguinte: sã
existe um Deus. As outras sÓo: rezar cinco vezes por dia, fazer jejum no mÚs
de RamadÓ, fazer caridade com os pobres.
Parou de falar. Seus olhos ficaram cheios de Ñgua ao falar do Profeta.
Era um homem fervoroso, e mesmo com toda a sua impaciÚncia, procurava viver
sua vida de acordo com a lei mu×ulmana.
E qual a quinta obriga×Óo? perguntou o rapaz.
HÑ dois dias atrÑs vocÚ disse que eu nunca tive sonhos de viajar
respondeu o Mercador. A quinta obriga×Óo de todo mu×ulmano Ù uma viagem.
Devemos ir, pelo menos uma vez na vida, Ð cidade sagrada de Meca.
"Meca Ù muito mais longe que as PirÒmides. Quando eu era jovem, preferi
juntar o pouco dinheiro que tinha para come×ar esta loja. Pensava em ser
rico algum dia, para ir a Meca. Passei a ganhar dinheiro, mas nÓo podia
deixar ninguÙm cuidando dos cristais, porque os cristais sÓo coisas
delicadas. Ao mesmo tempo, via passar defronte a minha loja muitas pessoas
que seguiam na dire×Óo de Meca. Haviam alguns peregrinos ricos, que iam com
um sÙquito de criados e de camelos, mas a maior parte das pessoas era muito
mais pobre do que eu era".
"Todas iam e voltavam contentes, e colocavam na porta de suas casas os
sÝmbolos da peregrina×Óo. Uma delas, um sapateiro que vivia de remendar as
botas alheias, me disse que havia caminhado quase um ano pelo deserto, mas
que ficava sempre mais cansado quando tinha que caminhar alguns quarteiråes
em TÒnger para comprar couro".
Por que nÓo vai a Meca agora? perguntou o rapaz.
Porque Meca Ù o que me mantÙm vivo. ¹ o que me faz agìentar todos
estes dias iguais, estes vasos calados nas prateleiras, o almo×o e o jantar
naquele restaurante horrÝvel. Tenho medo de realizar meu sonho, e depois nÓo
ter mais motivos para continuar vivo.
"VocÚ sonha com ovelhas e com pirÒmides. ¹ diferente de mim, porque
deseja realizar seus sonhos. Eu quero apenas sonhar com Meca. JÑ imaginei
milhares de vezes a travessia do deserto, minha chegada na pra×a onde estÑ a
Pedra Sagrada, as sete voltas que devo dar em torno dela antes de tocÑ-la.
JÑ imaginei quais pessoas estarÓo do meu lado, na minha frente, e as
conversas e ora×åes que compartilharemos juntos. Mas tenho medo que seja uma
grande decep×Óo, entÓo prefiro apenas sonhar".
Neste dia, o Mercador deu permissÓo ao rapaz para construir a estante.
Nem todos podem ver os sonhos da mesma maneira.
Mais dois meses se passaram, e a estante trouxe muitos fregueses Ð loja
dos cristais. O rapaz calculou que, se trabalhasse mais seis meses, poderia
voltar Ð Espanha e comprar sessenta ovelhas, e mais sessenta ovelhas. Em
menos de um ano ele teria duplicado seu rebanho, e ia poder negociar com os
Ñrabes, porque jÑ conseguia falar aquela lÝngua estranha. Depois daquela
manhÓ no mercado, ele nÓo havia mais utilizado o Urim e o Tumim, porque o
Egito passou a ser apenas um sonho tÓo distante para ele como era a cidade
de Meca para o Mercador. Entretanto, o rapaz agora estava contente com seu
trabalho, e pensava a todo momento no dia em que iria desembarcar em Tarifa
como um vencedor.
"Lembre-se de saber sempre o que quer", havia falado o velho rei. O
rapaz sabia, e estava trabalhando para isto. Talvez seu tesouro tivesse sido
chegar Ðquela terra estranha, encontrar um assaltante, e dobrar o nêmero de
seu rebanho sem ter gasto um centavo sequer.
Estava orgulhoso de si mesmo. Havia aprendido coisas importantes, como
o comÙrcio de cristais, linguagem sem palavras, e os sinais. Uma tarde viu
um homem no alto da ladeira, reclamando que era impossÝvel encontrar um
lugar decente para beber alguma coisa depois de toda a subida. O rapaz jÑ
conhecia a linguagem dos sinais, e chamou o velho para conversar.
Vamos vender chÑ para as pessoas que sobem a ladeira disse ele.
Muitas pessoas vendem chÑ por aqui respondeu o Mercador.
Podemos vender chÑ em vasos de cristal. Assim as pessoas vÓo gostar
do chÑ, e vÓo querer comprar os cristais. Porque o que mais seduz os homens
Ù a beleza.
O Mercador olhou para o rapaz durante algum tempo. NÓo respondeu nada.
Mas naquela tarde, depois de fazer suas ora×åes e fechar a loja, sentou-se
na cal×ada com ele e convidou-o a fumar narguilÙ aquele estranho cachimbo
que os Ñrabes usavam.
O que vocÚ estÑ procurando? perguntou o velho Mercador de Cristais.
JÑ lhe disse. Preciso comprar de volta as ovelhas. E para isto Ù
necessÑrio dinheiro.
O velho colocou algumas brasas novas no narguilÙ, e deu uma longa
tragada.
HÑ trinta anos tenho esta loja. Conhe×o o bom e o mau cristal, e
conhe×o todos os detalhes do seu funcionamento. Estou acostumado com seu
tamanho e seu movimento. Se vocÚ colocar chÑ em cristais, a loja irÑ
crescer. EntÓo eu vou ter que mudar minha maneira de vida.
E isto nÓo Ù bom?
Estou acostumado com minha vida. Antes de vocÚ, eu pensava que havia
perdido tanto tempo no mesmo lugar, enquanto meus amigos todos mudavam,
quebravam, ou progrediam Isto me deixava com uma imensa tristeza. Agora eu
sei que nÓo era bem assim: a loja tem o exato tamanho que eu sempre quis que
ela tivesse. NÓo quero mudar, porque nÓo sei como mudar. JÑ estou muito
acostumado comigo mesmo.
O rapaz nÓo sabia o que dizer. O velho entÓo continuou:
VocÚ foi uma bÚn×Óo para mim. E hoje estou entendendo uma coisa: toda
bÚn×Óo que nÓo Ù aceita, transforma-se numa maldi×Óo. Eu nÓo quero mais da
vida. E vocÚ estÑ me for×ando a ver riquezas e horizontes que eu nunca
conheci. Agora que os conhe×o, e que conhe×o minhas possibilidades imensas,
vou me sentir pior do que me sentia antes. Porque sei que posso ter tudo, e
nÓo quero.
"Ainda bem que eu nÓo disse nada ao pipoqueiro", pensou o rapaz.
Continuaram fumando o narguilÙ por algum tempo, enquanto o sol se
escondia. Estavam conversando em Ñrabe, e o rapaz estava satisfeito consigo
mesmo, porque falava Ñrabe. Houve uma Ùpoca em que ele achou que as ovelhas
podiam ensinar tudo sobre o mundo. Mas as ovelhas nÓo sabiam ensinar Ñrabe.
"Devem ter outras coisas no mundo que as ovelhas nÓo sabem ensinar",
pensou o rapaz, enquanto olhava o Mercador em silÚncio. "Porque elas sã
estÓo em busca de Ñgua e comida.
"Acho que nÓo sÓo elas que ensinam: eu Ù que aprendo".
Maktub disse finalmente o mercador.
O que Ù isto?
VocÚ precisaria ter nascido Ñrabe para compreender respondeu ele.
Mas a tradu×Óo seria algo como "estÑ escrito".
E enquanto apagava as brasas do narguilÙ, disse que o rapaz podia
come×ar a vender chÑ nos vasos. °s vezes, Ù impossÝvel deter o rio da vida.
Os homens subiam a ladeira e ficavam cansados. EntÓo, lÑ no seu topo,
havia uma loja de belos cristais com chÑ de menta refrescante. Os homens
entravam para beber o chÑ, que era servido em lindos vasos de cristal.
"Jamais minha mulher pensou nisto", lembrava um, e comprava alguns
cristais, porque ia ter visitas naquela noite: seus convidados ficariam
impressionados com a riqueza das ta×as. Outro homem passou a garantir que o
chÑ era sempre mais gostoso quando servido em recipientes de cristal, pois
conservavam melhor o aroma. Um terceiro disse ainda que era tradi×Óo no
Oriente utilizar vasos de cristal junto com chÑ, por causa de seus poderes
mÑgicos.
Em pouco tempo, a novidade se espalhou, e muitas pessoas passaram a
subir atÙ o topo da ladeira para conhecer a loja que estava fazendo algo de
novo num comÙrcio tÓo antigo. Outras lojas de chÑ em copos de cristal foram
abertas, mas nÓo ficavam em cima de uma ladeira, e por isso estavam sempre
vazias.
Em pouco tempo, o Mercador teve que contratar mais dois empregados.
Passou a importar, junto com os cristais, quantidades enormes de chÑ, que
eram diariamente consumidas pelos homens e mulheres com sede de coisas
novas.
E assim transcorreram seis meses.
O rapaz acordou antes do sol nascer. Tinham-se passado onze meses e
nove dias desde que ele havia pisado pela primeira vez no continente
africano.
Vestiu sua roupa Ñrabe, de linho branco, comprada especialmente para
aquele dia. Colocou o len×o na cabe×a, fixo por um anel feito de pele de
camelo. Cal×ou as sandÑlias novas, e desceu sem fazer qualquer ruÝdo.
A cidade ainda dormia. Ele fez um sanduÝche de gergelim, e bebeu chÑ
quente no vaso de cristal. Depois sentou-se na soleira da porta, fumando
sozinho o narguilÙ.
Fumou em silÚncio, sem pensar em nada, escutando apenas o ruÝdo sempre
constante do vento que soprava trazendo o cheiro do deserto. Depois que
acabou de f'umar, enfiou a mÓo num dos bolsos do traje, e ficou alguns
instantes contemplando o que havia retirado lÑ de dentro.
Havia um grande ma×o de dinheiro. O suficiente para comprar cento e
vinte ovelhas, uma passagem de volta, e uma licen×a de comÙrcio entre seu
paÝs e o paÝs onde estava.
Esperou pacientemente que o velho acordasse e abrisse a loja. Os dois
entÓo foram juntos tomar mais chÑ.
Vou embora hoje disse o rapaz. Tenho dinheiro para comprar minhas
ovelhas. VocÚ tem dinheiro para ir Ð Meca.
O velho nÓo disse nada.
Pe×o sua bÚn×Óo insistiu o rapaz. VocÚ me ajudou.
O velho continuou a preparar o chÑ em silÚncio. Depois de um certo
tempo, porÙm, virou-se para o rapaz.
Tenho orgulho de vocÚ disse. VocÚ trouxe alma para a minha loja
de cristais. Mas sabe que eu nÓo vou Ð Meca. Como sabe que nÓo voltarÑ a
comprar ovelhas.
Quem lhe disse isto? perguntou o rapaz, assustado.
Maktub disse simplesmente o velho Mercador de Cristais.
E o aben×oou.
O rapaz foi atÙ seu quarto e juntou tudo que tinha. Eram trÚs sacolas
cheias. Quando jÑ estava saindo, notou que, num canto do quarto, havia seu
velho alforje de pastor. Estava todo amassado, e ele quase nem se lembrava
mais dele. LÑ dentro estava ainda o mesmo livro e o casaco. Quando ele tirou
o casaco, pensando em dar de presente para um rapaz na rua, as duas pedras
rolaram pelo chÓo. O Urim e o Tumim.
O rapaz entÓo se lembrou do velho rei, e ficou surpreso em perceber hÑ
quanto tempo nÓo pensava mais nisto. Durante um ano havia trabalhado sem
parar, pensando apenas em conseguir dinheiro para nÓo voltar de cabe×a baixa
para a Espanha.
"Nunca desista dos seus sonhos", havia falado o velho rei. "Siga os
sinais".
O rapaz pegou o Urim e o Tumim no chÓo, e teve novamente aquela
estranha sensa×Óo de que o rei estava perto. Trabalhara duro durante um ano,
e os sinais indicavam que agora era o momento de partir.
"Vou voltar exatamente a ser o que era antes", pensou o rapaz. "E as
ovelhas nÓo me ensinaram a falar Ñrabe".
As ovelhas, entretanto, tinham ensinado uma coisa muito mais
importante: que havia uma linguagem no mundo que todos compreendiam, e que o
rapaz tinha utilizado durante todo aquele tempo para fazer a loja progredir.
Era a linguagem do entusiasmo, das coisas feitas com amor e com vontade, em
busca de algo que se desejava ou em que se acreditava. TÒnger jÑ nÓo era
mais uma cidade estranha, e ele sentiu que da mesma maneira que tinha
conquistado aquele lugar, poderia conquistar o mundo.
"Quando vocÚ deseja uma coisa, todo o Universo conspira para que possa
realizÑ-la", havia falado o velho rei.
Mas o velho rei nÓo falara de assaltos, de desertos imensos, de pessoas
que conhecem os seus sonhos mas nÓo desejam realizÑ-los. O velho rei nÓo
havia falado que as PirÒmides eram apenas um monte de pedras, e qualquer um
podia fazer um monte de pedras em seu quintal. E tinha se esquecido de dizer
que, quando se tem dinheiro para comprar um rebanho maior do que o que
possuÝa, deve-se comprar este rebanho.
O rapaz pegou o alforje e juntou com seus outros sacos. Desceu as
escadas; o velho estava atendendo um casal estrangeiro, enquanto dois outros
fregueses andavam pela loja, tomando chÑ em vasos de cristal. Era um bom
movimento para aquela hora da manhÓ. Do lugar onde estava, notou pela
primeira vez que o cabelo do Mercador lembrava muito o cabelo do velho rei.
Lembrou-se do sorriso do doceiro, no primeira dia em TÒnger, quando nÓo
tinha para onde ir nem o que comer; tambÙm aquele sorriso lembrava o velho
rei.
"Como se ele tivesse passado por aqui e deixado uma marca", pensou. "E
cada pessoa nÓo tivesse jÑ conhecido este rei em algum momento de suas
existÚncias. Afinal de contas, ele disse que sempre aparecia para quem vive
sua Lenda Pessoal".
Saiu sem se despedir do Mercador de Cristais. NÓo queria chorar porque
as pessoas podiam ver. Mas ia ter saudade de todo aquele tempo, e de todas
as coisas boas que havia aprendido. Estava mais confiante em si e tinha
vontade de conquistar o mundo.
"Mas estou indo para os campos que jÑ conhe×o, conduzir de novo as
ovelhas". E nÓo estava mais contente com sua decisÓo. Tinha trabalhado um
ano inteiro para realizar um sonho, e este sonho, a cada minuto, ia perdendo
sua importÒncia. Talvez porque nÓo fosse seu sonho.
"Quem sabe Ù melhor ser como o Mercador de Cristais: nunca ir Ð Meca, e
viver da vontade de conhecÚ-la". Mas estava segurando o Urim e o Tumim nas
mÓos, e estas pedras lhe traziam a for×a e a vontade do velho rei. Por uma
coincidÚncia ou um sinal, pensou o rapaz ele chegou ao bar onde havia
entrado no primeiro dia. NÓo havia mais o ladrÓo, e o dono lhe trouxe uma
xÝcara de chÑ.
"Sempre poderei voltar a ser pastor", pensou o rapaz. "Aprendi a cuidar
das ovelhas, e nunca mais me esquecerei de como elas sÓo. Mas talvez nÓo
tenha outra oportunidade de chegar atÙ as PirÒmides do Egito. O velho tinha
um peitoral de ouro, e sabia minha histãria. Era um rei de verdade, um rei
sÑbio".
Estava apenas a duas horas de barco das planÝcies de Andaluzia, mas
havia um deserto inteiro entre ele as PirÒmides. O rapaz percebeu talvez
esta maneira de pensar a mesma situa×Óo: na verdade, ele estava duas horas
mais perto do seu tesouro. Mesmo que, para caminhar estas duas horas,
tivesse demorado quase um ano inteiro.
"Sei porque quero voltar para minhas ovelhas. Eu jÑ conhe×o as ovelhas;
nÓo dÓo muito trabalho, e podem ser amadas. NÓo sei se o deserto pode ser
amado, mas Ù o deserto que esconde o meu tesouro. Se eu nÓo conseguir
encontrÑ-lo, poderei sempre voltar
para casa. Mas de repente a vida me deu dinheiro suficiente, e eu tenho
todo o tempo que preciso; por que nÓo?"
Sentiu uma alegria imensa naquele momento. Sempre podia voltar a ser
pastor de ovelhas. Sempre podia voltar a ser vendedor de cristais. Talvez o
mundo tivesse muitos outros tesouros escondidos, mas ele havia tido um sonho
repetido e encontrado um rei. NÓo acontecia com qualquer pessoa.
Estava contente quando saiu do bar. Havia se lembrado que um dos
fornecedores do Mercador trazia os cristais em caravanas que cruzavam o
deserto. Manteve o Urim e o Tumim nas mÓos; por causa daquelas duas pedras,
estava de volta ao caminho de seu tesouro.
"Sempre estou perto dos que vivem a Lenda Pessoal", dissera o velho
rei.
NÓo custava nada ir atÙ o armazÙm, saber se as PirÒmides eram de fato
muito longe.
O InglÚs estava sentado numa constru×Óo cheirando a animais, suor, e
poeira. NÓo podia chamar aquilo de armazÙm; era apenas um curral. "Toda a
minha vida para ter que passar por um lugar como este", pensou enquanto
folheava distraÝdo uma revista de quÝmica. "Dez anos de estudo me conduzem a
um curral".
Mas era preciso seguir adiante. Tinha que acreditar em sinais. Toda a
sua vida, todos os seus estudos foram em busca da linguagem ênica que o
Universo falava. Primeiro havia se interessado por Esperanto, depois por
religiåes, e finalmente por Alquimia. Sabia falar Esperanto, entendia
perfeitamente as diversas religiåes, mas ainda nÓo era um Alquimista. Tinha
conseguido decifrar coisas importantes, Ù verdade. Mas suas pesquisas
chegaram a um ponto onde nÓo conseguia progredir mais. Tinha tentado em vÓo
entrar em contato com algum alquimista. Mas os alquimistas eram pessoas
estranhas, que sã pensavam neles mesmos, e quase sempre recusavam ajuda.
Quem sabe, nÓo haviam descoberto o segredo da Grande Obra chamada de Pedra
Filosofal e por isso se fechavam no silÚncio.
JÑ havia gasto parte da fortuna que seu pai lhe deixara, buscando
inutilmente a Pedra Filosofal. Tinha freqìentado as melhores bibliotecas do
mundo, e comprado os livros mais importantes e mais raros sobre alquimia.
Num deles descobriu que hÑ muitos anos atrÑs, um famoso alquimista Ñrabe
havia visitado a Europa. Diziam que ele tinha mais de duzentos anos, que
havia descoberto a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida. O InglÚs ficou
impressionado com a histãria. Mas tudo nÓo teria passado de mais uma lenda,
se um amigo seu voltando de uma expedi×Óo arqueolãgica no deserto nÓo
lhe tivesse contado sobre um Ñrabe que tinha poderes excepcionais.
Mora no oÑsis de Al-Fayoum disse seu amigo. E as pessoas contam
que tem duzentos anos, e que Ù capaz de transformar qualquer metal em ouro.
O InglÚs nÓo coube em si de tanta excita×Óo. Imediatamente cancelou
todos os seus compromissos, juntou os livros mais importantes, e agora
estava ali, naquele armazÙm parecido com um curral, enquanto lÑ fora uma
imensa caravana se preparava para cruzar o Saara. A caravana passava por
Al-Fayoum.
"Tenho que conhecer este maldito Alquimista", pensou o InglÚs. E o
cheiro dos animais tornou-se um pouco mais tolerÑvel.
Um jovem Ñrabe, tambÙm carregado de malas, entrou no lugar onde o
InglÚs estava e o cumprimentou.
Aonde vocÚ vai? perguntou o jovem Ñrabe.
Para o deserto respondeu o InglÚs, e voltou para a sua leitura. NÓo
queria conversar agora. Precisava recordar tudo que havia aprendido em dez
anos, pois o Alquimista deveria submetÚ-lo a alguma espÙcie de prova.
O jovem Ñrabe tirou um livro e come×ou a ler. O livro estava escrito em
espanhol. "Ainda bem", pensou o InglÚs. Sabia falar espanhol melhor que
Ñrabe, e se este rapaz fosse atÙ Al-Fayoum, ia ter alguÙm para conversar
quando nÓo estivesse ocupado com coisas importantes.
"Que coisa engra×ada" pensou o rapaz enquanto tentava mais uma vez
ler a cena do enterro que iniciava o livro. "Faz quase dois anos que
comecei a ler, e nÓo consigo passar destas pÑginas". Mesmo sem um rei para
interrompÚ-lo, ele nÓo conseguia se concentrar. Ainda estava em dêvida
quanto Ð sua decisÓo. Mas estava percebendo uma coisa importante: as
decisåes eram apenas o come×o de alguma coisa. Quando alguÙm tomava uma
decisÓo, na verdade estava mergulhando numa correnteza poderosa, que levava
a pessoa para um lugar que jamais havia sonhado na hora de decidir.
"Quando resolvi ir em busca do meu tesouro, nunca imaginei trabalhar
numa loja de cristais", pensou o rapaz, para confirmar seu raciocÝnio. "Da
mesma maneira, esta caravana pode ser uma decisÓo minha, mas seu percurso
serÑ sempre um mistÙrio".
Na sua frente havia um europeu tambÙm lendo um livro. O europeu era
antipÑtico, e tinha olhado com desprezo quando ele entrou. Podiam atÙ ter se
tornado bons amigos, mas o europeu havia interrompido a conversa.
O rapaz fechou o livro. NÓo queria fazer nada que o deixasse parecido
com aquele europeu. Tirou o Urim e o Tumim do bolso, e come×ou a brincar com
eles.
O estrangeiro deu um grito:
Um Urim e um Tumim!
O rapaz, mais que depressa, guardou as pedras no bolso.
NÓo estÓo Ð venda disse.
NÓo valem muito disse o InglÚs. SÓo cristais de rocha, nada mais.
HÑ milhåes de cristais de rocha na terra, mas para quem entende, estes sÓo
Urim e Tumim. NÓo sabia que eles existiam nesta parte do mundo.
Foi o presente de um rei disse o rapaz.
O estrangeiro ficou mudo. Depois enfiou a mÓo no bolso e retirou,
tremendo, duas pedras iguais.
VocÚ falou em um rei disse.
E vocÚ nÓo acredita que os reis conversem com pastores disse o
rapaz, desta vez querendo encerrar a conversa.
Ao contrÑrio. Os pastores foram os primeiros a reconhecer um rei que
o resto do mundo recusou-se a conhecer. Por isso Ù muito provÑvel que os
reis conversem com pastores.
E completou, com medo que o rapaz nÓo estivesse entendendo:
EstÑ na BÝblia. No mesmo livro que me ensinou a fazer este Urim e
este Tumim. Estas pedras eram a ênica forma de adivinha×Óo permitida por
Deus. Os sacerdotes as carregavam num peitoral de ouro.
O rapaz ficou contente de estar naquele armazÙm.
Talvez isto seja um sinal disse o InglÚs, como quem pensa alto.
Quem lhe falou em sinais? o interesse do rapaz crescia a cada
momento.
Tudo na vida sÓo sinais disse o InglÚs, desta vez fechando a
revista que estava lendo. O Universo Ù feito por uma lÝngua que todo mundo
entende, mas que jÑ se esqueceu. Estou procurando esta Linguagem Universal,
alÙm de outras coisas.
"Por isso estou aqui. Porque tenho que encontrar um homem que conhece
esta Linguagem Universal. Um Alquimista."
A conversa foi interrompida pelo chefe do armazÙm.
VocÚs estÓo com sorte disse o Ñrabe gordo. Sai hoje Ð tarde uma
caravana para Al-Fayoum.
Mas eu vou ao Egito disse o rapaz.
Al-Fayoum Ù no Egito disse o dono.
Que tipo de Ñrabe vocÚ Ù?
O rapaz disse que era espanhol. O InglÚs ficou satisfeito: mesmo
vestido como Ñrabe, o rapaz pelo menos era europeu.
Ele chama de "sorte" os sinais disse o InglÚs, depois que o gordo
Ñrabe saiu. Se eu pudesse, escreveria uma gigantesca enciclopÙdia sobre as
palavras "sorte" e "coincidÚncia". ¹ com estas palavras que se escreve a
Linguagem Universal.
Depois comentou com o rapaz que nÓo havia sido "coincidÚncia"
encontrÑ-lo com o Urim e o Tumim na mÓo. Perguntou se ele tambÙm estava indo
em busca do Alquimista.
Estou indo em busca de um tesouro disse o rapaz, e arrependeu-se
imediatamente. Mas o InglÚs pareceu nÓo dar importÒncia.
De certa forma, eu tambÙm estou, disse.
E nem sei o que quer dizer Alquimia completou o rapaz, quando o
dono do armazÙm come×ou a chamÑ-los para fora.
Eu sou o LÝder da Caravana disse um senhor de barba longa e olhos
escuros. Tenho poder de vida e de morte sobre cada pessoa que carrego.
Porque o deserto Ù uma mulher caprichosa, e Ðs vezes deixa os homens loucos.
Haviam quase duzentas pessoas, e o dobro de animais. Eram camelos,
cavalos, burros, aves. O InglÚs tinha vÑrias malas, cheias de livros. Haviam
mulheres, crian×as, e vÑrios homens com espadas na cintura e longas
espingardas nos ombros. Um imenso burburinho enchia o local, e o LÝder teve
que repetir vÑrias vezes suas palavras para que todos entendessem.
HÑ vÑrios homens e deuses diferentes no cora×Óo destes homens. Mas
meu ênico Deus Ù Allah, e por ele eu juro que farei o possÝvel e o melhor
para vencer mais uma vez o deserto. Agora quero que cada um de vocÚs jure
pelo Deus em que acredita, no fundo
do seu cora×Óo, de que irÑ me obedecer em qualquer circunstÒncia. No
deserto, a desobediÚncia significa a morte.
Um murmêrio correu baixo por todas as pessoas. Estavam jurando em voz
baixa diante de seu Deus. O rapaz jurou por Jesus Cristo. O InglÚs ficou em
silÚncio. O murmêrio se estendeu um tempo maior do que uma simples jura; as
pessoas tambÙm estavam pedindo prote×Óo aos cÙus.
Ouviu-se um longo toque de clarim, e cada um montou em seu animal. O
rapaz e o InglÚs haviam comprado camelos, e subiram com uma certa
dificuldade. O rapaz ficou com pena do camelo do InglÚs: estava carregado
com as pesadas sacolas de livros.
NÓo existem coincidÚncias disse o InglÚs, tentando continuar a
conversa que haviam iniciado no armazÙm. Foi um amigo que me trouxe atÙ
aqui, porque conhecia um Ñrabe, que...
Mas a caravana come×ou a andar, e ficou impossÝvel escutar o que o
InglÚs estava dizendo. Entretanto, o rapaz sabia exatamente do que se
tratava: a cadeia misteriosa que vai unindo uma coisa com a outra, que o
tinha levado a ser pastor, a ter o mesmo sonho, e estar numa cidade perto da
±frica, e encontrar na pra×a um rei, e ser roubado para conhecer um mercador
de cristais, e...
"Quanto mais se chega perto do sonho, mais a Lenda Pessoal vai se
tornando a verdadeira razÓo de viver", pensou o rapaz.
A caravana come×ou a seguir em dire×Óo ao poente. Viajavam de manhÓ,
paravam quando o sol ficava mais forte, e seguiam de novo ao entardecer. O
rapaz conversava pouco com o InglÚs, que passava a maior parte do tempo
entretido pelos livros.
EntÓo, passou a observar em silÚncio a marcha de animais e homens pelo
deserto. Agora tudo era muito diferente do dia em que haviam partido:
naquele dia, confusÓo e gritos, choros e crian×as e relinchar de animais, se
misturavam com as ordens nervosas dos guias e dos comerciantes.
No deserto, porÙm, havia apenas o vento eterno, o silÚncio, e o casco
dos animais. Mesmo os guias conversavam pouco entre si.
"JÑ cruzei muitas vezes estas areias" disse um cameleiro certa noite.
"Mas o deserto Ù tÓo grande, os horizontes ficam tÓo longe, que fazem a
gente se sentir pequeno e permanecer em silÚncio".
O rapaz entendeu o que o cameleiro queria dizer, mesmo sem ter pisado
antes num deserto. Todas as vezes que olhava o mar ou o fogo, era capaz de
ficar horas em silÚncio, sem pensar em nada, mergulhado na imensidÓo e na
for×a dos elementos.
"Aprendi com ovelhas e aprendi com cristais", pensou ele. "Posso tambÙm
aprender com o deserto. Ele me parece mais velho e mais sÑbio".
O vento nÓo parava nunca. O rapaz lembrou-se do dia em que sentiu este
mesmo vento, sentado num forte em Tarifa. Talvez ele agora estivesse ro×ando
de leve pela lÓ de suas ovelhas, que seguiam em busca de alimento e Ñgua
pelos campos de Andaluzia.
"NÓo sÓo mais minhas ovelhas", disse para si mesmo, sem sentir
saudades. "Devem ter se acostumado a um novo pastor, e jÑ me esqueceram.
Isto Ù bom. Quem estÑ acostumado a viajar, como as ovelhas, sabe que Ù
sempre necessÑrio partir um dia".
Lembrou-se depois, da filha do comerciante, e teve certeza de que ela
jÑ havia casado. Quem sabe com um pipoqueiro, ou com um pastor que tambÙm
soubesse ler e contasse histãrias extraordinÑrias; afinal, ele nÓo devia ser
o ênico. Mas ficou impressionado com o seu pressentimento: talvez ele
estivesse aprendendo tambÙm esta histãria de Linguagem Universal, que sabe o
passado e o presente de todos os homens. "Pressentimentos", como sua mÓe
costumava dizer. O rapaz come×ou a entender que os pressentimentos eram os
rÑpidos mergulhos que a alma dava nesta corrente Universal de vida, onde a
histãria de todos os homens estÑ ligada entre si, e podemos saber tudo,
porque tudo estÑ escrito.
"Maktub", disse o rapaz, lembrando-se do Mercador de Cristais.
O deserto era Ðs vezes feito de areia, e Ðs vezes feito de pedra. Se a
caravana chegava em frente a uma pedra, ela a contornava; se estavam diante
de um rochedo, davam uma longa volta. Se a areia era fina demais para o
casco dos camelos, procuravam um lugar onde a areia fosse mais resistente.
°s vezes o chÓo estava coberto de sal, no lugar onde um lago devia haver
existido. Os animais entÓo se queixavam, e os cameleiros desciam e
desatolavam os animais. Depois colocavam as cargas nas prãprias costas,
passavam pelo chÓo trai×oeiro, e novamente carregavam os animais. Se um guia
ficava doente ou morria, os cameleiros lan×avam a sorte e escolhiam um novo
guia.
Mas tudo isto acontecia por uma ênica razÓo: nÓo importava quantas
voltas tivesse que dar, a caravana seguia sempre em dire×Óo a um mesmo
ponto. Depois de vencidos os obstÑculos, ela voltava de novo sua frente para
o astro que indicava a posi×Óo
do oÑsis. Quando as pessoas viam aquele astro brilhando no cÙu pela
manhÓ, sabiam que ele indicava um lugar com mulheres, Ñgua, tÒmaras e
palmeiras. Sã o InglÚs nÓo percebia aquilo: estava a maior parte do tempo
imerso na leitura dos seus livros.
O rapaz tambÙm tinha um livro, que havia tentado ler nos primeiros dias
de viagem. Mas achava muito mais interessante olhar a caravana e escutar o
vento. Assim que aprendeu a conhecer melhor seu camelo e a se afei×oar a
ele, jogou o livro fora. Era um peso desnecessÑrio, apesar do rapaz haver
criado a supersti×Óo de que toda vez que abria o livro, encontrava alguÙm
importante.
Terminou fazendo amizade com o cameleiro que viajava sempre ao seu
lado. De noite, quando paravam em volta das fogueiras, costumava contar suas
aventuras como pastor ao cameleiro.
Numa destas conversas o cameleiro come×ou a falar de sua vida.
Eu morava num lugar perto de El Cairum contou. Tinha minha horta,
meus filhos e uma vida que nÓo ia mudar atÙ o dia de minha morte. Num ano em
que a colheita foi melhor, seguimos todos para Meca, e eu cumpri a ênica
obriga×Óo que estava faltando na minha vida. Podia morrer em paz, e gostava
disto.
"Certo dia a terra come×ou a tremer, e o Nilo subiu alÙm do seu limite.
Aquilo que eu pensava que sã acontecia com os outros, terminou acontecendo
comigo. Meus vizinhos tiveram medo de perder suas oliveiras com a inunda×Óo;
minha mulher teve receio de que nossos filhos fossem levados pelas Ñguas. E
eu tive pavor de ver destruÝdo tudo que havia conquistado.
"Mas nÓo houve jeito. A terra ficou imprestÑvel e tive que arranjar
outro meio de vida.
Hoje sou cameleiro. Mas aÝ entendi a palavra de Allah: ninguÙm sente
medo do desconhecido, porque qualquer pessoa Ù capaz de conquistar tudo que
quer e necessita.
"Sã sentimos medo de perder aquilo que temos, sejam nossas vidas ou
nossas planta×åes. Mas este medo passa quando entendemos que nossa histãria
e a histãria do mundo foram escritas pela mesma MÓo".
°s vezes as caravanas se encontravam durante a noite. Sempre uma delas
tinha o que a outra estava precisando como se realmente tudo fosse escrito
por uma sã MÓo. Os cameleiros trocavam informa×åes sobre as tempestades de
vento, e se reuniam em torno das fogueiras, contando as histãrias do
deserto.
Outras vezes chegavam misteriosos homens encapu×ados; eram beduÝnos que
espionavam a rota seguida pelas caravanas. Davam notÝcias de assaltantes e
tribos bÑrbaras. Chegavam no silÚncio e partiam no silÚncio, com as roupas
negras deixando apenas os olhos de fora.
Numa destas noites o cameleiro veio atÙ a fogueira onde o rapaz e o
InglÚs estavam sentados.
HÑ rumores de guerra entre os clÓs disse o cameleiro.
Os trÚs ficaram quietos. O rapaz notou que havia medo no ar, mesmo que
ninguÙm tivesse dito nenhuma palavra. Mais uma vez estava percebendo a
linguagem sem palavras, a Linguagem Universal.
Depois de certo tempo, o InglÚs perguntou se havia perigo.
Quem entra no deserto nÓo pode voltar disse o cameleiro. Quando
nÓo se pode voltar, sã devemos ficar preocupado com a melhor maneira de
seguir em frente. O resto Ù por conta de Allah, inclusive o perigo.
E concluiu dizendo a misteriosa palavra: "Maktub".
VocÚ precisa prestar mais aten×Óo Ðs caravanas disse o rapaz ao
InglÚs, depois que o cameleiro saiu. Elas dÓo muitas voltas, mas rumam
sempre para o mesmo lugar.
E vocÚ devia ler mais sobre o mundo respondeu o InglÚs. Os livros
sÓo iguais Ðs caravanas.
O imenso grupo de homens e animais come×ou a andar mais rÑpido. AlÙm do
silÚncio durante o dia, as noites quando as pessoas costumavam se reunir
para conversar em torno das fogueiras come×aram a ficar tambÙm
silenciosas. Certo dia o LÝder da Caravana decidiu que nem fogueiras podiam
mais ser acesas, para nÓo chamar a aten×Óo sobre a caravana.
Os viajantes passaram a fazer uma roda de animais, e dormiam todos
juntos no centro, tentando se proteger do frio noturno. O LÝder passou a
instalar sentinelas armadas em volta do grupo.
Numa daquelas noites o InglÚs nÓo conseguiu dormir. Chamou o rapaz e
come×aram a passear pelas dunas em volta do acampamento. Era uma noite de
lua cheia, e o rapaz contou ao InglÚs toda a sua histãria.
O InglÚs ficou fascinado com a loja que havia progredido depois que o
rapaz come×ou a trabalhar nela.
Este Ù o princÝpio que move todas as coisas disse. Na Alquimia Ù
chamado de Alma do Mundo. Quando vocÚ deseja algo de todo o seu cora×Óo,
vocÚ estÑ mais prãximo da Alma do Mundo. Ela Ù sempre uma for×a positiva.
Disse tambÙm que isto nÓo era apenas um dom dos homens: todas as coisas
sobre a face da Terra tinham tambÙm uma alma, nÓo importando se era mineral,
vegetal, animal, ou apenas um simples pensamento.
Tudo que estÑ sob e sobre a face da Terra se transforma sempre,
porque a Terra estÑ viva; e tem uma alma. Somos parte desta Alma, e
raramente sabemos que ela sempre trabalha em nosso favor. Mas vocÚ deve
entender que, na loja dos cristais, atÙ mesmo os vasos estavam colaborando
para o seu sucesso.
O rapaz ficou em silÚncio por algum tempo, olhando a lua e a areia
branca.
Tenho visto a caravana caminhando atravÙs do deserto disse, por
fim. Ela e o deserto falam a mesma lÝngua, e por isso ele permite que ela
o atravesse. Vai testar cada passo seu, para ver se estÑ em perfeita
sintonia com ele; e se estiver, ela chegarÑ atÙ o oÑsis.
"Se um de nãs chegasse aqui com muita coragem, mas sem entender esta
lÝngua, ia morrer no primeiro dia."
Continuaram olhando a lua, juntos.
Esta Ù a magia dos sinais continuou o rapaz. Tenho visto como os
guias lÚem os sinais do deserto, e como a alma da caravana conversa com a
alma do deserto.
Depois de algum tempo, foi a vez do InglÚs falar.
Preciso prestar mais aten×Óo Ð caravana disse, por fim.
E eu preciso ler seus livros falou o rapaz.
Eram livros estranhos. Falavam em mercêrio, sal, dragåes e reis, mas
ele nÓo conseguia entender nada. Entretanto, havia uma idÙia que parecia
repetida em quase todos os livros: todas as coisas eram manifesta×åes de uma
coisa sã.
Num dos livros ele descobriu que o texto mais importante da Alquimia
tinha apenas poucas linhas, e havia sido escrito numa simples esmeralda.
¹ a TÑboa da Esmeralda falou o InglÚs, orgulhoso por ensinar alguma
coisa ao rapaz.
E entÓo, para que tantos livros?
Para entender estas linhas respondeu o InglÚs, sem estar muito
convencido da prãpria resposta.
O livro que mais interessou ao rapaz contava a histãria dos alquimistas
famosos. Eram homens que tinham dedicado sua vida inteira a purificar metais
nos laboratãrios; acreditavam que se um metal fosse cozinhado durante muitos
e muitos anos, terminaria se libertando de todas as suas propriedades
individuais, e em seu lugar sobrava apenas a Alma do Mundo. Esta Coisa Ênica
permitia que os alquimistas entendessem qualquer coisa sobre a face da
Terra, porque ela era a linguagem pela qual as coisas se comunicavam. Eles
chamavam esta descoberta de Grande Obra que era composta de uma parte
lÝquida e uma parte sãlida.
NÓo basta observar os homens e os sinais, para se descobrir esta
linguagem? perguntou o rapaz.
VocÚ tem mania de simplificar tudo respondeu o InglÚs irritado. A
Alquimia Ù um trabalho sÙrio. Precisa que cada passo seja seguido exatamente
como os mestres ensinaram.
O rapaz descobriu que a parte lÝquida da Grande Obra era chamada de
Elixir da Longa Vida, e curava todas as doen×as, alÙm de evitar que o
alquimista ficasse velho. E a parte sãlida era camada de Pedra Filosofal.
NÓo Ù fÑcil descobrir a Pedra Filosofal disse o InglÚs. Os
alquimistas ficavam muitos anos nos laboratãrios, olhando aquele fogo que
purificava os metais. Olhavam tanto o fogo, que aos poucos suas cabe×as iam
perdendo todas as vaidades do mundo. EntÓo, um belo dia, descobriam que a
purifica×Óo dos metais havia terminado por purificar a eles mesmos.
O rapaz se lembrou do Mercador de Cristais. Ele havia falado que tinha
sido bom limpar seus vasos, para que ambos se libertassem tambÙm dos maus
pensamentos. Estava cada vez mais convencido de que a Alquimia poderia ser
aprendida na vida diÑria.
AlÙm disso falou o InglÚs a Pedra Filosofal tem uma propriedade
fascinante. Uma pequena lasca dela Ù capaz de transformar grandes
quantidades de metal em ouro.
A partir desta frase, o rapaz ficou interessadÝssimo em Alquimia.
Pensava que, com um pouco de paciÚncia, poderia transformar tudo em ouro.
Leu a vida de vÑrias pessoas que tinham conseguido: Helvetius, Elias,
Fulcanelli, Geber. Eram histãrias fascinantes: todos estavam vivendo atÙ o
fim sua Lenda Pessoal. Viajavam, encontravam sÑbios, faziam milagres na
frente dos incrÙdulos, possuÝam a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida.
Mas quando queria aprender a maneira de conseguir a Grande Obra, ficava
completamente perdido. Eram apenas desenhos, instru×åes em cãdigo, textos
obscuros.
Por que eles falam tÓo difÝcil? perguntou certa noite ao InglÚs.
Notou tambÙm que o InglÚs andava meio aborrecido e sentindo falta de seus
livros.
Para que sã os que tÚm responsabilidade de entender que entendam
disse ele. Imagine se todo mundo saÝsse transformando chumbo em ouro.
Daqui a pouco o ouro nÓo ia valer nada.
"Sã os persistentes, sã aqueles que pesquisam muito, Ù que conseguem a
Grande Obra. Por isso estou no meio deste deserto. Para encontrar um
verdadeiro Alquimista, que me ajude a decifrar os cãdigos".
Quando foram escritos estes livros? perguntou o rapaz.
HÑ muitos sÙculos atrÑs.
Naquela Ùpoca nÓo havia imprensa insistiu o rapaz. NÓo havia jeito
de todo mundo tomar conhecimento da Alquimia. Por que esta linguagem tÓo
estranha, cheia de desenhos?
O InglÚs nÓo respondeu nada. Disse que hÑ vÑrios dias estava prestando
aten×Óo Ð caravana, e que nÓo conseguia descobrir nada de novo. A ênica
coisa que tinha notado era que os comentÑrios sobre a guerra aumentavam cada
vez mais.
Um belo dia o rapaz entregou de volta os livros ao InglÚs.
EntÓo, aprendeu muita coisa? perguntou o outro, cheio de
expectativa. Estava precisando de alguÙm com quem pudesse conversar para
esquecer o medo da guerra.
Aprendi que o mundo tem uma Alma, e quem entender esta Alma,
entenderÑ a linguagem das coisas. Aprendi que muitos alquimistas viveram sua
Lenda Pessoal e terminaram descobrindo a Alma do Mundo, a Pedra Filosofal, o
Elixir.
"Mas, sobretudo, aprendi que estas coisas sÓo tÓo simples que podem ser
escritas numa esmeralda".
O InglÚs ficou decepcionado. Os anos de estudo, os sÝmbolos mÑgicos, as
palavras difÝceis, os aparelhos de laboratãrio, nada disso havia
impressionado o rapaz. "Ele deve ter uma alma primitiva demais para
compreender isto", apensou.
Pegou seus livros e guardou nos sacos que pendiam do camelo.
Volte para sua caravana disse. Ela tampouco me ensinou qualquer
coisa.
O rapaz voltou a contemplar o silÚncio do deserto e a areia levantada
pelos animais. "Cada um tem sua maneira de aprender", repetia consigo mesmo.
"A maneira dele nÓo Ù a minha, e minha maneira nÓo Ù a dele. Mas ambos
estamos em busca de nossa Lenda Pessoal, e eu o respeito por isto".
A caravana come×ou a viajar dia e noite . A toda hora apareciam os
mensageiros encapu×ados, e o cameleiro que haviam se tornado amigo do
rapaz explicou que a guerra entre os clÓs havia come×ado. Teriam muita
sorte se conseguissem chegar ao oÑsis.
Os animais estavam exaustos, e os homens cada vez mais silenciosos. O
silÚncio era mais terrÝvel na parte da noite, quando um simples relincho de
camelo que antes nÓo passava de um relincho de camelo agora assustava a
todos e podia ser um sinal de invasÓo.
O cameleiro, porÙm, parecia nÓo se impressionar muito com a amea×a de
guerra.
Estou vivo disse ao rapaz, enquanto comia um prato de tÒmaras na
noite sem fogueiras e sem lua. Enquanto estou comendo, nÓo fa×o nada alÙm
de comer. Se estiver caminhando, apenas caminharei. Se tiver que lutar, serÑ
um dia tÓo bom para morrer como qualquer outro.
"Porque nÓo vivo nem no meu passado, nem no meu futuro. Tenho apenas o
presente, e ele Ù o que me interessa. Se vocÚ puder permanecer sempre no
presente, entÓo serÑ um homem feliz. Vai perceber que no deserto existe
vida, que o cÙu tem estrelas, e que os guerreiros lutam porque isto faz
parte da ra×a humana. A vida serÑ uma festa, um grande festival, porque ela
Ù sempre e apenas o momento que estamos vivendo."
Duas noites depois, quando se preparava para dormir, o rapaz olhou em
dire×Óo ao astro que seguiam durante a noite. Achou que o horizonte estava
um pouco mais baixo, porque em cima do deserto haviam centenas de estrelas.
¹ o oÑsis disse o cameleiro.
E porque nÓo chegamos lÑ imediatamente?
Porque precisamos dormir.
O rapaz abriu os olhos quando o sol come×ava a surgir no horizonte.
Diante dele, onde as pequenas estrelas haviam estado durante a noite,
estendia-se uma fila interminÑvel de tamareiras, cobrindo toda a frente do
deserto.
Conseguimos! disse o InglÚs, que tambÙm tinha acabado de acordar.
O rapaz, porÙm, mantinha-se calado. Aprendera o silÚncio do deserto, e
contentava-se em olhar as tamareiras na sua frente. Ainda tinha que caminhar
muito para chegar atÙ as PirÒmides, e algum dia aquela manhÓ seria apenas
uma lembran×a. Mas agora ela era o momento presente, a festa da qual havia
falado o cameleiro, e ele estava procurando vivÚ-lo com as li×åes do seu
passado e os sonhos do seu futuro. Um dia, aquela visÓo de milhares de
tamareiras seria apenas uma lembran×a. Mas para ele, neste momento,
significava sombra, Ñgua, e um refêgio para a guerra. Assim como um relincho
de camelo podia se transformar em perigo, uma fila de tamareiras podia
significar um milagre.
"O mundo fala muitas linguagens", pensou o rapaz.
"Quando os tempos andam depressa, as caravanas correm tambÙm", pensou o
Alquimista, enquanto via chegar centenas de pessoas e animais ao OÑsis. As
pessoas gritavam atrÑs dos recÙm-chegados, a poeira encobria o sol do
deserto, e as crian×as pulavam de excita×Óo ao ver os estranhos. O
Alquimista percebeu os chefes tribais se aproximarem do LÝder da Caravana, e
conversarem longamente entre si.
Mas nada daquilo interessava ao Alquimista. JÑ havia visto muita gente
chegar e partir, enquanto o OÑsis e o deserto permaneciam o mesmo. Tinha
visto reis e mendigos pisando aquelas areias que sempre mudavam de forma por
causa do vento, mas que eram as mesmas que havia conhecido quando crian×a.
Mesmo assim, nÓo conseguia conter no fundo do seu cora×Óo um pouco da
alegria de vida que todo viajante experimentava quando, depois de terra
amarela e cÙu azul, o verde das tamareiras aparecia diante de seus olhos.
"Talvez Deus tenha criado o deserto para que o homem pudesse sorrir com as
tamareiras", pensou ele.
Depois resolveu concentrar-se em assuntos mais prÑticos. Sabia que
naquela caravana vinha o homem a quem devia ensinar parte de seus segredos.
Os sinais lhe haviam contado isto. Ainda nÓo conhecia este homem, mas seus
olhos experimentados o reconheceriam quando o visse. Esperava que fosse
alguÙm tÓo capaz como seu aprendiz anterior.
"NÓo sei porque estas coisas tem que ser transmitidas de boca para
ouvido", pensava ele. NÓo era exatamente porque as coisas eram secretas;
Deus revelava prodigamente seus segredos a todas as criaturas.
Ele sã conhecia uma explica×Óo para este fato: as coisas tinham que ser
transmitidas assim porque elas seriam feitas de Vida Pura, e este tipo de
vida dificilmente consegue ser capturado em pinturas ou palavras.
Porque as pessoas se fascinam com pinturas e palavras, e terminam se
esquecendo da Linguagem do Mundo.
Os recÙm-chegados foram trazidos imediatamente Ð presen×a dos chefes
tribais de Al-Fayoum. O rapaz nÓo podia acreditar no que estava vendo: ao
invÙs de um po×o cercado de algumas palmeiras como havia lido certa vez
num livro de histãria o oÑsis era muito maior do que vÑrias aldeias da
Espanha. Tinha trezentos po×os, cinqìenta mil tamareiras, e muitas tendas
coloridas espalhadas entre elas.
Parece as Mil e Uma Noites disse o InglÚs, impaciente para
encontrar-se logo com o Alquimista.
Foram cercados logo pelas crian×as, que olhavam curiosas os animais, os
camelos, e as pessoas que chegavam. Os homens queriam saber se tinham visto
algum combate, e as mulheres disputavam entre si os tecidos e pedras que os
mercadores haviam trazido. O silÚncio do deserto parecia um sonho distante;
as pessoas falavam sem parar, riam e gritavam, como se tivessem saÝdo de um
mundo espiritual, para estarem de novo entre os homens. Estavam contentes e
felizes.
Apesar das precau×åes do dia anterior, o cameleiro explicou ao rapaz
que os oÑsis no deserto eram sempre considerados terrenos neutros, porque a
maior parte dos habitantes eram mulheres e crian×as. E haviam oÑsis tanto de
um lado como de outro; assim, os guerreiros iam lutar do deserto, e deixavam
os oÑsis como cidades de refêgio.
O LÝder da Caravana reuniu todos com uma certa dificuldade, e come×ou a
dar as instru×åes. Iam permanecer ali atÙ que a guerra entre os clÓs tivesse
terminada. Como eram visitantes, deviam compartilhar as tendas com
habitantes do oÑsis, que lhes dariam seus melhores lugares. Era a
hospitalidade da Lei. Depois pediu que todos, inclusive seus prãprios
sentinelas, entregassem as armas aos homens indicados pelos chefes tribais.
SÓo as regras da Guerra explicou o LÝder da Caravana. Desta
maneira, os oÑsis nÓo poderiam abrigar exÙrcitos ou guerreiros.
Para surpresa do rapaz, o InglÚs tirou de seu casaco um revãlver
cromado e entregou ao homem que recolhia as armas.
Para que um revãlver? perguntou.
Para aprender a confiar nos homens respondeu o InglÚs. Estava
contente por haver chegado ao final de sua busca.
O rapaz, porÙm, pensava em seu tesouro. Quanto mais perto ele ficava de
seu sonho, mais as coisas se tornavam difÝceis. NÓo funcionava mais aquilo
que o velho rei havia chamado de "sorte de principiante". O que funcionava,
sabia ele, era o teste da persistÚncia e da coragem de quem busca sua Lenda
Pessoal. Por isso ele nÓo podia se apressar, nem ficar impaciente. Se agisse
assim, ia terminar sem ver os sinais que Deus havia posto no seu caminho.
"Deus colocou no meu caminho", pensou o rapaz, surpreso consigo mesmo.
AtÙ aquele momento considerava os sinais como uma coisa do mundo. Algo como
comer ou dormir, algo como procurar um amor, ou conseguir um emprego. Nunca
tinha pensado que esta era uma linguagem que Deus estava usando para
mostrar-lhe o que devia fazer.
"NÓo fique impaciente", repetiu o rapaz para si mesmo. "Como disse o
cameleiro, coma na hora de comer. E caminhe na hora de caminhar".
No primeiro dia todos dormiram de cansa×o, inclusive o InglÚs. O rapaz
havia ficado longe dele, numa tenda com outros cinco rapazes de idade quase
igual a sua. Eram gente do deserto, e queriam saber histãrias das grandes
cidades.
O rapaz falou de sua vida como pastor, e ia come×ar a contar sua
experiÚncia na loja de cristais, quando o InglÚs entrou na tenda.
Procurei-o a manhÓ inteira disse, enquanto carregava o rapaz para
fora. Preciso que me ajude a descobrir onde mora o Alquimista.
Primeiro os dois tentaram encontrar sozinhos. Um Alquimista devia viver
de maneira diferente das outras pessoas do oÑsis, e em sua tenda era muito
provÑvel que um forno estivesse sempre aceso. Andaram bastante, atÙ ficarem
convencidos que o oÑsis era muito maior do que podiam imaginar, e com muitas
centenas de tendas.
Perdemos quase o dia inteiro disse o InglÚs, sentando-se com o
rapaz perto de um dos po×os do oÑsis.
Talvez seja melhor perguntarmos disse o rapaz.
O InglÚs nÓo queria contar aos outros sua presen×a no OÑsis, e ficou
bastante indeciso. Mas acabou concordando e pediu ao rapaz, que falava
melhor o Ñrabe, para fazer isto. O rapaz se aproximou de uma mulher que
havia chegado no po×o para encher de Ñgua um saco de pele de carneiro.
Boa tarde, senhora. Gostaria de saber onde vive um Alquimista neste
oÑsis perguntou o rapaz.
A mulher disse que jamais havia ouvido falar disso, e foi imediatamente
embora. Antes, porÙm, avisou ao rapaz que nÓo deveria conversar com mulheres
vestidas de preto, porque eram mulheres casadas. Ele tinha que respeitar a
Tradi×Óo.
O InglÚs ficou decepcionadÝssimo. Tinha feito toda a sua viagem por
nada. O rapaz tambÙm ficou triste; seu companheiro tambÙm estava em busca de
sua Lenda Pessoal. E quando alguÙm faz isto, o Universo todo se esfor×a para
que a pessoa consiga o que deseja, dissera o velho rei. Ele nÓo podia estar
enganado.
Eu nunca tinha ouvido falar antes de alquimistas disse o rapaz.
SenÓo tentaria ajudÑ-lo.
Alguma coisa brilhou nos olhos do InglÚs.
¹ isto! Talvez ninguÙm aqui saiba o que Ù um alquimista! Pergunte
pelo homem que cura todas as doen×as da aldeia!
VÑrias mulheres vestidas de preto vieram buscar Ñgua no po×o, e o rapaz
nÓo conversou com elas, por mais que o InglÚs insistisse. AtÙ que um homem
se aproximou.
Conhece alguÙm que cura as doen×as da aldeia? perguntou o rapaz.
Allah cura todas as doen×as, disse o homem, visivelmente apavorado
com os estrangeiros. VocÚs estÓo em busca de bruxos.
E depois de dizer alguns versÝculos do AlcorÓo, seguiu seu caminho.
Um outro homem se aproximou. Era mais velho, e trazia apenas um pequeno
balde. O rapaz repetiu a pergunta.
Por que vocÚs querem conhecer este tipo de homem? respondeu o Ñrabe
com outra pergunta.
Porque meu amigo viajou muitos meses para encontrÑ-lo disse o
rapaz.
Se este homem existe no oÑsis, deve ser muito poderoso disse o
velho, depois de pensar por alguns instantes. Nem os chefes tribais
conseguiriam vÚ-lo quando precisam. Sã quando ele assim determinasse.
"Esperem o final da guerra. E entÓo partam com a caravana. NÓo procurem
entrar na vida do oÑsis", concluiu, se afastando.
Mas o InglÚs ficou exultante. Estavam na pista certa.
Finalmente surgiu uma mo×a que nÓo estava vestida de negro. Trazia um
cÒntaro no ombro, e a cabe×a coberta com um vÙu, mas tinha o rosto
descoberto. O rapaz aproximou-se para perguntar sobre o Alquimista.
EntÓo foi como se o tempo parasse, e a Alma do Mundo surgisse com toda
a for×a diante do rapaz. Quando ele olhou seus olhos negros, seus lÑbios
indecisos entre um sorriso e o silÚncio, ele entendeu a parte mais
importante e mais sÑbia da Linguagem que o mundo falava, e que todas as
pessoas da terra eram capazes de entender em seus cora×åes. E isto era
chamado de Amor, uma coisa mais antiga que os homens e que o prãprio
deserto, e que no entanto ressurgia sempre com a mesma for×a onde quer que
dois pares de olhos se cruzassem como se cruzaram aqueles dois pares de
olhos diante de um po×o. Os lÑbios finalmente resolveram dar um sorriso, e
aquilo era um sinal, o sinal que ele esperou sem saber durante tanto tempo
em sua vida, que tinha buscado nas ovelhas e nos livros, nos cristais e no
silÚncio do deserto.
Ali estava a pura linguagem do mundo, sem explica×åes, porque o
Universo nÓo precisava de explica×åes para continuar seu caminho no espa×o
sem fim. Tudo o que o rapaz entendia naquele momento era que estava diante
da mulher de sua vida, e sem nenhuma necessidade de palavras, ela devia
saber disto tambÙm. Tinha mais certeza disto do que de qualquer coisa no
mundo, mesmo que seus pais, e os pais de seus pais dissessem que era preciso
namorar, noivar, conhecer a pessoa e ter dinheiro antes de se casar. Quem
dizia isto talvez jamais tivesse conhecido a linguagem universal, porque
quando se mergulha nela, Ù fÑcil entender que sempre existe no mundo uma
pessoa que espera a outra, seja no meio de um deserto, seja no meio das
grandes cidades. E quando estas pessoas se cruzam, e seus olhos se
encontram, todo o passado e todo o futuro perde qualquer importÒncia, e sã
existe aquele momento, e aquela certeza incrÝvel de que todas as coisas
debaixo do sol foram escritas pela mesma MÓo. A MÓo que desperta o Amor, e
que fez uma alma gÚmea para cada pessoa que trabalha, descansa e busca
tesouros debaixo do sol. Porque sem isto nÓo haveria qualquer sentido para
os sonhos da ra×a humana.
"Maktub", pensou o rapaz.
O InglÚs levantou-se de onde estava sentado e sacudiu o rapaz.
Vamos, pergunte a ela!
O rapaz se aproximou da mo×a. Ela tornou a sorrir. Ele sorriu tambÙm.
Como vocÚ se chama? perguntou.
Me chamo FÑtima disse a mo×a, olhando para o chÓo.
¹ um nome que algumas mulheres tem na terra de onde venho.
¹ o nome da filha do Profeta disse FÑtima. Os guerreiros os
levaram para lÑ.
A mo×a delicada falava de guerreiros com orgulho. Ao seu lado o InglÚs
insistia, e o rapaz perguntou pelo homem que curava todas as doen×as.
¹ um homem que conhece os segredos do mundo. Conversa com os djins do
deserto ela falou.
Os djins eram os demänios. E a mo×a apontou para o sul, para o lugar
onde aquele estranho homem morava.
Depois encheu seu cÒntaro e partiu. O InglÚs partiu tambÙm, em busca do
Alquimista. E o rapaz ficou por muito tempo sentado ao lado do po×o,
entendendo que algum dia o Levante havia deixado em seu rosto o perfume
daquela mulher, e que jÑ a amava antes mesmo de saber que ela existia, e que
seu amor por ela faria com que encontrasse todos os tesouros do mundo.
No dia seguinte o rapaz voltou para o po×o, para esperar a mo×a. Para
sua surpresa, encontrou lÑ o InglÚs, olhando pela primeira vez o deserto.
Esperei a tarde e a noite disse o InglÚs. Ele chegou junto com as
primeiras estrelas. Eu lhe contei o que estava procurando. EntÓo ele me
perguntou se jÑ havia transformado chumbo em ouro. Eu disse que era isto que
queria aprender.
"Ele me mandou tentar. Foi tudo que me disse: vÑ tentar".
O rapaz ficou quieto. O InglÚs havia viajado tanto para ouvir o que jÑ
sabia. AÝ ele se lembrou de que tinha dado seis ovelhas ao velho rei pela
mesma razÓo.
EntÓo tente disse para o InglÚs.
¹ isto que vou fazer. E vou come×ar agora.
Pouco depois que o InglÚs saiu, FÑtima chegou para apanhar Ñgua com seu
cÒntaro.
Vim dizer-lhe uma coisa simples falou o rapaz. Eu quero que vocÚ
seja minha mulher. Eu te amo.
A mo×a deixou que seu cÒntaro derramasse a Ñgua.
Vou esperÑ-la todos os dias aqui. Cruzei o deserto em busca de um
tesouro que se encontra perto das pirÒmides. A guerra foi para mim uma
maldi×Óo. Agora ela Ù uma bÚn×Óo, porque me deixa perto de vocÚ.
A guerra um dia vai acabar disse a mo×a.
O rapaz olhou as tamareiras do oÑsis. Havia sido pastor. E ali existiam
muitas ovelhas. FÑtima era mais importante que o tesouro.
Os guerreiros buscam seus tesouros disse a mo×a, como se estivesse
adivinhando o pensamento do rapaz. E as mulheres do deserto tÚm orgulho
dos seus guerreiros.
Depois tornou a encher seu cÒntaro, e foi embora.
Todos os dias o rapaz ia para o po×o esperar FÑtima. Contou-lhe de sua
vida de pastor, do rei, da loja de cristais. Ficaram amigos, e com exce×Óo
quinze minutos que passava com ela, o resto do dia custava infinitamente a
passar. Quando jÑ estava hÑ quase um mÚs no oÑsis, o LÝder da Caravana
convocou a todos para uma reuniÓo.
NÓo sabemos quando a guerra vai acabar, e nÓo podemos seguir viagem
disse.
Os combates devem durar por muito tempo, talvez muitos anos. Existem
guerreiros fortes e valentes de ambos os lados, e existe a honra de combater
em ambos os exÙrcitos. NÓo Ù uma guerra entre bons e maus. ¹ uma guerra
entre for×as que lutam pelo mesmo poder, e quando este tipo de batalha
come×a, demora mais que as outras porque Allah estÑ dos dois lados.
As pessoas se dispersaram. O rapaz tornou a encontrar-se com FÑtima
aquela tarde, e contou da reuniÓo.
No segundo dia que nos encontramos disse FÑtima vocÚ me falou do
seu amor. Depois me ensinou coisas belas, como a Linguagem e a Alma do
Mundo. Tudo isto me faz aos poucos ser parte de vocÚ.
O rapaz ouvia sua voz, e achava mais bela que o barulho do vento nas
folhas das tamareiras.
Faz muito tempo, que estive aqui neste po×o esperando por vocÚ. NÓo
consigo me lembrar do meu passado, da Tradi×Óo, da maneira que os homens
esperam que se comportem as mulheres do deserto. Desde crian×a eu sonhava
que o deserto ia me trazer o maior presente de minha vida. Este presente
chegou afinal, e Ù vocÚ.
O rapaz pensou em tocar sua mÓo. Mas FÑtima segurava as al×as do
cÒntaro.
VocÚ me falou dos seus sonhos, do velho rei, e do tesouro. VocÚ me
falou dos sinais. EntÓo nÓo tenho medo de nada, porque foram estes sinais
que me trouxeram vocÚ. E eu sou parte do seu sonho, da sua Lenda Pessoal,
como vocÚ costuma chamar.
"Por isso quero que siga em dire×Óo ao que veio buscar. Se tiver que
esperar o final da guerra, muito bem. Mas se tiver que seguir antes, vÑ em
dire×Óo Ð sua lenda. As dunas mudam com o vento, mas o deserto permanece no
mesmo. Assim serÑ com nosso amor.
"Maktub" disse. "Se eu for parte de sua Lenda, vocÚ voltarÑ um dia".
O rapaz saiu triste do encontro com FÑtima. Ele se lembrava de muita
gente que havia conhecido. Os pastores casados tinham muita dificuldade em
convencer suas esposas de que precisavam andar pelos campos. O amor exigia
estar junto da pessoa amada.
No dia seguinte ele contou tudo isto Ð FÑtima.
O deserto leva nossos homens e nem sempre os traz de volta disse
ela. EntÓo nos acostumamos com isto. E eles passam a existir nas nuvens
sem chuva, nos animais que se escondem entre as pedras, na Ñgua que sai
generosa da terra. Eles passam a fazer parte de tudo, passam a ser a Alma do
Mundo.
"Alguns retornam. E entÓo todas as outras mulheres ficam felizes,
porque os homens que elas esperam tambÙm podem voltar um dia. Antes eu
olhava estas mulheres, e invejava sua felicidade. Agora vou ter tambÙm uma
pessoa para esperar.
"Sou uma mulher do deserto e me orgulho disto. Quero que meu homem
tambÙm caminhe livre como o vento que move as dunas. Quero tambÙm poder ver
meu homem nas nuvens, nos animais e na Ñgua."
O rapaz foi procurar o InglÚs. Queria contar-lhe sobre FÑtima. Ficou
surpreso quando viu que o InglÚs havia construÝdo um pequeno forno ao lado
de sua tenda. Era um forno estranho, com um frasco transparente em cima. O
InglÚs alimentava o fogo com lenha, e olhava o deserto. Seus olhos pareciam
ter mais brilho quando passava o tempo todo lendo livros.
Esta Ù a primeira fase do trabalho disse o InglÚs. Tenho que
separar o enxofre impuro. Para isto, nao posso ter medo de falhar. O meu
medo de falhar foi que me impediu de tentar a Grande Obra atÙ hoje. ¹ agora
que estou come×ando o que podia ter come×ado hÑ dez anos atrÑs. Mas me sinto
feliz de nÓo ter esperado vinte anos para isto.
E continuou a alimentar o fogo e a olhar o deserto. O rapaz ficou ao
seu lado por algum tempo, atÙ que o deserto come×ou a ficar rosado com a luz
do entardecer. EntÓo ele sentiu uma imensa vontade de ir atÙ lÑ, para ver se
o silÚncio conseguia responder suas perguntas.
Caminhou sem destino por algum tempo, mantendo as tamareiras do oÑsis
ao alcance de seus olhos. Escutava o vento, e sentia as pedras sob seus pÙs.
°s vezes encontrava alguma concha, e sabia que aquele deserto, num tempo
remoto, havia sido um grande mar. Depois sentou-se numa pedra e deixou-se
hipnotizar pelo horizonte que existia
na sua frente. NÓo conseguia entender o Amor sem o sentimento de posse;
mas FÑtima era uma mulher do deserto, e se alguÙm podia lhe ensinar isto,
era o deserto.
Ficou assim, sem pensar em nada, atÙ que pressentiu um movimento sobre
sua cabe×a. Olhando para o cÙu, viu que eram dois gaviåes, voando muito
alto.
O rapaz come×ou a olhar os gaviåes, e os desenhos que eles faziam no
cÙu. Parecia uma coisa desordenada, entretanto, tinham algum sentido para o
rapaz. Apenas nÓo conseguia compreender seu significado. Decidiu entÓo que
devia acompanhar com os olhos o movimento dos pÑssaros, e talvez pudesse ler
alguma coisa. Talvez o deserto pudesse lhe explicar o amor sem posse.
Come×ou a sentir sono. Seu cora×Óo pediu para que nÓo dormisse: ao
invÙs disto, devia se entregar. "Estava penetrando na Linguagem do Mundo, e
tudo nesta terra faz sentido, atÙ mesmo o väo de gaviåes", disse. E
aproveitou para agradecer pelo fato de estar cheio de amor por uma mulher.
"Quando se ama, as coisas fazem ainda mais sentido", pensou.
De repente, um gaviÓo deu um rÑpido mergulho no cÙu e atacou o outro.
Quando fez este movimento, o rapaz teve uma sêbita e rÑpida visÓo: um
exÙrcito, de espadas desembainhadas, entrando no oÑsis. A visÓo logo sumiu,
mas aquilo lhe deixou sobressaltado. Havia ouvido falar das miragens, e jÑ
havia visto algumas: eram desejos que se materializavam sobre a areia do
deserto. Entretanto, ele nÓo desejava um exÙrcito invadindo o oÑsis.
Pensou em esquecer aquilo e voltar Ð sua medita×Óo. Tentou novamente
concentrar-se no deserto cär-de-rosa e nas pedras. Mas alguma coisa em seu
cora×Óo nÓo o deixava quieto.
"Siga sempre os sinais", dissera o velho rei. E o rapaz pensou em
FÑtima. Lembrou-se do que havia visto, e pressentiu que estava prãximo de
acontecer.
Com muita dificuldade, saiu do transe em que havia entrado.
Levantou-se, e come×ou a caminhar em dire×Óo Ðs tamareiras. Mais uma vez
percebia as muitas linguagens das coisas: desta vez, o deserto era seguro, e
o oÑsis se transformara em perigo.
O cameleiro estava sentado aos pÙs de uma tamareira, tambÙm olhando o
pär-do-sol. Viu quando o rapaz surgiu por detrÑs de uma das dunas.
Um exÙrcito se aproxima disse. Tive uma visÓo.
O deserto enche de visåes o cora×Óo de um homem respondeu o
cameleiro.
Mas o rapaz lhe contou dos gaviåes: estava olhando seu väo quando tinha
mergulhado de repente na Alma do Mundo.
O cameleiro ficou quieto; entendia o que o rapaz estava falando. Sabia
que qualquer coisa na face da terra pode contar a histãria de todas as
coisas. Se abrisse um livro em qualquer pÑgina, ou olhasse as mÓos das
pessoas, ou cartas de baralho, ou väo dos pÑssaros, ou seja lÑ o que fosse,
qualquer pessoa iria encontrar um la×o com a coisa que estava vivendo. Na
verdade, nÓo eram as coisas que mostravam nada; eram as pessoas que, olhando
para as coisas, descobriam a maneira de penetrar na Alma do Mundo.
O deserto estava cheio de homens que ganhavam a vida porque podiam
penetrar com facilidade na Alma do Mundo. Eram conhecidos por Adivinhos, e
temidos por mulheres e velhos. Os Guerreiros raramente os consultavam,
porque era impossÝvel entrar numa batalha sabendo quando se vai morrer. Os
Guerreiros preferiam o sabor da luta e a emo×Óo do desconhecido; o futuro
havia sido escrito por Allah, e o que quer que Ele
tivesse escrito, era sempre para o bem do homem. EntÓo os Guerreiros
viviam apenas o presente, porque o presente era cheio de surpresas, e eles
tinham que prestar aten×Óo em muitas coisas: onde estava a espada do
inimigo, onde estava seu cavalo, qual o prãximo golpe que devia desferir
para salvar a vida.
O cameleiro nÓo era Guerreiro, e jÑ havia consultado alguns adivinhos.
Muitos disseram coisas certas, outros disseram coisas erradas.
AtÙ que um deles, o mais velho (e o mais temido), perguntou porque o
cameleiro estava tÓo interessado em saber o futuro.
Para que possa fazer as coisas respondeu o cameleiro. E mudar o
que nÓo gostaria que acontecesse.
EntÓo deixarÑ de ser seu futuro respondeu o adivinho.
Talvez entÓo eu queira saber o futuro para me preparar para as coisas
que virÓo.
Se forem coisas boas, isto serÑ uma agradÑvel surpresa disse o
adivinho. Se forem coisas ruins, vocÚ estarÑ sofrendo muito antes delas
acontecerem.
Quero saber o futuro porque sou um homem disse o cameleiro para o
adivinho. E os homens vivem em fun×Óo do seu futuro.
O adivinho ficou quieto por algum tempo. Ele era especialista no jogo
de varetas, que eram atiradas no chÓo e interpretadas da maneira que caÝam.
Naquele dia ele nÓo jogou as varetas. Envolveu-as num len×o e tornou a
colocar no bolso.
Ganho a vida adivinhando o futuro das pessoas disse ele. Conhe×o
a ciÚncia das varetas, e sei como utilizÑ-la para penetrar neste espa×o onde
tudo estÑ escrito. Ali posso ler o passado, descobrir o que jÑ foi
esquecido, e entender os sinais do presente.
"Quando as pessoas me consultam, eu nÓo estou lendo o futuro; estou
adivinhando o futuro. Porque o futuro pertence a Deus, e ele sã o revela em
circunstÒncias extraordinÑrias. E como consigo adivinhar o futuro? Pelos
sinais do presente. No presente Ù que estÑ o segredo; se vocÚ prestar
aten×Óo no presente, poderÑ melhorÑ-lo. E se vocÚ melhorar o presente, o que
acontecerÑ depois tambÙm serÑ melhor. Esque×a o futuro e viva cada dia de
sua vida nos ensinamentos da Lei, e na confian×a de que Deus cuida dos seus
filhos. Cada dia traz em si a Eternidade".
O cameleiro quis saber quais as circunstÒncias em que Deus permitia ver
o futuro:
Quando Ele mesmo o mostra. E Deus mostra o futuro raramente, e por
uma ênica razÓo: Ù um futuro que foi escrito para ser mudado.
Deus tinha mostrado um futuro ao rapaz, pensou o cameleiro. Porque
queria que o rapaz fosse o Seu instrumento.
VÑ falar com os chefes tribais disse o cameleiro. Conte dos
guerreiros que se aproximam.
Eles vÓo rir de mim.
SÓo homens do deserto, e os homens do deserto estÓo acostumados com
os sinais.
EntÓo jÑ devem saber.
NÓo estÓo preocupados com isto. Acreditam que se tiverem que saber
algo que Allah deseje lhe contar, alguma pessoa lhes dirÑ isto. JÑ aconteceu
muitas vezes antes. Mas hoje, esta pessoa Ù vocÚ.
O rapaz pensou em FÑtima. E resolveu ir ver os chefes tribais.
Trago sinais do deserto disse ao guarda que ficava na porta da
imensa tenda branca no centro do oÑsis. Quero ver os chefes.
O guarda nÓo disse nada. Entrou e demorou-se muito lÑ dentro. Depois
saiu com um Ñrabe jovem, vestido de branco e ouro. O rapaz contou ao jovem o
que havia visto. Ele pediu que esperasse um pouco e tornou a entrar.
A noite caiu. Entraram e saÝram vÑrios Ñrabes e mercadores. Aos poucos
as fogueiras foram se apagando, e o oÑsis come×ou a ficar tÓo silencioso
como o deserto. Sã a luz da grande tenda continuava acesa. Durante todo este
tempo, o rapaz pensava em FÑtima, ainda sem entender a conversa daquela
tarde.
Finalmente, depois de muitas horas de espera, o guarda mandou que o
rapaz entrasse.
O que viu deixou-o extasiado. Nunca poderia imaginar que, no meio do
deserto, existisse uma tenda como aquela. O chÓo estava coberto com os mais
belos tapetes que jÑ havia pisado, e do teto pendiam lustres de metal
amarelo trabalhado, coberto de velas acessas. Os chefes tribais estavam
sentados no fundo da tenda, em semicÝrculo, descansando seus bra×os e pernas
em almofadas de seda com ricos bordados. Criados entravam e saÝam com
bandejas de prata cheias de especiarias e chÑ. Alguns se encarregavam de
manter acesas as brasas dos narguilÙs. Um suave perfume de fumo enchia o
ambiente.
Haviam oito chefes, mas o rapaz logo percebeu quem era o mais
importante: um Ñrabe vestido de branco e ouro, sentado no centro do
semicÝrculo. Ao seu lado estava o jovem Ñrabe com quem tinha conversado
antes.
Quem Ù o estrangeiro que fala de sinais? perguntou um dos chefes,
olhando para ele.
Eu sou respondeu. E contou o que havia visto.
E por que o deserto ia contar isto a um estranho, quando sabe que
estamos hÑ vÑrias gera×åes aqui? disse outro chefe tribal.
Porque meus olhos ainda nÓo se acostumaram com o deserto respondeu
o rapaz. E eu posso ver coisas que os olhos habituados demais nÓo
conseguem mais ver.
"¹ porque eu sei da Alma do Mundo", pensou consigo mesmo. Mas nÓo falou
nada, porque os Ñrabes nÓo acreditam nestas coisas.
O OÑsis Ù um terreno neutro. NinguÙm ataca um OÑsis disse um
terceiro chefe.
Eu conto apenas o que vi. Se nÓo quiserem acreditar, nÓo fa×am nada.
Um completo silÚncio abateu-se sobre a tenda, seguido de uma exaltada
conversa entre os chefes tribais. Falavam num dialeto Ñrabe que o rapaz nÓo
entendia, mas quando ele fez men×Óo de ir embora, um guarda disse para
ficar. O rapaz come×ou a sentir medo; os sinais diziam que havia alguma
coisa errada. Lamentou haver conversado com o cameleiro a respeito.
De repente, o velho que estava no centro deu um sorriso quase
imperceptÝvel, e o rapaz tranqìilizou-se. O velho nÓo havia participado da
discussÓo, e nÓo dissera uma palavra atÙ aquele momento. Mas o rapaz jÑ
estava acostumado com a Linguagem do Mundo, e pode sentir uma vibra×Óo de
Paz cruzando a tenda de ponta a ponta. Sua intui×Óo dizia que havia agido
corretamente em vir.
A discussÓo acabou. Ficaram em silÚncio por algum tempo, ouvindo o
velho. Depois, ele se virou para o rapaz: desta vez seu rosto estava frio e
distante.
HÑ dois mil anos, numa terra distante, jogaram num po×o e venderam
como escravo um homem que acreditava em sonhos disse o velho. Nossos
mercadores o compraram e o trouxeram para o Egito. E todos nãs sabemos que,
quem acredita em sonhos, tambÙm sabe interpretÑ-los.
"Embora nem sempre consiga realizÑ-los", pensou o rapaz, lembrando-se
da velha cigana.
Por causa dos sonhos do faraã com vacas magras e gordas, este homem
livrou o Egito da fome. Seu nome era JosÙ. Era tambÙm um estrangeiro numa
terra estrangeira, como vocÚ, e devia ter mais ou menos a sua idade.
O silÚncio continuou. Os olhos do velho se mantinham frios.
Sempre seguimos a Tradi×Óo. A Tradi×Óo salvou o Egito da fome naquela
Ùpoca, e o fez o mais rico entre os povos. A Tradi×Óo ensina como os homens
devem atravessar o deserto e casar suas filhas. A Tradi×Óo diz que um OÑsis
Ù um terreno neutro, porque ambos os lados tem OÑsis, e sÓo vulnerÑveis.
NinguÙm disse qualquer palavra enquanto o velho falava.
Mas a Tradi×Óo diz tambÙm para acreditarmos nas mensagens do deserto.
Tudo que sabemos foi o deserto que nos ensinou.
O velho fez um sinal e todos os Ñrabes se levantaram. A reuniÓo estava
para terminar. Os narguilÙs foram apagados, e os guardas se colocaram em
posi×Óo de sentido. O rapaz preparou-se para sair, mas o velho falou ainda
mais uma vez:
AmanhÓ nãs vamos romper um acordo que diz que ninguÙm no oÑsis pode
portar armas. Durante o dia inteiro aguardaremos os inimigos. Quando o sol
descer no horizonte, os homens me devolverÓo as armas. Para cada dez
inimigos mortos, vocÚ receberÑ uma moeda de ouro.
"Entretanto, as armas nÓo podem sair do seu lugar sem experimentarem a
batalha. SÓo caprichosas como o deserto, e se as acostumamos com isto, da
prãxima vez podem ter pregui×a de disparar. Se nenhuma delas tiver sido
utilizada amanhÓ, pelo menos uma serÑ usada em vocÚ."
O oÑsis estava iluminado apenas pela lua cheia quando o rapaz saiu.
Eram vinte minutos de caminhada atÙ sua tenda, e ele come×ou a andar.
Estava assustado com tudo que havia acontecido. Tinha mergulhado na
Alma do Mundo, e o pre×o por acreditar naquilo era a sua vida. Uma aposta
alta. Mas tinha apostado alto desde o dia em que havia vendido suas ovelhas
para seguir sua Lenda Pessoal. E como dizia o cameleiro, morrer amanhÓ era
tÓo bom como morrer em qualquer outro dia. Todo dia era feito para ser
vivido ou para abandonar o mundo. Tudo dependia apenas de uma palavra:
"Maktub".
Caminhou em silÚncio. NÓo estava arrependido. Se morresse amanhÓ, seria
porque Deus nÓo estava com vontade de mudar o futuro. Mas teria morrido
depois de haver cruzado o estreito, trabalhado em uma loja de cristais,
conhecido o silÚncio do deserto e os olhos de FÑtima. Tinha vivido
intensamente cada um dos seus dias, desde que havia saÝdo de casa, hÑ tanto
tempo atrÑs. Se morresse amanhÓ, seus olhos teriam visto muito mais coisas
do que os olhos dos outros pastores, e o rapaz tinha orgulho disto.
De repente ouviu um estrondo, e foi jogado subitamente por terra, com o
impacto de um vento que nÓo conhecia. O lugar encheu-se de poeira, que quase
cobriu a lua. Na sua frente, um enorme cavalo branco empinou soltando um
relincho aterrador.
O rapaz mal podia ver o que se passava, mas quando a poeira assentou um
pouco, sentiu um pavor que jamais havia sentido antes. Em cima do cavalo
estava um cavaleiro todo vestido de negro, com um falcÓo em seu ombro
esquerdo. Usava um turbante e um len×o que lhe cobria todo o rosto, deixando
apenas os olhos de fora. Parecia o mensageiro do deserto, mas sua presen×a
era mais forte do que todas as pessoas que havia conhecido na vida.
O estranho cavaleiro puxou a enorme espada curva que trazia presa Ð
sela. O a×o brilhou com a luz da lua.
Quem ousou ler o väo dos gaviåes? perguntou com uma voz tÓo forte
que pareceu ecoar entre as cinqìenta mil tamareiras do Al-fayoum.
Eu ousei disse o rapaz. Lembrou-se imediatamente da imagem de
Santiago Matamouros do seu cavalo branco com os infiÙis sob as patas. Era
exatamente assim. Sã que agora a situa×Óo estava invertida.
Eu ousei repetiu o rapaz, e abaixou a cabe×a para receber o golpe
da espada. Muitas vidas serÓo salvas, porque vocÚs nÓo contavam com a Alma
do Mundo.
A espada, porÙm, nÓo desceu rÑpido. A mÓo do estranho foi abaixando
lentamente, atÙ que a ponta da lÒmina tocou na testa do rapaz. Era tÓo
afiada que saiu uma gota de sangue.
O cavaleiro estava completamente imãvel. O rapaz tambÙm. NÓo pensou um
minuto sequer em fugir. Dentro do seu cora×Óo, uma estranha alegria tomou
conta dele: ia morrer por sua Lenda Pessoal. E por FÑtima. Os sinais eram
verdadeiros, enfim. Ali estava o Inimigo, e por causa disto ele nÓo
precisava se preocupar com a morte, porque havia uma Alma do Mundo. Daqui a
pouco ele estaria fazendo parte dela. E amanhÓ o Inimigo faria parte dela
tambÙm.
O estranho, porÙm, apenas mantinha a espada em sua testa.
Por que vocÚ leu o väo dos pÑssaros?
Li apenas o que os pÑssaros queriam contar. Eles querem salvar o
oÑsis, e vocÚs morrerÓo. O oÑsis tem mais homens que vocÚs.
A espada continuava em sua testa.
Quem Ù vocÚ para mudar o destino de Allah?
Allah fez os exÙrcitos, e fez tambÙm os pÑssaros. Allah me mostrou a
linguagem dos pÑssaros. Tudo foi escrito pela mesma MÓo, disse o rapaz,
lembrando as palavras do cameleiro.
O estranho finalmente retirou a espada da testa. O rapaz sentiu um
certo alÝvio. Mas nÓo podia fugir.
Cuidado com as adivinha×åes disse o estranho. Quando as coisas
estÓo escritas, nÓo hÑ como evitÑ-las.
Apenas vi um exÙrcito disse o rapaz. NÓo vi o resultado de uma
batalha.
O cavaleiro parecia contente com a resposta. Mas mantinha a espada na
sua mÓo.
O que faz um estrangeiro numa terra estrangeira?
Busco minha Lenda Pessoal. Algo que vocÚ nÓo entenderÑ nunca.
O cavaleiro colocou a espada na bainha, e o falcÓo no seu ombro deu um
grito estranho. O rapaz come×ou a relaxar.
Precisava testar sua coragem disse o estranho. A coragem Ù o dom
mais importante para quem busca a Linguagem do Mundo.
O rapaz ficou surpreso. Aquele homem estava falando em coisas que pouca
gente conhecia.
¹ preciso nÓo relaxar nunca, mesmo tendo chegado tÓo longe
continuou ele. ¹ preciso amar o deserto, mas jamais confiar inteiramente
nele. Porque o deserto Ù uma prova para todos os homens: testa cada passo, e
mata quem se distrai.
Suas palavras lembravam as palavras do velho rei.
Se os guerreiros chegarem, e sua cabe×a ainda estiver sobre o pesco×o
depois que o sol morrer, me procure disse o estranho.
A mesma mÓo que havia segurado a espada, empunhou um chicote. O cavalo
empinou de novo, levantando uma nuvem de poeira.
Onde vocÚ mora? gritou o rapaz, enquanto o cavaleiro se afastava.
A mÓo com chicote apontou em dire×Óo ao sul.
O rapaz tinha encontrado o Alquimista.
Na manhÓ seguinte haviam dois mil homens armados entre as tamareiras de
Al-Fayoum. Antes que o sol chegasse ao topo do cÙu, quinhentos guerreiros
apareceram no horizonte. Os cavaleiros entraram no oÑsis pela parte norte;
parecia uma expedi×Óo de paz, mas haviam armas escondidas sobre os mantos
brancos. Quando chegaram perto da grande tenda que ficava no centro de
Al-Fayoum, puxaram as cimitarras e as espingardas. E atacaram uma tenda
vazia.
Os homens do oÑsis cercaram os cavaleiros do deserto. Em meia hora
haviam quatrocentos e noventa e nove corpos espalhados pelo chÓo. As
crian×as estavam no outro extremo do bosque de tamareiras, e nÓo viram nada.
As mulheres rezavam por seus maridos nas tendas, e tambÙm nÓo viram nada.
NÓo fosse pelos corpos espalhados, o oÑsis parecia viver um dia normal.
Apenas um guerreiro foi poupado, o comandante do batalhÓo. De tarde ele
foi conduzido diante dos chefes tribais, que lhe perguntaram porque havia
rompido a Tradi×Óo. O comandante disse que seus homens estavam com fome e
sede, exaustos por tantos dias de batalha, e haviam decidido tomar um oÑsis
para poder recome×ar a luta.
O chefe tribal disse que sentia pelos guerreiros, mas a Tradi×Óo jamais
pode ser rompida. A ênica coisa que muda no deserto sÓo as dunas, quando
sopra o vento.
Depois condenou o comandante a uma morte sem honra. Ao invÙs do a×o ou
da bala de fuzil, ele foi enforcado numa tamareira tambÙm morta. Seu corpo
balan×ou com o vento do deserto.
O chefe tribal chamou o estrangeiro e lhe deu cinqìenta moedas de ouro.
Depois tornou a recordar a histãria de JosÙ no Egito, e pediu para que fosse
o Conselheiro do OÑsis.
Quando o sol se päs por completo, e as primeiras estrelas come×aram a
aparecer (nÓo brilhavam muito, porque a lua cheia continuava), o rapaz andou
em dire×Óo ao sul. Havia apenas uma tenda, e alguns Ñrabes que passavam
diziam que o lugar era cheio de djins. Mas o rapaz sentou-se e esperou
durante muito tempo.
O Alquimista apareceu quando a lua jÑ estava alto no cÙu. Trazia dois
gaviåes mortos no ombro.
Aqui estou disse o rapaz.
NÓo devia estar respondeu o Alquimista. Ou sua Lenda Pessoal era
chegar atÙ aqui?
Existe uma guerra entre os clÓs. NÓo Ù possÝvel cruzar o deserto.
O Alquimista desceu do seu cavalo, e fez um sinal para que o rapaz
entrasse com ele na tenda. Era uma tenda igual a todas as outras que havia
conhecido no oÑsis exceto a grande tenda central, que tinha o luxo dos
contos de fada. Ele procurou os aparelhos e fornos de alquimia, mas nÓo
encontrou nada. Havia apenas uns poucos livros empilhados, um fogÓo para
cozinhar, e os tapetes cheios de desenhos misteriosos.
Sente-se, que vou preparar um chÑ disse o Alquimista. E comeremos
juntos estes gaviåes.
O rapaz suspeitou que eram os mesmos pÑssaros que havia visto no dia
anterior, mas nÓo disse nada. O Alquimista acendeu o fogo, e em pouco tempo
um delicioso cheiro de carne enchia a tenda. Era melhor que o perfume dos
narguilÙs.
Por que quis me ver? disse o rapaz.
Por causa dos sinais respondeu o Alquimista O vento me contou que
vocÚ viria. E que ia precisar de ajuda.
NÓo sou eu. ¹ o outro estrangeiro, o InglÚs. Ele Ù que o estava
buscando.
Ele tem que encontrar outras coisas antes de me encontrar. Mas estÑ
no caminho certo. Passou a olhar o deserto.
E eu?
Quando se quer uma coisa, todo o Universo conspira para que a pessoa
consiga realizar seu sonho disse o Alquimista, repetindo as palavras do
velho rei. O rapaz entendeu. Outro homem estava no seu caminho, para
conduzi-lo atÙ sua Lenda Pessoal.
EntÓo vocÚ vai me ensinar?
NÓo. VocÚ jÑ sabe de tudo que precisa. Vou apenas lhe fazer seguir em
dire×Óo ao seu tesouro.
Existe uma guerra entre os clÓs. repetiu o rapaz.
Eu conhe×o o deserto.
JÑ encontrei meu tesouro. Tenho um camelo, o dinheiro das lojas de
cristais, e cinqìenta moedas de ouro. Posso ser um homem rico na minha
terra.
Mas nada disto estÑ perto das PirÒmides disse o Alquimista.
Tenho FÑtima. ¹ um tesouro maior que todo este que consegui juntar.
TambÙm ela nÓo estÑ perto das PirÒmides.
Comeram os gaviåes em silÚncio. O Alquimista abriu uma garrafa e
derramou um lÝquido vermelho no copo do rapaz. Era vinho, um dos melhores
vinhos que havia tomado em sua vida. Mas o vinho era proibido pela lei.
O mal nÓo Ù o que entra na boca do homem disse o Alquimista. O
mal Ù o que sai dela.
O rapaz come×ou a sentir-se alegre com o vinho. Mas o Alquimista lhe
inspirava medo. Sentaram-se do lado de fora da tenda, olhando o brilho da
lua, que ofuscava as estrelas.
Beba e se distraia um pouco disse o Alquimista, notando que o rapaz
come×ava a ficar cada vez mais alegre. Repouse como um guerreiro sempre
repousa antes do combate. Mas nÓo esque×a que o seu cora×Óo estÑ onde estÑ o
seu tesouro. E que seu tesouro precisa ser encontrado, para que tudo isto
que vocÚ descobriu no caminho possa fazer sentido.
"AmanhÓ venda seu camelo e compre um cavalo. Os camelos sÓo
trai×oeiros: andam milhares de passos, e nÓo dÓo qualquer sinal de cansa×o.
De repente, porÙm, ajoelham e morrem. Os cavalos vÓo se cansando aos poucos.
E vocÚ poderÑ saber sempre o quanto pode pedir deles, ou a Ùpoca em que vÓo
morrer".
Na noite seguinte o rapaz apareceu com um cavalo na tenda do
Alquimista. Esperou um pouco e ele apareceu, montado em seu animal, e com o
falcÓo no ombro esquerdo.
Mostre-me a vida no deserto disse o Alquimista. Sã quem acha
vida, pode encontrar tesouros.
Come×aram a caminhar pelas areias, com a lua ainda brilhando sobre os
dois. "NÓo sei se vou conseguir encontrar vida no deserto", pensou o rapaz.
"NÓo conhe×o ainda o deserto".
Quis virar-se e dizer isto ao Alquimista, mas tinha medo dele. Chegaram
ao lugar de pedras, onde o rapaz havia visto os gaviåes no cÙu; entretanto,
tudo era silÚncio e vento.
NÓo consigo encontrar vida no deserto disse o rapaz. Sei que ela
existe, mas nÓo consigo encontrÑ-la.
A vida atrai a vida respondeu o Alquimista.
E o rapaz entendeu. Na mesma hora soltou as rÙdeas de seu cavalo e ele
saiu livremente pelas pedras e areia. O Alquimista seguia em silÚncio, e o
cavalo do rapaz andou por quase meia-hora. JÑ nÓo podiam mais ver as
tamareiras do oÑsis, apenas a lua gigantesca no cÙu, e as rochas brilhando
com a cor prata. De repente, num lugar onde jamais havia estado antes, o
rapaz notou que seu cavalo parava.
Aqui existe vida respondeu o rapaz ao Alquimista. NÓo conhe×o a
linguagem do deserto, mas meu cavalo conhece a linguagem da vida.
Desmontaram. O Alquimista nÓo disse nada. Come×ou a olhar as pedras,
caminhando devagar. De repente, ele parou, e abaixou-se com todo cuidado.
Havia um buraco no chÓo, entre as pedras; o Alquimista enfiou a mÓo dentro
do buraco, e depois enfiou o bra×o atÙ o ombro. Alguma coisa se mexeu lÑ
dentro, e os olhos do Alquimista ele sã podia ver os olhos se encolherem
de esfor×o e tensÓo. O bra×o parecia lutar com o que estava dentro do
buraco. Mas num salto que assustou o rapaz, o Alquimista retirou o bra×o e
ficou imediatamente de pÙ. Sua mÓo trazia unia serpente agarrada pelo rabo.
O rapaz tambÙm deu um salto, sã que para trÑs. A cobra debatia-se sem
cessar, emitindo ruÝdos e silvos que feriam o silÚncio do deserto. Era uma
naja, cujo veneno podia matar um homem em poucos minutos.
"Cuidado com o veneno", chegou a pensar o rapaz. Mas o Alquimista havia
colocado a mÓo no buraco, e jÑ devia ter sido mordido. Seu rosto, porÙm,
estava tranqìilo. "O Alquimista tem duzentos anos", havia falado o InglÚs.
JÑ devia saber como lidar com cobras no deserto.
O rapaz viu quando seu companheiro foi atÙ o cavalo e puxou a longa
espada em forma de meia-lua. Com ela, tra×ou um cÝrculo no chÓo e colocou a
cobra no meio. O animal aquietou-se imediatamente
Pode ficar tranqìilo disse o Alquimista. Ela nÓo vai sair dali. E
vocÚ descobriu a vida no deserto, o sinal que eu estava precisando.
Por que isto era tÓo importante?
Porque as PirÒmides estÓo cercadas de deserto.
O rapaz nÓo queria ouvir falar nas PirÒmides. Seu cora×Óo estava pesado
e triste, desde a noite anterior. Porque seguir em busca do seu tesouro,
significava ter que abandonar FÑtima.
Vou guiÑ-lo pelo deserto falou o Alquimista.
Quero ficar no oÑsis respondeu o rapaz. JÑ encontrei FÑtima. E
ela, para mim, vale mais que o tesouro.
FÑtima Ù uma mulher do deserto disse o Alquimista. Sabe que os
homens devem partir, para poderem voltar. Ela jÑ encontrou seu tesouro:
vocÚ. Agora espera que vocÚ encontre o que busca.
E se eu resolver ficar?
SerÑ o Conselheiro do OÑsis. Tem ouro suficiente para comprar muitas
ovelhas e muitos camelos. Vai casar-se com FÑtima e viverÓo felizes o
primeiro ano. AprenderÑ a amar o deserto e vai conhecer cada uma das
cinqìenta mil tamareiras. PerceberÑ como elas crescem, mostrando um mundo
que muda sempre. E irÑ cada vez entender mais os sinais, porque o deserto Ù
um mestre melhor que todos os mestres.
"No segundo ano vocÚ se lembrarÑ que existe um tesouro. Os sinais
come×arÓo a falar insistentemente sobre isto, e vocÚ tentarÑ ignorÑ-los.
UsarÑ seu conhecimento apenas para o bem-estar do oÑsis e dos seus
habitantes. Os chefes tribais lhe agradecerÓo por isto. Os seus camelos lhe
trarÓo riqueza e poder.
"No terceiro ano os sinais continuarÓo a falar sobre seu tesouro e sua
Lenda Pessoal. VocÚ vai ficar noites e noites andando pelo oÑsis, e FÑtima
serÑ uma mulher triste, porque fez com que seu caminho fosse interrompido.
Mas vocÚ lhe darÑ amor, e serÑ correspondido. VocÚ vai se lembrar que ela
jamais pediu que ficasse, porque uma mulher do deserto sabe esperar seu
homem. Por isso nÓo vai culpÑ-la. Mas vai andar muitas noites pelas areias
do deserto, e por entre as tamareiras, pensando que talvez pudesse ter ido
adiante, ter confiado mais no seu amor por FÑtima. Porque o que o manteve no
oÑsis foi seu prãprio medo de nÓo voltar nunca. E a esta altura, os sinais
lhe indicarÓo que seu tesouro estÑ enterrado para sempre.
No quarto ano, os sinais o abandonarÓo, porque vocÚ nÓo quis ouvi-los.
Os Chefes Tribais irÓo entender isto, e vocÚ serÑ destituÝdo do Conselho. A
esta altura serÑ um rico comerciante, com muitos camelos e muitas
mercadorias. Mas passarÑ o resto dos seus dias vagando entre as tamareiras e
o deserto, sabendo que nÓo cumpriu sua Lenda Pessoal, e que agora Ù tarde
demais para isto.
"Sem jamais compreender que o Amor nunca impede um homem de seguir sua
Lenda Pessoal. Quando isto acontece, Ù porque nÓo era o verdadeiro Amor,
aquele que fala a Linguagem do Mundo".
O Alquimista desfez o cÝrculo no chÓo, e a cobra correu e desapareceu
entre as pedras. O rapaz lembrava o mercador de cristais que sempre quis ir
Ð Meca, e o InglÚs que buscava um Alquimista. O rapaz lembrava de uma mulher
que confiou no deserto, e o deserto um dia lhe trouxe a pessoa que desejava
amar.
Montaram em seus cavalos, e desta vez foi o rapaz que seguiu o
Alquimista. O vento trazia os ruÝdos do oÑsis, e ele tentava identificar a
voz de FÑtima. Naquele dia nÓo tinha ido ao po×o por causa da batalha.
Mas esta noite, enquanto olhavam uma cobra dentro de um cÝrculo, o
estranho cavaleiro com seu falcÓo no ombro havia falado de amor e de
tesouros, das mulheres do deserto e da sua Lenda Pessoal.
Vou com vocÚ disse o rapaz. E imediatamente sentiu paz no seu
cora×Óo.
Partimos amanhÓ antes que o sol nas×a foi a ênica resposta do
Alquimista.
O rapaz passou a noite inteira em claro. Duas horas antes do amanhecer,
acordou um dos rapazes que dormia na sua tenda, e pediu para lhe mostrar
onde morava FÑtima. SaÝram juntos, e foram atÙ lÑ. Em troca, o rapaz lhe deu
dinheiro para comprar uma ovelha.
Depois pediu que descobrisse onde FÑtima dormia, e que lhe acordasse e
dissesse que o rapaz a estava esperando. O jovem Ñrabe fez isto, e em troca
ganhou dinheiro para comprar outra ovelha.
Agora deixe-nos a sãs disse o rapaz ao jovem Ñrabe, que voltou Ð
sua tenda para dormir, orgulhoso de haver ajudado o Conselheiro do OÑsis; e
contente por ter dinheiro para comprar ovelhas.
FÑtima apareceu na porta da tenda. Os dois saÝram para andar entre as
tamareiras. O rapaz sabia que era contra a Tradi×Óo, mas isto nÓo tinha
nenhuma importÒncia agora.
Vou partir disse. E quero que saiba que vou voltar. Eu te amo
porque...
NÓo diga nada interrompeu FÑtima. Ama-se porque se ama. NÓo hÑ
qualquer razÓo para amar.
Mas o rapaz continuou:
Eu te amo porque tive um sonho, encontrei um rei, vendi cristais,
cruzei o deserto, os clÓs declararam guerra, e estive num po×o para saber
onde morava um Alquimista. Eu te amo porque todo o Universo conspirou para
que eu chegasse atÙ vocÚ.
Os dois se abra×aram. Era a primeira vez que um corpo tocava no
outro.
Voltarei repetiu o rapaz.
Antes eu olhava o deserto com desejo disse FÑtima. Agora serÑ com
esperan×a. Meu pai um dia partiu, mas voltou para minha mÓe, e continua
voltando sempre.
E nÓo disseram mais nada. Andaram um pouco entre as tamareiras, e o
rapaz a deixou na porta da tenda.
Voltarei como seu pai voltou para a sua mÓe disse.
Reparou que os olhos de FÑtima estavam cheios d'Ñgua.
VocÚ chora?
Sou uma mulher do deserto disse ela, escondendo o rosto. Mas
acima de tudo, sou uma mulher.
FÑtima entrou na tenda. Daqui a pouco o sol ia aparecer. Quando o dia
chegasse, ela ia sair e fazer aquilo que havia feito durante tantos anos;
mas tudo havia mudado. O rapaz jÑ nÓo estava mais no oÑsis, e o oÑsis nÓo
teria mais o significado que tinha atÙ pouco tempo antes. NÓo seria mais o
lugar com cinqìenta mil tamareiras e trezentos po×os, onde os peregrinos
chegavam contentes depois de uma longa viagem. O oÑsis, daquele dia em
diante, seria um lugar vazio para ela.
A partir daquele dia, o deserto ia ser mais importante. Iria olhar para
ele sempre, tentando saber qual estrela o rapaz estava seguindo em busca do
tesouro. Haveria de mandar seus beijos pelo vento, na esperan×a de que ele
tocasse o rosto do rapaz, e lhe contasse que estava viva, esperando por ele,
como uma mulher espera um homem de coragem, que segue em busca de sonhos e
tesouros. A partir daquele dia, o deserto ia ser apenas uma coisa: a
esperan×a de sua volta.
NÓo pense no que ficou para trÑs disse o Alquimista, quando
come×aram a cavalgar pelas areias do deserto. Tudo estÑ gravado na Alma do
Mundo, e ali permanecerÑ para sempre.
Os homens sonham mais com a volta do que com a partida disse o
rapaz, que jÑ estava se acostumando de novo com o silÚncio do deserto.
Se o que vocÚ encontrou Ù feito de matÙria pura, jamais apodrecerÑ. E
vocÚ poderÑ voltar um dia. Se foi apenas um momento de luz, como a explosÓo
de uma estrela, entÓo nÓo vai encontrar nada quando voltar. Mas terÑ visto
uma explosÓo de luz. E sã isto jÑ valeu a pena.
O homem falava em linguagem de alquimia. Mas o rapaz sabia que ele
estava se referindo Ð FÑtima.
Era difÝcil nÓo pensar no que havia ficado para trÑs. O deserto, com
sua paisagem quase sempre igual, costumava encher-se de sonhos. O rapaz
ainda via as tamareiras, os po×os, e o rosto da mulher amada. Via o InglÚs
com seu laboratãrio, e o cameleiro que era um mestre e nÓo sabia. "Talvez o
Alquimista jamais tenha amado", pensou o rapaz.
O Alquimista cavalgava na sua frente, com o falcÓo nos ombros. O falcÓo
conhecia bem a linguagem do deserto, e quando paravam, ele saÝa do ombro do
Alquimista e voava em busca de alimento. No primeiro dia trouxe uma lebre.
No segundo dia trouxe dois pÑssaros.
De noite, estendiam seus cobertores e nÓo acendiam fogueiras. As noites
do deserto eram frias, e foram ficando escuras Ð medida que a lua come×ou a
diminuir no cÙu. Durante uma semana andaram em silÚncio, conversando apenas
sobre as precau×åes necessÑrias para evitar os combates entre os clÓs. A
guerra continuava, e o vento Ðs vezes trazia o cheiro adocicado de sangue.
Alguma batalha havia sido travada por perto, e o vento recordava ao rapaz
que havia a Linguagem dos Sinais, sempre pronta para mostrar o que seus
olhos nÓo conseguiam ver.
Quando completaram sete dias de viagem, o Alquimista resolveu acampar
mais cedo do que de costume. O falcÓo saiu em busca de ca×a, e ele tirou o
cantil de Ñgua e ofereceu ao rapaz.
VocÚ agora estÑ quase no final da viagem disse o Alquimista. Meus
parabÙns por haver seguido sua Lenda Pessoal.
E vocÚ estÑ me guiando em silÚncio disse o rapaz. Pensei que ia
me ensinar aquilo que sabe. Faz algum tempo que estive no deserto com um
homem que tinha livros de Alquimia. Mas nÓo consegui aprender nada.
Sã existe uma maneira de aprender respondeu o Alquimista ¹
atravÙs da a×Óo. Tudo que vocÚ precisava saber, a viagem lhe ensinou. Falta
apenas uma coisa.
O rapaz quis saber o que era, mas o Alquimista manteve os olhos fixos
no horizonte, esperando pela volta do falcÓo.
Por que o chamam de Alquimista?
Porque sou.
E o que havia de errado com os outros alquimistas, que buscaram ouro
e nÓo conseguiram?
Buscavam apenas ouro respondeu seu companheiro. Buscavam o
tesouro de sua Lenda Pessoal, sem desejarem viver a prãpria Lenda.
O que me falta saber? insistiu o rapaz.
Mas o Alquimista continuou olhando o horizonte. Depois de algum tempo o
falcÓo retornou com a comida. Cavaram um buraco e acenderam a fogueira
dentro dele, para que ninguÙm pudesse ver a luz das chamas.
Sou um Alquimista porque sou um Alquimista disse ele, enquanto
preparavam a comida. Aprendi a ciÚncia de meus avãs, que aprenderam de
seus avãs, e assim atÙ a cria×Óo do mundo. Naquela Ùpoca, toda a ciÚncia da
Grande Obra podia ser escrita numa simples esmeralda. Mas os homens nÓo
deram importÒncia Ðs coisas simples, e come×aram a escrever tratados,
interpreta×åes, e estudos filosãficos. Come×aram tambÙm a dizer que sabiam
melhor o caminho que os outros.
"Mas a TÑboa da Esmeralda continua viva atÙ hoje".
O que estava escrito na TÑboa da Esmeralda? quis saber o rapaz.
O Alquimista come×ou a desenhar na areia, e nÓo demorou mais do que
cinco minutos. Enquanto ele desenhava, o rapaz lembrou-se do velho rei, e da
pra×a onde haviam se encontrado um dia; parecia que tinham se passado muitos
e muitos anos.
Isto estava escrito na TÑboa da Esmeralda disse o Alquimista,
quando acabou de escrever.
O rapaz aproximou-se e leu as palavras na areia.
¹ um cãdigo disse o rapaz, um pouco decepcionado com a TÑboa da
Esmeralda. Parece com os livros do InglÚs.
NÓo respondeu o Alquimista. ¹ como o väo dos gaviåes; nÓo deve
ser compreendida simplesmente pela razÓo. A TÑboa da Esmeralda Ù uma
passagem direta para a Alma do Mundo.
"Os sÑbios entenderam que este mundo natural Ù apenas uma imagem e uma
cãpia do ParaÝso. A simples existÚncia deste mundo Ù a garantia de que
existe um mundo mais perfeito que ele. Deus o criou para que, atravÙs das
coisas visÝveis, os homens pudessem compreender seus ensinamentos
espirituais, e as maravilhas de sua sabedoria. Isto Ù que eu chamo de A×Óo".
Devo entender a TÑboa da Esmeralda? perguntou o rapaz.
"Talvez, se vocÚ estivesse num laboratãrio de Alquimia, agora seria o
momento certo para estudar a melhor maneira de entender a TÑboa da
Esmeralda. Entretanto, vocÚ estÑ no Deserto. EntÓo mergulhe no deserto. Ele
serve para compreender o mundo tanto como qualquer outra coisa sobre a face
da terra. VocÚ nem precisa de entender o deserto: basta contemplar um
simples grÓo de areia, e verÑ nele todas as maravilhas da Cria×Óo".
Como fa×o para mergulhar no deserto?
Escute seu cora×Óo. Ele conhece todas as coisas, porque veio da Alma
do Mundo, e um dia retornarÑ para ela.
Andaram em silÚncio mais dois dias. O Alquimista estava muito mais
cauteloso, porque se aproximavam da zona de combates mais violentos. E o
rapaz procurava escutar seu cora×Óo.
Era um cora×Óo difÝcil; antes estava acostumado a partir sempre, e
agora queria chegar a todo custo. °s vezes, seu cora×Óo ficava muitas horas
contando histãrias de saudades, outras vezes se emocionava com o nascer do
sol no deserto, e fazia o rapaz chorar escondido. O cora×Óo batia mais
rÑpido quando falava para o rapaz sobre o tesouro e ficava mais vagaroso
quando os olhos do rapaz se perdiam no horizonte sem fim do deserto. Mas
nunca estava em silÚncio, mesmo que o rapaz nÓo trocasse uma palavra com o
Alquimista.
Por que temos que escutar o cora×Óo? perguntou o rapaz quando
acamparam aquele dia.
Porque, onde ele estiver, Ù onde estarÑ o seu tesouro.
Meu cora×Óo Ù agitado disse o rapaz. Tem sonhos, se emociona, e
estÑ apaixonado por uma mulher do deserto. Ele me pede coisas e nÓo me deixa
dormir muitas noites, quando penso nela.
¹ bom. Seu cora×Óo estÑ vivo. Continue a ouvir o que ele tem para
dizer.
Nos trÚs dias seguintes os dois passaram por alguns guerreiros, e viram
outros guerreiros no horizonte. O cora×Óo do rapaz come×ou a falar sobre o
medo. Contava para o rapaz histãrias que tinha ouvido da Alma do Mundo,
histãrias de homens que foram em busca de seus tesouros e jamais o
encontraram. °s vezes assustava o rapaz com o pensamento de que poderia nÓo
conseguir o tesouro, ou poderia morrer no deserto. Outras vezes dizia para o
rapaz que jÑ estava satisfeito, que jÑ havia encontrado um amor e muitas
moedas de ouro.
Meu cora×Óo Ù trai×oeiro disse o rapaz ao Alquimista, quando eles
pararam para descansar um pouco os cavalos. NÓo quer que eu continue.
Isto Ù bom respondeu o Alquimista. Prova que seu cora×Óo estÑ
vivo. ¹ natural ter medo de trocar por um sonho tudo aquilo que jÑ se
conseguiu.
EntÓo, para que devo escutar meu cora×Óo?
Porque vocÚ nÓo vai conseguir jamais mantÚ-lo calado. E mesmo que
finja nÓo escutar o que ele diz, ele estarÑ dentro do seu peito, repetindo
sempre o que pensa sobre a vida e o mundo.
Mesmo que ele seja trai×oeiro?
A trai×Óo Ù o golpe que vocÚ nÓo espera. Se vocÚ conhecer bem seu
cora×Óo, ele jamais conseguirÑ isto. Porque vocÚ conhecerÑ seus sonhos e
seus desejos, e saberÑ lidar com eles.
"NinguÙm consegue fugir do seu cora×Óo. Por isso Ù melhor escutar o que
ele fala. Para que jamais venha um golpe que vocÚ nÓo espera".
O rapaz continuou a escutar seu cora×Óo, enquanto caminhavam pelo
deserto. Passou a conhecer suas artimanhas e seus truques, e passou a
aceitÑ-lo como era. EntÓo o rapaz deixou de ter medo, e deixou de ter
vontade de voltar, porque certa tarde o seu cora×Óo lhe disse que estava
contente. "Mesmo que eu reclame um pouco", dizia seu cora×Óo, "Ù porque sou
um cora×Óo de homem, e os cora×åes de homens sÓo assim. TÚm medo de realizar
seus maiores sonhos, porque acham que nÓo o merecem, ou nÓo vÓo
consegui-los. Nãs, os cora×åes, morremos de medo sã de pensar em amores que
partiram para sempre, em momentos que poderiam ter sido bons e que nÓo
foram, em tesouros que poderiam ter sido descobertos e ficaram para sempre
escondidos na areia. Porque quando isto acontece, terminamos sofrendo
muito".
Meu cora×Óo tem medo de sofrer disse o rapaz para o Alquimista, uma
noite em que olhavam o cÙu sem lua.
Diga para ele que o medo de sofrer Ù pior do que o prãprio
sofrimento. E que nenhum cora×Óo jamais sofreu quando foi em busca de seus
sonhos, porque cada momento de busca Ù um momento de encontro com Deus e com
a Eternidade.
"Cada momento de busca Ù um momento de encontro", disse o rapaz ao seu
cora×Óo. "Enquanto procurei meu tesouro, todos os dias foram dias luminosos,
porque eu sabia que cada hora fazia parte do sonho de encontrar. Enquanto
procurei este meu tesouro, descobri no caminho coisas que jamais teria
sonhado encontrar, se nÓo tivesse tido a coragem de tentar coisas
impossÝveis aos pastores".
EntÓo seu cora×Óo ficou quieto por uma tarde inteira. De noite, o rapaz
dormiu tranqìilo, e quando acordou, o seu cora×Óo come×ou a lhe contar as
coisas da Alma do Mundo. Disse que todo homem feliz era um homem que trazia
Deus dentro de si. E que a felicidade poderia ser encontrada num simples
grÓo de areia do deserto, como o Alquimista havia falado. Porque um grÓo de
areia Ù um momento da Cria×Óo, e o Universo demorou milhares de milhåes de
anos para criÑ-lo. "Cada homem na face da Terra tem um tesouro que estÑ
esperando por ele", disse seu cora×Óo. Nãs, os cora×åes, costumamos falar
pouco destes tesouros, porque os homens jÑ nÓo querem mais encontrÑ-los. Sã
falamos dele para as crian×as. Depois deixamos que a vida encaminhe cada um
em dire×Óo ao seu destino. Mas, infelizmente, poucos seguem o caminho que
lhes estÑ tra×ado, e que Ù o caminho da Lenda Pessoal, e da felicidade.
Acham o mundo uma coisa amea×adora e por causa disto o mundo se torna uma
coisa amea×adora.
"EntÓo nãs, os cora×åes, vamos falando cada vez mais baixo, mas nÓo nos
calamos nunca. E torcemos para que nossas palavras nÓo sejam ouvidas: nÓo
queremos que os homens sofram porque nÓo seguiram seus cora×åes".
Por que os cora×åes nÓo contam aos homens que devem continuar
seguindo seus sonhos? perguntou o rapaz ao Alquimista.
Porque, neste caso, o cora×Óo Ù o que sofre mais. E os cora×åes nÓo
gostam de sofrer.
O rapaz entendeu seu cora×Óo a partir daquele dia. Pediu que nunca mais
o deixasse. Pediu que, quando estivesse longe de seus sonhos, o cora×Óo
apertasse no peito e desse o sinal de alarme. O rapaz jurou que sempre que
escutasse este sinal, tambÙm o seguiria.
Naquela noite conversou tudo com o Alquimista. E o Alquimista entendeu
que o cora×Óo do rapaz havia voltado para a Alma do Mundo .
O que fa×o agora? perguntou o rapaz.
Siga em dire×Óo Ðs PirÒmides disse o Alquimista. E continue
atento aos sinais. Seu cora×Óo jÑ Ù capaz de lhe mostrar o tesouro.
Era isto que estava faltando saber?
NÓo. respondeu o Alquimista. O que estÑ faltando saber Ù o
seguinte:
"Sempre antes de realizar um sonho, a Alma do Mundo resolve testar tudo
aquilo que foi aprendido durante a caminhada. Ela faz isto nÓo porque seja
mÑ, mas para que possamos, junto com o nosso sonho, conquistar tambÙm as
li×åes que aprendemos seguindo em dire×Óo a ele. ¹ o momento em que a maior
parte das pessoas desiste. ¹ o que chamamos, em linguagem do deserto, de
`morrer de sede quando as tamareiras jÑ apareceram no horizonte' ".
"Uma busca come×a sempre com a Sorte de Principiante. E termina sempre
com a Prova do Conquistador".
O rapaz lembrou-se de um velho provÙrbio de sua terra. Dizia que a hora
mais escura era a que vinha antes do sol nascer.
No dia seguinte apareceu o primeiro sinal concreto de perigo. TrÚs
guerreiros se aproximaram e perguntaram o que os dois estavam fazendo por
ali.
Vim ca×ar com o meu falcÓo respondeu o Alquimista.
Precisamos revistÑ-los para ver se nÓo levam armas disse um dos
guerreiros.
O Alquimista desceu devagar de seu cavalo. O rapaz fez o mesmo.
Para quÚ tanto dinheiro? perguntou o guerreiro, quando viu a bolsa
do rapaz.
Para chegar ao Egito disse ele.
O guarda que estava revistando o Alquimista encontrou um pequeno frasco
de cristal cheio de lÝquido, e um ovo de vidro amarelado, pouco maior que o
ovo de uma galinha.
Que sÓo estas coisas? perguntou o guarda.
¹ a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida. ¹ a grande obra dos
Alquimistas. Quem tomar este elixir jamais ficarÑ doente, e uma lasca desta
pedra transforma qualquer metal em ouro.
Os guardas riram pra valer, e o Alquimista riu com eles. Tinham achado
a resposta muito engra×ada, e os deixaram partir sem maiores contratempos,
com todos os seus pertences.
VocÚ estÑ louco? perguntou o rapaz ao Alquimista, quando jÑ haviam
se distanciado bastante. Para que vocÚ fez isto?
Para mostrar a vocÚ uma simples lei do mundo respondeu o
Alquimista. Quando temos os grandes tesouros diante de nãs, nunca
percebemos. E sabe por quÚ? Porque os homens nÓo acreditam em tesouros.
Continuaram andando pelo deserto. A cada dia que passava, o cora×Óo do
rapaz ia ficando mais silencioso. JÑ nÓo queria saber das coisas passadas ou
das coisas futuras; contentava-se em contemplar tambÙm o deserto, e beber
junto com o rapaz da Alma do Mundo. Ele e seu cora×Óo tornaram-se grandes
amigos um passou a ser incapaz de trair o outro.
Quando o cora×Óo falava, era para dar estÝmulo e for×a ao rapaz, que Ðs
vezes achava terrivelmente ma×ante os dias de silÚncio. O cora×Óo contou-lhe
pela primeira vez suas grandes qualidades: sua coragem ao abandonar as
ovelhas, ao viver sua Lenda Pessoal, e seu entusiasmo na loja de cristais.
Contou-lhe tambÙm mais uma coisa, que o rapaz nunca havia notado: os
perigos que passaram perto e que ele nunca tinha percebido. Seu cora×Óo
disse que certa vez havia escondido a pistola que ele havia roubado do pai,
pois havia uma grande chance de que se ferisse com ela. E lembrou um dia que
o rapaz havia passado mal em pleno campo, vomitado, e depois dormido por
muito tempo: haviam dois assaltantes mais adiante, que estavam planejando
roubar suas ovelhas, e assassinÑ-lo. Mas como o rapaz nÓo aparecia,
resolveram ir embora, achando que ele tinha mudado de rota.
Os cora×åes sempre ajudam os homens? perguntou o rapaz ao
Alquimista.
Sã os que vivem sua Lenda Pessoal. Mas ajudam muito as crian×as, os
bÚbados, e os velhos.
Quer dizer entÓo que nÓo hÑ perigo?
Quer dizer apenas que os cora×åes se esfor×am ao mÑximo respondeu o
Alquimista.
Certa tarde passaram pelo acampamento de um dos clÓs. Haviam Ñrabes em
vistosas roupas brancas, com armas ensilhadas em todos os cantos. Os homens
fumavam narguilÙ e conversavam sobre os combates. NinguÙm prestou maior
aten×Óo aos dois viajantes.
NÓo hÑ qualquer perigo disse o rapaz, quando jÑ tinham se afastado
um pouco do acampamento.
O Alquimista ficou furioso.
Confie em seu cora×Óo disse, mas nÓo se esque×a de que vocÚ estÑ no
deserto. Quando os homens estÓo em guerra, a Alma do Mundo tambÙm sente os
gritos de combate. NinguÙm deixa de sofrer as conseqìÚncias de cada coisa
que se passa debaixo do sol.
"Tudo Ù uma coisa ênica", pensou o rapaz.
E como se o deserto quisesse mostrar que o velho Alquimista estava
certo, dois cavaleiros surgiram por detrÑs dos viajantes.
NÓo podem seguir adiante disse um deles. VocÚs estÓo nas areias
onde os combates sÓo travados.
NÓo vou muito longe respondeu o Alquimista, olhando fundo nos olhos
dos guerreiros. Eles ficaram quietos por alguns minutos, e depois
concordaram com a viagem dos dois.
O rapaz assistiu aquilo tudo fascinado.
VocÚ dominou os guardas com o olhar comentou ele.
Os olhos mostram a for×a da alma respondeu o Alquimista.
Era verdade, pensou o rapaz. Havia percebido que, no meio da multidÓo
de soldados no acampamento, um deles estava olhando fixo para os dois. E
estava tÓo distante, que nÓo dava sequer para ver direito sua face. Mas o
rapaz tinha certeza de que estava olhando para eles.
Finalmente, quando come×aram a cruzar uma montanha que se estendia por
todo o horizonte, o Alquimista disse que faltavam dois dias para chegarem
atÙ Ðs PirÒmides.
Se vamos nos separar logo respondeu o rapaz me ensine Alquimia.
VocÚ jÑ sabe. ¹ penetrar na Alma do Mundo, e descobrir o tesouro que
ela reservou para nãs.
NÓo Ù isto que quero saber. Falo de transformar chumbo em ouro.
O Alquimista respeitou o silÚncio do deserto, e sã respondeu ao rapaz
quando pararam para comer.
Tudo no Universo evolui disse ele. E para os sÑbios, o ouro Ù o
metal mais evoluÝdo. NÓo pergunte porquÚ; nÓo sei. Sei apenas que a Tradi×Óo
estÑ sempre certa.
"Os homens Ù que nÓo interpretaram bem as palavras dos sÑbios. E ao
invÙs de sÝmbolo de evolu×Óo, o ouro passou a ser o sinal das guerras.
As coisas falam muitas linguagens disse o rapaz. Vi quando o
relincho de camelo era apenas um relincho, depois passou a ser sinal de
perigo, e finalmente tornou- se de novo um relincho.
Mas calou-se. O Alquimista devia saber tudo aquilo.
Conheci verdadeiros alquimistas continuou. Se trancavam no
laboratãrio e tentavam evoluir como o ouro; descobriam a Pedra Filosofal.
Porque haviam entendido que quando uma coisa evolui, evolui tambÙm tudo que
estÑ a sua volta.
"Outros conseguiram a pedra por acidente. JÑ tinham o dom, suas almas
estavam mais despertas que a das outras pessoas. Mas estes nÓo contam,
porque sÓo raros.
"Outros, enfim, buscavam apenas o ouro. Estes jamais descobriram o
segredo. Esqueceram-se de que o chumbo, o cobre, o ferro, tambÙm tÚm sua
Lenda Pessoal para cumprir. Quem interfere na Lenda Pessoal dos outros,
nunca descobrirÑ a sua".
As palavras do Alquimista soaram como uma maldi×Óo. Ele abaixou-se e
pegou uma concha no solo do deserto.
Isto um dia jÑ foi um mar disse.
JÑ tinha reparado respondeu o rapaz. O Alquimista pediu ao rapaz
para colocar a concha no ouvido. Ele tinha feito isto muitas vezes quando
era crian×a, e escutou o barulho do mar.
O mar continua dentro desta concha, porque Ù sua Lenda Pessoal. E
jamais a abandonarÑ, atÙ que o deserto se cubra novamente de Ñgua.
Depois montaram em seus cavalos, e seguiram em dire×Óo Ðs PirÒmides do
Egito.
O sol tinha come×ado a descer quando o cora×Óo do rapaz deu sinal de
perigo. Estavam no meio de gigantescas dunas, e o rapaz olhou o Alquimista,
mas este parecia nÓo haver notado nada. Cinco minutos depois o rapaz
percebeu dois cavaleiros a sua frente, as silhuetas cortadas contra o sol.
Antes que pudesse falar com o Alquimista, os dois cavaleiros se
transformaram em dez, depois em cem, atÙ que as gigantescas dunas ficaram
cobertas deles.
Eram guerreiros vestidos de azul, com uma tiara negra sobre o turbante.
Os rostos estavam cobertos por outro vÙu azul, deixando apenas os olhos de
fora.
Mesmo distante, os olhos mostravam a for×a de suas almas. E os olhos
falavam em morte.
Levaram os dois para um acampamento militar nas imedia×åes. Um soldado
empurrou o rapaz e o Alquimista para dentro de uma tenda. Era uma tenda
diferente das que havia conhecido no oÑsis; ali estava um comandante reunido
com seu estado-maior.
SÓo os espiåes disse um dos homens.
Somos apenas viajantes respondeu o Alquimista.
VocÚs foram vistos no acampamento inimigo hÑ trÚs dias atrÑs. E
conversaram com um dos guerreiros.
Sou um homem que caminha pelo deserto e conhece as estrelas disse o
Alquimista. NÓo tenho informa×åes de tropas, ou o movimento dos clÓs. Apenas
guiava meu amigo atÙ aqui.
Quem Ù seu amigo? perguntou o comandante.
Um Alquimista disse o Alquimista. Conhece os poderes da natureza.
E deseja mostrar ao comandante sua capacidade extraordinÑria.
O rapaz ouvia em silÚncio. E com medo.
O que faz um estrangeiro numa terra estrangeira? disse outro homem.
Trouxe dinheiro para oferecer a seu clÓ respondeu o Alquimista,
antes que o rapaz dissesse qualquer palavra. E pegando a bolsa do rapaz,
entregou as moedas de ouro ao general.
O Ñrabe aceitou em silÚncio. Dava para comprar muitas armas.
O que Ù um Alquimista? perguntou, finalmente.
Um homem que conhece a natureza e o mundo. Se ele quisesse, destruÝa
este acampamento apenas com a for×a do vento.
Os homens riram. Estavam acostumados com a for×a da guerra, e o vento
nÓo detÙm um golpe mortal. Dentro do peito de cada um, porÙm, seus cora×åes
apertaram. Eram homens do deserto e tinham medo dos feiticeiros.
Quero ver disse o general.
Precisamos de trÚs dias respondeu o Alquimista. E ele vai se
transformar em vento, apenas para mostrar a for×a de seu poder. Se nÓo
conseguir, nãs lhe oferecemos humildemente nossas vidas, pela honra de seu
clÓ.
NÓo pode me oferecer o que jÑ Ù meu disse, arrogante, o general.
Mas concedeu os trÚs dias aos viajantes.
O rapaz estava paralisado de terror. Saiu da tenda porque o Alquimista
lhe segurou os bra×os.
NÓo deixe que eles percebam seu medo disse o Alquimista. SÓo
homens corajosos, e desprezam os covardes.
O rapaz, porÙm, estava sem voz. Sã conseguiu falar depois de algum
tempo, enquanto caminhavam pelo meio do acampamento. NÓo havia necessidade
de prisÓo: os Ñrabes apenas tiraram seus cavalos. E mais uma vez o mundo
mostrou suas muitas linguagens: o deserto, antes um terreno livre e sem fim,
era agora uma muralha intransponÝvel.
VocÚ deu todo o meu tesouro! disse o rapaz. Tudo que eu ganhei em
toda a minha vida!
E para que lhe adiantaria isto, se tivesse que morrer? respondeu, o
Alquimista. Seu dinheiro o salvou por trÚs dias. Poucas vezes o dinheiro
serve para adiar a morte.
Mas o rapaz estava apavorado demais para ouvir palavras sÑbias. NÓo
sabia como transformar-se em vento. NÓo era um Alquimista.
O Alquimista pediu chÑ a um guerreiro, e colocou um pouco nos pulsos do
rapaz. Uma onda de tranqìilidade encheu seu corpo, enquanto o Alquimista
dizia algumas palavras que ele nÓo conseguia compreender.
NÓo se entregue ao desespero disse o Alquimista, com uma voz
estranhamente doce. Isto faz com que vocÚ nÓo consiga conversar com seu
cora×Óo.
Mas eu nÓo sei transformar-me em vento.
Quem vive sua Lenda Pessoal, sabe tudo que precisa saber. Sã uma
coisa torna um sonho impossÝvel: o medo de fracassar.
NÓo tenho medo de fracassar. Apenas nÓo sei transformar-me em vento.
Pois terÑ que aprender. Sua vida depende disto.
E se eu nÓo conseguir?
Vai morrer enquanto vivia sua Lenda Pessoal. ¹ muito melhor do que
morrer como milhåes de pessoas, que jamais souberam que a Lenda Pessoal
existia.
"Entretanto, nÓo se preocupe. Geralmente a morte faz com que as pessoas
fiquem mais sensÝveis Ð vida."
O primeiro dia se passou. Houve uma grande batalha nas imedia×åes, e
vÑrios feridos foram trazidos para o acampamento militar. "Nada muda com a
morte", pensava o rapaz. Os guerreiros que morriam eram substituÝdos por
outros, e a vida continuava.
Poderias ter morrido mais tarde, meu amigo disse o guarda para o
corpo de um companheiro seu. Poderias ter morrido quando chegasse a paz.
Mas irias terminar morrendo de qualquer jeito.
No final do dia, o rapaz foi procurar o Alquimista. Estava levando o
falcÓo para o deserto.
NÓo sei transformar-me em vento repetiu o rapaz.
Lembre-se do que eu lhe disse: de que o mundo Ù apenas a parte
visÝvel de Deus. De que a Alquimia Ù trazer para o plano material a
perfei×Óo espiritual.
O que vocÚ faz?
Alimento meu falcÓo.
Se eu nÓo conseguir transformar-me em vento, nãs vamos morrer disse
o rapaz. Para que alimentar o falcÓo?
Quem vai morrer Ù vocÚ disse o Alquimista. Eu sei transformar-me
em vento.
No segundo dia o rapaz foi para o alto de uma rocha que ficava perto do
acampamento. As sentinelas o deixaram passar; jÑ ouviram falar do bruxo que
se transformava em vento, e nÓo queriam chegar perto dele. AlÙm disso, o
deserto era uma grande e intransponÝvel muralha.
Ficou o resto da tarde do segundo dia olhando o deserto. Escutou seu
cora×Óo. E o deserto escutou seu medo.
Ambos falavam a mesma lÝngua.
No terceiro dia o general reuniu-se com os principais comandantes.
Vamos ver o garoto que se transforma em vento disse o General ao
Alquimista.
Vamos ver respondeu o Alquimista.
O rapaz os conduziu atÙ o lugar onde havia estado no dia anterior.
EntÓo pediu que todos se sentassem.
Vai demorar um pouco disse o rapaz.
NÓo temos pressa respondeu o General. Somos homens do deserto.
O rapaz come×ou a olhar o horizonte a sua frente. Haviam montanhas ao
longe, haviam dunas, rochas e plantas rasteiras que insistiam em viver onde
a sobrevivÚncia era impossÝvel. Ali estava o deserto, que ele havia
percorrido durante tantos meses, e que, mesmo assim, sã conhecia uma parte
muito pequena. Nesta pequena parte ele havia encontrado ingleses, caravanas,
guerras de clÓs, e um oÑsis com cinqìenta mil tamareiras e trezentos po×os.
O que vocÚ quer aqui hoje? perguntou o deserto. JÑ nÓo nos
contemplamos o suficiente ontem?
Em algum ponto vocÚ guarda a pessoa que eu amo disse o rapaz.
EntÓo, quando olho suas areias contemplo tambÙm a ela. Quero voltar a ela e
preciso de sua ajuda para transformar-me em vento.
O que Ù o amor? perguntou o deserto.
O amor Ù quando o falcÓo voa sobre suas areias. Porque para ele vocÚ
Ù um campo verde, e ele nunca voltou sem ca×a. Ele conhece suas rochas, suas
dunas, e suas montanhas, e vocÚ Ù generoso com ele.
O bico do falcÓo tira peda×os de mim disse o deserto. Durante
anos eu cultivo sua ca×a, alimento com a pouca Ñgua que tenho, mostro onde
estÑ a comida. E um dia, desce o falcÓo do cÙu, justamente quando eu ia
sentir o carinho da ca×a sobre minhas areias. Ele carrega aquilo que eu
criei.
Mas foi para isto que vocÚ criou a ca×a respondeu o rapaz. Para
alimentar o falcÓo. E o falcÓo alimentarÑ o homem. E o homem entÓo
alimentarÑ um dia tuas areias, de onde a ca×a tornarÑ a surgir. Assim
move-se o mundo.
¹ isto o amor?
¹ isto o amor. ¹ o que faz a ca×a transformar-se em falcÓo, o falcÓo
em homem, e o homem de novo em deserto. ¹ isto que faz o chumbo
transformar-se em ouro; e o ouro voltar a esconder-se sob a terra.
NÓo entendo suas palavras disse o deserto.
EntÓo entenda que em algum lugar de suas areias, uma mulher me
espera. E para isto, tenho que transformar-me em vento.
O deserto ficou em silÚncio por alguns instantes.
Eu lhe dou minhas areias para que o vento possa soprar. Mas sozinho,
nÓo posso fazer nada. Pe×a ajuda ao vento.
Uma pequena brisa come×ou a soprar. Os comandantes olhavam o rapaz ao
longe, falando uma linguagem que eles nÓo conheciam.
O Alquimista sorria.
O vento chegou perto do rapaz e tocou seu rosto. Havia escutado sua
conversa com o deserto, porque os ventos sempre conhecem tudo. Percorriam o
mundo sem um lugar onde nascer e sem um lugar onde morrer.
Me ajude disse o rapaz ao vento. Certo dia escutei em vocÚ a voz
da minha amada.
Quem lhe ensinou a falar a linguagem do deserto e do vento?
Meu cora×Óo respondeu o rapaz.
O vento tinha muitos nomes. Ali ele era chamado de siroco, porque os
Ñrabes acreditavam que ele vinha das terras cobertas de Ñgua, onde habitavam
homens negros. Na terra distante de onde vinha o rapaz, eles o chamavam de
Levante, porque acreditavam que trazia as areias do deserto e os gritos de
guerra dos mouros. Talvez num lugar mais distante dos campos de ovelhas, os
homens pensassem que o vento nascia em Andaluzia. Mas o vento nÓo vinha de
lugar nenhum, e nÓo ia para lugar nenhum, e por isso era mais forte que o
deserto. Um dia eles poderiam plantar Ñrvores no deserto, e atÙ mesmo criar
ovelhas, mas jamais iriam conseguir dominar o vento.
VocÚ nÓo pode ser o vento disse o vento. Somos de naturezas
diferentes.
NÓo Ù verdade disse o rapaz. Conheci os segredos da Alquimia,
enquanto vagava o mundo com vocÚ. Tenho em mim os ventos, os desertos, os
oceanos, as estrelas, e tudo que foi criado no Universo. Fomos feitos pela
mesma MÓo, e temos a mesma Alma. Quero ser como vocÚ, penetrar em todos os
cantos, atravessar os mares, tirar a areia que cobre meu tesouro, trazer
para perto a voz de minha amada.
Ouvi sua conversa com o Alquimista outro dia disse o vento. Ele
falou que cada coisa tem sua Lenda Pessoal. As pessoas nÓo podem se
transformar em vento.
Me ensine a ser vento por alguns instantes, disse o rapaz. Para
que possamos conversar sobre as possibilidades ilimitadas dos homens e dos
ventos.
O vento era curioso, e aquilo era uma coisa que ele nÓo conhecia.
Gostaria de conversar sobre aquele assunto, mas nÓo sabia como transformar
homens em vento. E olha que ele conhecia tanta coisa! ConstruÝa desertos,
afundava navios, derrubava florestas inteiras, e passeava por cidades cheias
de mêsica e de ruÝdos estranhos. Achava que era ilimitado, e no entanto ali
estava um rapaz dizendo que ainda havia mais coisas que um vento podia
fazer.
¹ isto que chamam de Amor disse o rapaz, ao ver que o vento estava
quase cedendo ao seu pedido. Quando se ama Ù que se consegue ser qualquer
coisa da Cria×Óo. Quando se ama nÓo temos necessidade nenhuma de entender o
que acontece, porque tudo passa a acontecer dentro de nãs, e os homens podem
se transformar em vento. Desde que os ventos ajudem, Ù claro.
O vento era muito orgulhoso, e ficou irritado com o que o rapaz dizia.
Come×ou a soprar com mais velocidade, levantando as areias do deserto. Mas
finalmente teve que reconhecer que, mesmo havendo percorrido o mundo
inteiro, nÓo sabia como transformar homens em ventos. E nÓo conhecia o Amor.
Enquanto passeava pelo mundo, notei que muitas pessoas falavam de
amor olhando para o cÙu disse o vento, furioso por ter que aceitar suas
limita×åes. Talvez seja melhor perguntar ao cÙu.
EntÓo me ajude disse o rapaz. Encha este lugar de poeira, para
que eu possa olhar o sol sem ficar cego.
O vento entÓo soprou com muita for×a, e o cÙu ficou cheio de areia,
deixando apenas um disco dourado no lugar do sol.
No acampamento estava ficando difÝcil de enxergar. Os homens do deserto
jÑ conheciam aquele vento. Chamava-se Simum, e era pior que uma tempestade
no mar porque eles nÓo conheciam o mar. Os cavalos relinchavam, e as armas
come×aram a ficar cobertas de areia.
No rochedo, um dos comandantes virou-se para o general, e disse:
Talvez seja melhor pararmos com isto. Eles jÑ quase nÓo podiam
enxergar o rapaz. Os rostos estavam cobertos pelos len×os azuis, e os olhos
agora significavam apenas espanto.
Vamos parar com isto insistiu outro comandante.
Quero ver a grandeza de Allah disse com respeito o general. Quero
ver como os homens se transformam em vento.
Mas anotou mentalmente o nome dos dois homens que haviam tido medo.
Assim que o vento parasse, ia destituÝ-los de seus comandos, porque os
homens do deserto nÓo sentem medo.
O vento me disse que vocÚ conhece o Amor disse o rapaz ao Sol. Se
vocÚ conhece o Amor, conhece tambÙm a Alma do Mundo, que Ù feita de Amor.
Daqui de onde estou disse o sol posso ver a Alma do Mundo. Ela se
comunica com minha alma, e nãs, juntos, fazemos as plantas crescerem e as
ovelhas caminharem em busca de sombra. Daqui de onde estou e estou muito
longe do mundo aprendi a amar. Sei que, se eu me aproximar um pouco mais
da Terra, tudo que estÑ nela morrerÑ, e a Alma do Mundo deixarÑ de existir.
EntÓo nos contemplamos e nos queremos, e eu lhe dou vida e calor, e ela me
dÑ uma razÓo para viver.
VocÚ conhece o Amor disse o rapaz.
E conhe×o a Alma do Mundo, porque conversamos muito nesta viagem sem
fim pelo Universo. Ela me fala que seu maior problema Ù que atÙ hoje, sã os
minerais e os vegetais entenderam que tudo Ù uma coisa sã. E para isto, nÓo
precisa que o ferro seja igual ao cobre, e que o cobre seja igual ao ouro.
Cada um cumpre sua fun×Óo exata nesta coisa ênica, e tudo seria uma Sinfonia
de Paz se a MÓo que escreveu tudo isto tivesse parado no quinto dia da
cria×Óo.
"Mas houve um sexto dia", disse o Sol.
VocÚ Ù sÑbio porque vÚ tudo Ð distÒncia respondeu o rapaz. Mas
nÓo conhece o Amor. Se nÓo houvesse um sexto dia da cria×Óo, nÓo haveria o
homem, e o cobre seria sempre cobre, e o chumbo seria sempre chumbo. Cada um
tem sua Lenda Pessoal, Ù verdade, mas um dia esta Lenda Pessoal serÑ
cumprida. EntÓo Ù preciso transformar-se em algo melhor, e ter uma nova
Lenda Pessoal, atÙ que a Alma do Mundo seja realmente uma coisa sã.
O sol ficou pensativo e resolveu brilhar mais forte. O vento, que
estava gostando da conversa, soprou tambÙm mais forte, para que o sol nÓo
cegasse o rapaz.
Para isto existe a Alquimia disse o rapaz. Para que cada homem
busque seu tesouro, e o encontre, e depois queira ser melhor do que foi na
sua vida anterior. O chumbo cumprirÑ seu papel atÙ que o mundo nÓo precise
mais de chumbo; entÓo ele terÑ que transformar-se em ouro.
"Os Alquimistas fazem isto. Mostram que, quando buscamos ser melhores
do que somos, tudo em volta se torna melhor tambÙm".
E por que vocÚ diz que eu nÓo conhe×o o Amor? perguntou o Sol.
Porque o amor nÓo Ù estar parado como o deserto, nem correr o mundo
como o vento, nem ver tudo de longe, como vocÚ. O Amor Ù a for×a que
transforma e melhora a Alma do Mundo. Quando penetrei nela pela primeira
vez, achei que fosse perfeita. Mas depois vi que ela era um reflexo de todas
as criaturas, e tinha suas guerras e suas paixåes. Somos nãs que alimentamos
a Alma do Mundo, e a terra onde vivemos serÑ melhor ou pior, se formos
melhores ou piores. AÝ Ù que entra a for×a do Amor, porque quando amamos,
sempre desejamos ser melhores do que somos.
O que vocÚ quer de mim? perguntou o Sol.
Que me ajude a transformar-me em vento respondeu o rapaz.
A Natureza me conhece como a mais sÑbia de todas as criaturas disse
o Sol. Mas nÓo sei como transformÑ-lo em vento.
Com quem devo falar, entÓo?
Por um momento o sol ficou quieto. O vento estava ouvindo, e ia
espalhar por todo o mundo que sua sabedoria era limitada. Entretanto, nÓo
tinha jeito de fugir daquele rapaz, que falava a Linguagem do Mundo.
Converse com a MÓo que escreveu tudo disse o Sol.
O vento gritou de contentamento, e soprou com mais for×a do que nunca.
As tendas come×aram a ser arrancadas da areia, e os animais soltaram-se de
suas rÙdeas. No rochedo, os homens se agarravam uns aos outros para nÓo
serem atirados longe.
O rapaz se virou entÓo para a MÓo que Tudo Havia Escrito. E ao invÙs de
falar qualquer coisa, sentiu que o Universo ficava em silÚncio, e ficou em
silÚncio tambÙm.
Uma for×a de Amor jorrou de seu cora×Óo, e o rapaz come×ou a rezar. Era
uma ora×Óo que nunca tinha feito antes, porque era uma ora×Óo sem palavras
ou sem pedidos. NÓo estava agradecendo pelas ovelhas haverem encontrado um
pasto, nem implorando para vender mais cristais, nem pedindo para que a
mulher que havia encontrado estivesse esperando sua volta. No silÚncio que
se seguiu, o rapaz entendeu que o deserto, o vento, e o sol tambÙm buscavam
os sinais que aquela MÓo havia escrito, e procuravam cumprir seus caminhos e
entender o que estava escrito numa simples esmeralda. Sabia que aqueles
sinais estavam espalhados na Terra e no Espa×o, e que em sua aparÚncia nÓo
tinham qualquer motivo ou significado, e que nem os desertos, nem os ventos,
nem os sãis, e nem os homens sabiam porque tinham sido criados. Mas aquela
MÓo tinha um motivo para tudo isto, e sã ela era capaz de operar milagres,
de transformar oceanos em desertos, e homens em vento. Porque sã ela
entendia que um desÝgnio maior empurrava o Universo a um ponto onde os seis
dias da cria×Óo se transformariam na Grande Obra.
E o rapaz mergulhou na Alma do Mundo, e viu que a Alma do Mundo era a
parte da Alma de Deus, e viu que a Alma de Deus era a sua prãpria alma. E
que podia, entÓo, realizar milagres.
O simum soprou naquele dia como jamais havia soprado. Durante muitas
gera×åes os Ñrabes contaram entre si a lenda de um rapaz que havia se
transformado em vento, quase destruÝdo um acampamento militar, e desafiado o
poder do mais importante general do deserto.
Quando o simum parou de soprar, todos olharam para o lugar onde o rapaz
estava. Ele nÓo estava mais lÑ; estava junto a um sentinela quase coberto de
areia, e que vigiava o outro lado do acampamento.
Os homens estavam apavorados com a bruxaria. Sã duas pessoas sorriam: o
Alquimista, porque tinha encontrado seu discÝpulo certo, e o General, porque
o discÝpulo tinha entendido a glãria de Deus.
No dia seguinte, o general despediu-se do rapaz e do Alquimista, e
pediu que uma escolta os acompanhasse atÙ onde os dois quisessem.
Caminharam o dia inteiro. Quando estava entardecendo, chegaram em
frente a um mosteiro copta. O Alquimista dispensou a escolta, e desceu de
seu cavalo.
Daqui para frente vocÚ vai sozinho disse o Alquimista. SÓo apenas
trÚs horas atÙ as PirÒmides.
Obrigado disse o rapaz. VocÚ me ensinou a Linguagem do Mundo.
Eu apenas recordei o que vocÚ jÑ sabia.
O Alquimista bateu na porta do mosteiro. Um monge todo vestido de preto
veio atender. Conversaram alguma coisa em copta, e o alquimista convidou o
rapaz para entrar.
Pedi que me emprestasse um pouco a cozinha disse ele.
Foram atÙ a cozinha do mosteiro. O Alquimista acendeu o fogo, e o monge
trouxe um pouco de chumbo, que o Alquimista derreteu dentro de um vaso de
ferro. Quando o chumbo tinha virado lÝquido, o Alquimista tirou do seu saco
aquele estranho ovo de vidro amarelado. Raspou uma camada do tamanho de um
fio de cabelo, envolveu-o em cera, e atirou na panela com o chumbo.
A mistura ganhou uma cor vermelha, como o sangue. O Alquimista entÓo
tirou a panela do fogo e a deixou esfriar. Enquanto isto, conversava com o
monge a respeito da guerra dos clÓs.
Deve durar muito disse ele para o monge.
O monge estava aborrecido. Fazia tempo que as caravanas estavam paradas
em Gizeh, esperando que a guerra acabasse. "Mas seja feita a vontade de
Deus", disse o monge.
Exatamente respondeu o Alquimista.
Quando a panela acabou de esfriar, o monge e o rapaz olharam
deslumbrados. O chumbo tinha secado na forma circular da panela, mas jÑ nÓo
era mais chumbo. Era ouro.
Aprenderei a fazer isto um dia? perguntou o rapaz.
Esta foi minha Lenda Pessoal, e nÓo a sua respondeu o Alquimista.
Mas queria lhe mostrar que Ù possÝvel.
Caminharam de novo atÙ a porta do convento. Ali, o Alquimista dividiu o
disco em quatro partes.
Esta Ù para vocÚ disse ele, estendendo uma parte para o monge.
Por sua generosidade com os peregrinos.
Estou recebendo um pagamento alÙm da minha generosidade respondeu o
monge.
Jamais repita isto. A vida pode escutar, e lhe dar menos da prãxima
vez.
Depois aproximou-se do rapaz.
Esta Ù para vocÚ. Para pagar o que deixou com o general.
O rapaz ia dizer que era muito mais do que havia deixado com o general.
Mas ficou quieto, porque tinha ouvido o comentÑrio do Alquimista com o monge
...
Esta Ù para mim disse o Alquimista, guardando uma parte. Porque
tenho que voltar pelo deserto, e existe uma guerra entre os clÓs.
EntÓo pegou o quarto peda×o e deu de novo para o monge.
Esta Ù para o rapaz. Caso ele necessite.
Mas estou indo em busca do meu tesouro disse o rapaz. Estou perto
dele agora!
E tenho certeza que irÑ encontrÑ-lo falou o Alquimista.
EntÓo por que isto?
Porque vocÚ jÑ perdeu duas vezes, com o ladrÓo e com o general, o
dinheiro que ganhou em sua viagem. Eu sou um velho Ñrabe supersticioso, que
acredito nos provÙrbios de minha terra. E existe um provÙrbio que diz:
"Tudo que acontece uma vez, pode nunca mais acontecer. Mas tudo que
acontece duas vezes, acontecerÑ certamente uma terceira".
Montaram em seus cavalos.
Quero lhe contar uma histãria sobre sonhos disse o Alquimista.
O rapaz aproximou seu cavalo.
Na antiga Roma, na Ùpoca do imperador TibÙrio, vivia um homem muito
bom, que tinha dois filhos: um era militar, e quando entrou para o exÙrcito,
foi enviado para as mais distantes regiåes do ImpÙrio. O outro filho era
poeta, e encantava toda Roma com seus belos versos.
"Certa noite, o velho teve um sonho. Um anjo lhe aparecia para dizer
que as palavras de um de seus filhos seriam conhecidas e repetidas no mundo
inteiro, por todas as gera×åes vindouras. O velho homem acordou agradecido e
chorando naquela noite, porque a vida era generosa, e havia lhe revelado uma
coisa que qualquer pai teria orgulho de saber.
"Pouco tempo depois, o velho morreu ao tentar salvar uma crian×a que ia
ser esmagada pelas rodas de uma carruagem. Como tinha se comportado de
maneira correta e justa por toda a sua vida, foi direto para o cÙu, e
encontrou-se com o anjo que havia aparecido em seu sonho.
" VocÚ foi um homem bom disse-lhe o anjo. Viveu sua existÚncia com
amor, e morreu com dignidade. Posso realizar agora qualquer desejo que
tenha.
" A vida tambÙm foi boa para mim respondeu o velho. Quando vocÚ
apareceu em um sonho, senti que todos os meus esfor×os estavam justificados.
Porque os versos de meu filho ficarÓo entre os homens pelos sÙculos
vindouros. Nada tenho a pedir para mim; entretanto, todo pai se orgulharia
de ver a fama de alguÙm que ele cuidou quando crian×a e educou quando jovem.
Gostaria de ver, no futuro distante, as palavras do meu filho.
"O anjo tocou no ombro do velho, e os dois foram projetados para um
futuro distante. Em volta deles apareceu um lugar imenso, com milhares de
pessoas, que falavam numa lÝngua estranha.
"O velho chorou de alegria.
" Eu sabia que os versos do meu filho poeta eram bons e imortais
disse para o anjo, entre lÑgrimas. Gostaria que vocÚ me dissesse qual de
suas poesias estas pessoas estÓo repetindo.
"O anjo entÓo se aproximou do velho com carinho, e sentaram-se num dos
bancos que havia naquele imenso lugar.
" Os versos de seu filho poeta foram muito populares em Roma disse o
anjo. Todos gostavam, e se divertiam com eles. Mas quando o reinado de
TibÙrio acabou, seus versos tambÙm foram esquecidos. Estas palavras sÓo de
seu filho que entrou para o exÙrcito.
"O velho olhou surpreso para o anjo.
" Seu filho foi servir num lugar distante, e tornou-se centuriÓo. Era
tambÙm um homem justo e bom. Certa tarde, um dos seus servos ficou doente, e
estava para morrer. Seu filho, entÓo, ouviu falar de um rabi que curava os
doentes, e andou dias e dias em busca deste homem. Enquanto caminhava,
descobriu que o homem que estava procurando era o Filho de Deus. Encontrou
outras pessoas que haviam sido curadas por ele, aprendeu seus ensinamentos,
e mesmo sendo um centuriÓo romano converteu-se Ð sua fÙ. AtÙ que certa manhÓ
chegou perto do Rabi.
" Contou-lhe que tinha um servo doente. E o Rabi se prontificou a ir
atÙ sua casa. Mas o centuriÓo era um homem de fÙ, e olhando no fundo dos
olhos do Rabi, compreendeu que estava mesmo diante do Filho de Deus, quando
as pessoas em volta deles se levantaram.
" Estas sÓo as palavras de seu filho disse o anjo ao velho . SÓo
as palavras que ele disse ao Rabi naquele momento, e que nunca mais foram
esquecidas". Dizem: "Senhor eu nÓo sou digno que entreis em minha casa, mas
dizei uma sã palavra e meu servo serÑ salvo".
O Alquimista moveu seu cavalo.
NÓo importa o que fa×a, cada pessoa na Terra estÑ sempre
representando o papel principal da Histãria do mundo disse ele.
E normalmente nÓo sabe disto.
O rapaz sorriu. Nunca havia pensado que a vida pudesse ser tÓo
importante para um pastor.
Adeus disse o Alquimista.
Adeus respondeu o rapaz.
O rapaz caminhou duas horas e meia pelo deserto, procurando escutar
atentamente o que seu cora×Óo dizia. Era ele que iria revelar o local exato
onde o tesouro estava escondido.
"Onde estiver seu tesouro, ali estarÑ tambÙm o seu cora×Óo", dissera o
Alquimista.
Mas seu cora×Óo falava em outras coisas.
Contava com orgulho a histãria de um pastor que havia deixado suas
ovelhas para seguir um sono que se repetiu duas noites. Contava da Lenda
Pessoal, e de muitos homens que fizeram isto, que foram em busca de terras
distantes ou de mulheres bonitas, enfrentando os homens de sua Ùpoca com
seus preconceitos e conceitos. Falou durante todo aquele tempo de viagens,
de descobertas, de livros e de grandes mudan×as.
Quando ia come×ar a subir uma duna e sã naquele momento foi que seu
cora×Óo sussurrou ao seu ouvido "esteja atento para o lugar onde vocÚ
chorar. Porque neste lugar estou eu, e neste lugar estÑ seu tesouro".
O rapaz come×ou a subir a duna lentamente. O cÙu, coberto de estrelas,
mostrava de novo uma lua cheia; haviam caminhado um mÚs pelo deserto. A lua
iluminava tambÙm a duna, num jogo de sombras, que fazia com que o deserto
parecesse um mar cheio de ondas, e fazia com que o rapaz se lembrasse do dia
em que soltara livremente um cavalo pelo deserto, dando um bom sinal ao
Alquimista. Finalmente a lua iluminava o silÚncio do deserto, e a jornada
que fazem os homens que buscam tesouros.
Quando, depois de alguns minutos, chegou ao topo da duna, seu cora×Óo
deu um salto. Iluminadas pela luz da lua cheia e pelo branco do deserto,
erguiam-se majestosas e solenes as PirÒmides do Egito.
O rapaz caiu de joelhos e chorou. Agradecia a Deus por haver acreditado
em sua Lenda Pessoal, e por haver encontrado certo dia um rei, um mercador,
um inglÚs, e um alquimista. Sobretudo, por haver encontrado uma mulher do
deserto, que lhe tinha feito entender que o Amor jamais vai separar o homem
de sua Lenda Pessoal.
Os muitos sÙculos das PirÒmides do Egito contemplavam, do alto, o
rapaz. Se ele quisesse, podia agora voltar ao oÑsis, pegar FÑtima, e viver
como simples pastor de ovelhas. Porque o Alquimista vivia no deserto, mesmo
compreendendo a Linguagem do Mundo, mesmo sabendo transformar chumbo em
ouro. NÓo tinha que mostrar a ninguÙm sua ciÚncia e sua arte. Enquanto
caminhava em dire×Óo Ð sua Lenda Pessoal, havia aprendido tudo que
precisava, e havia vivido tudo que tinha sonhado viver.
Mas havia chegado ao seu tesouro, e uma obra sã estÑ completa quando o
objetivo Ù atingido. Ali, naquela duna, o rapaz havia chorado. Olhou para o
chÓo e viu que, no local onde haviam caÝdo suas lÑgrimas, um escaravelho
passeava. Durante o tempo que havia passado no deserto, tinha aprendido que,
no Egito, os escaravelhos eram o sÝmbolo de Deus.
Ali estava mais um sinal. E o rapaz come×ou a cavar, depois de
lembrar-se do mercador de cristais; ninguÙm conseguiria ter uma PirÒmide no
seu quintal, mesmo que amontoasse pedras por toda a sua vida.
Durante a noite inteira o rapaz cavou no lugar marcado, sem encontrar
nada. Do alto das PirÒmides, os sÙculos o contemplavam, em silÚncio . Mas o
rapaz nÓo desistia:
cavava e cavava, lutando com o vento, que muitas vezes tornava a trazer
a areia de volta para o buraco. Suas mÓos ficaram cansadas depois feridas,
mas o rapaz acreditava em seu cora×Óo. E seu cora×Óo dissera para cavar onde
suas lÑgrimas caÝssem.
De repente, quando estava tentando tirar algumas pedras que haviam
aparecido, o rapaz ouviu passos. Algumas pessoas se aproximaram dele.
Estavam contra a lua, e o rapaz nÓo podia ver seus olhos, nem seus rostos.
O que vocÚ estÑ fazendo aÝ? perguntou um dos vultos.
O rapaz nÓo respondeu. Mas sentiu medo. Tinha agora um tesouro para
desenterrar, e por isso tinha medo.
Somos refugiados da guerra dos clÓs disse outro vulto. Precisamos
saber o que vocÚ esconde aÝ. Precisamos de dinheiro.
NÓo escondo nada respondeu o rapaz.
Mas um dos recÙm-chegados agarrou-o e o puxou para fora do buraco.
Outro come×ou a revistar seus bolsos. E encontraram o peda×o de ouro.
Ele tem ouro disse um dos salteadores.
A lua iluminou a face de quem o estava revistando, e ele viu, em seus
olhos, a morte.
Deve haver mais ouro escondido no chÓo disse outro.
E obrigaram o rapaz a cavar. O rapaz continuou cavando, e nÓo havia
nada. EntÓo come×aram a bater no rapaz. Espancaram o rapaz atÙ que
aparecessem no cÙu os primeiros raios de sol. Sua roupa ficou em frangalhos,
e ele sentiu que a morte estava prãxima.
"De que adianta o dinheiro, se tiver que morrer? Poucas vezes o
dinheiro Ù capaz de livrar alguÙm da morte", dissera o Alquimista.
Estou procurando um tesouro! gritou finalmente o rapaz. E mesmo com
a boca ferida e inchada de pancadas, contou aos salteadores que havia
sonhado duas vezes com um tesouro escondido junto das PirÒmides do Egito.
O que parecia o chefe ficou um longo tempo em silÚncio. Depois falou
com um deles:
Pode deixÑ-lo. Ele nÓo tem mais nada. Deve ter roubado este ouro.
O rapaz caiu com o rosto na areia. Dois olhos procuraram os seus; era o
chefe dos salteadores. Mas o rapaz estava olhando as PirÒmides.
Vamos embora disse o chefe para os outros.
Depois, virou-se para o rapaz:
VocÚ nÓo vai morrer disse. Vai viver e aprender que o homem nÓo
pode ser tÓo estêpido. AÝ, neste lugar onde vocÚ estÑ, eu tambÙm tive um
sonho repetido hÑ quase dois anos atrÑs. Sonhei que devia ir atÙ os campos
da Espanha, buscar uma igreja em ruÝnas onde os pastores costumavam dormir
com suas ovelhas, e que tinha um sicämoro crescendo dentro da sacristia, se
eu cavasse na raiz deste sicämoro, haveria de encontrar um tesouro
escondido. Mas nÓo sou estêpido de cruzar um deserto sã porque tive um sonho
repetido.
Depois foi embora.
O rapaz levantou-se com dificuldade, e olhou mais uma vez para as
PirÒmides. As PirÒmides sorriram para ele, e ele sorriu de volta, com o
cora×Óo repleto de felicidade.
Havia encontrado o tesouro.
O rapaz chamava-se Santiago. Chegou na pequena igreja abandonada quando
jÑ estava quase anoitecendo. O sicämoro ainda continuava na sacristia, e
ainda se podiam ver as estrelas atravÙs do teto semidestruÝdo. Lembrou-se
que certa vez havia estado ali com suas ovelhas, e que tinha sido uma noite
tranqìila, exceto pelo sonho.
Agora ele estava sem o seu rebanho. Ao invÙs disto, trazia uma pÑ.
Ficou muito tempo olhando o cÙu. Depois tirou do alforje uma garrafa de
vinho, e bebeu. Lembrou-se da noite no deserto, quando tinha tambÙm olhado
as estrelas e bebido vinho com o Alquimista. Pensou nos muitos caminhos que
tinha andado, e a maneira estranha de Deus lhe mostrar o tesouro. Se nÓo
tivesse acreditado em sonhos repetidos, nÓo tinha encontrado a cigana, nem o
rei, nem o salteador, nem... "bom, a lista Ù muito grande. Mas o caminho
estava escrito pelos sinais, e eu nÓo tinha como errar", disse para si
mesmo.
Dormiu sem perceber, e quando acordou, o sol jÑ ia alto. EntÓo come×ou
a escavar a raiz do sicämoro.
"Velho bruxo", pensava o rapaz. "VocÚ sabia de tudo. Deixou atÙ mesmo
um pouco de ouro para que eu pudesse voltar atÙ esta Igreja. O monge riu
quando me viu voltar em frangalhos. NÓo podia me poupar isto?"
"NÓo", ele escutou o vento dizer: "Se eu tivesse lhe contado, vocÚ nÓo
teria visto as PirÒmides. SÓo muito bonitas, nÓo acha?"
Era a voz do Alquimista. O rapaz sorriu e continuou a cavar. Meia hora
depois, a pÑ bateu em algo sãlido. Uma hora depois ele tinha diante de si um
baê cheio de velhas moedas de ouro espanholas. Havia tambÙm pedrarias,
mÑscaras de ouro com penas brancas e vermelhas, Ýdolos de pedra cravejados
de brilhantes. Pe×as de uma conquista que o paÝs jÑ havia esquecido hÑ muito
tempo, e que o conquistador se esquecera de contar para seus filhos.
O rapaz tirou o Urim e o Tumim do alforje. Tinha utilizado as duas
pedras apenas uma vez, quando estava certa manhÓ, num mercado. A vida e o
seu caminho estiveram sempre cheios de sinais.
Guardou o Urim e o Tumim no baê de ouro. Eram tambÙm parte de seu
tesouro, porque lembravam um velho rei que jamais tornaria a encontrar.
"Realmente a vida Ù generosa com quem vive sua Lenda Pessoal", pensou o
rapaz. EntÓo lembrou-se de que tinha que ir atÙ Tarifa, e dar um dÙcimo
daquilo tudo para a cigana. "Como sÓo espertos os ciganos", pensou. Talvez
fosse porque viajavam tanto.
Mas o vento voltou a soprar. Era o Levante, o vento que vinha da
±frica. NÓo trazia o cheiro do deserto, nem a amea×a de invasÓo dos mouros.
Ao invÙs disto, trazia um perfume que ele conhecia bem, e o som de um beijo
que veio vindo devagar, devagar, atÙ parar em seus lÑbios.
O rapaz sorriu. Era a primeira vez que ela fazia isto.
Estou indo, FÑtima disse ele.
Last-modified: Thu, 21 Aug 2003 17:26:13 GMT